“Lei da Palmada”.

A norma não criou tipo penal e creio que não interferiu na interpretação dos já existentes...

Leia nesta página:

A criação e educação dos filhos, missão bastante dinâmica e cada vez mais desafiante, a repressão mais firme, inclusive com alguma “palmada”, pode se tornar necessária para que certos comportamentos sejam corrigidos...

A iminência da aprovação da chamada “Lei da Palmada” causou muito estardalhaço. Aliás, é muito comum que isso aconteça quando alguma lei polêmica está para ser votada, especialmente porque leigos em Direito costumam disseminar comentários pouco técnicos e muitas vezes equivocados acerca do alcance e da aplicabilidade.

 De qualquer forma, creio que a norma, que já está em vigor e também já foi apelidada (particularmente, acho que lei não deveria receber apelido) também de “Lei Menino Bernardo” (garoto sul-rio-grandense vítima de homicídio imputado ao pai e à madrasta), não terá quase nenhum efeito prático.

 A Lei Federal 13.010, de 26/6/2014, sujeitou os infratores às seguintes medidas, a depender da gravidade do caso: (a) encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família; (b) encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; (c) encaminhamento a cursos ou programas de orientação; (d) obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado; (e) advertência. Atribuiu ao Conselho Tutelar, a quem os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente deverão ser obrigatoriamente comunicados, a atribuição de aplicar tais medidas. Mas o legislador não levou em conta que muitos Conselhos não estão aparelhados e que muitos conselheiros não estão preparados para tanto... Com o devido respeito ao “parceiro” Conselho Tutelar, definir esse tipo de encaminhamento deve continuar sendo tarefa de outras instituições, quando devidamente instadas. Mas o tempo dirá como isso funcionará na prática... A norma, por ex., não dotou os Conselhos de meios coativos e na hipótese de resistência à sua decisão, o impasse acabará “desaguando” mesmo no Judiciário.

O texto legislativo incluiu dispositivos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):

  • a) dispôs que “a criança [0 a 11 anos] e o adolescente [12 a 17 anos] têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los”;
  • b) definiu “castigo físico”: “ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente” que resulte em sofrimento físico ou lesão;
  • c) explicou “tratamento cruel ou degradante”: “conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente” que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize.

O ECA já determinava, desde 1990, que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. A nova lei, portanto, “choveu no molhado”... O Estatuto também já deixava claro que para a sua interpretação deveriam ser levados em conta “os fins sociais” e as “exigências do bem comum”. A atuação mais enérgica dos responsáveis, portanto, nunca foi vedada e, na minha opinião, continuará não sendo...

Não estou a afirmar que o uso da correção física é melhor caminho. Acho até elogiável a previsão da nova lei que instituiu campanhas educativas permanentes acerca da melhor forma de educar. Acontece que para a criação e educação dos filhos, missão bastante dinâmica e cada vez mais desafiante, a repressão mais firme, inclusive com alguma “palmada”, pode se tornar necessária para que certos comportamentos sejam corrigidos, isso se o exemplo e o diálogo não tiverem surtido resultados (quem é pai sabe que às vezes não surtem). Uma intervenção mais rígida poderá, inclusive, evitar mal maior. Lembram-se do caso do garoto que teve o braço dilacerado por um tigre num zoológico? Se o seu pai estivesse mais atento e se a repressão verbal tivesse sido feita e não tivesse adiantado, seria o típico caso de correção física (desde que, é claro, moderada, compatível com o risco que se pretendia repelir).

Por fim, é preciso deixar claro que a “Lei da Palmada” não previu crime algum. As infrações penais relativas aos maus-tratos e à violência contra menores de 18 anos não sofreram alterações. A questão da “palmada” continuará a ser regida pelo art. 136 do Código Penal, que tipificou o crime de maus-tratos: “Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina”. A lei penal prosseguirá reprimindo apenas o “abuso”. E já tenho visto o Ministério Público requerer arquivamento de “palmadas” levando em conta o entendimento que sempre predominou: o de que pequenas correções físicas interessam muito mais ao desenvolvimento de um filho do que a omissão do seu genitor...

Não podemos nos esquecer de que o ECA elenca medidas de proteção tanto para casos de omissão quanto de abuso dos responsáveis legais. Essas medidas devem se pautar, conforme está expressamente escrito, em princípios como o da intervenção mínima (a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas autoridades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do adolescente) e o da proporcionalidade (a medida deve ser a necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou o adolescente se encontram).

Toda regra deve ser interpretada com base em princípios gerais e no que tange à “Lei da Palmada” não deverá ser diferente. Se for utilizada com bom senso, moderação, e com a clara finalidade de evitar que a criança fique exposta a risco maior, acredito, continuará a ser normalmente tolerada. Devemos evitar que a nova lei venha a servir como instrumento de intimidação, inclusive do filho contra o próprio pai que luta pela observância às regras de boa convivência e pelo respeito ao próximo.

Será que uma simples “palmada” reflete o “sofrimento físico” que a lei procurou coibir? Creio que não... A lei, nesse particular, é imprecisa e gera insegurança jurídica. É de questionável efetividade, além de desnecessária. Praticamente “natimorta...

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Sobre o autor
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira

Juiz de Direito - Professor no Unisalesiano - Lins(SP) - Ex-Delegado de Polícia - Mestre em Direito pela ITE - Bauru(SP) - Bacharel em Direito pela Fundação Univem (ficarei honrado se visitar meu blog www.direitoilustrado.blogspot.com, meu Facebook Adriano Ponce Jurídico e meus vídeos em www.youtube.com/adrianoponce10)<br>

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Publicado na Revista Comunica de out/2014 e no Diário de Penápolis de 1º/10/2014

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