Artigo Destaque dos editores

Inexistência de prazo decadencial para a declaração de nulidade de ato administrativo na Administração Pública Federal

01/10/2002 às 00:00
Leia nesta página:

Ante a falta de expressa previsão legal, de há tempos debatem os estudiosos do tema das nulidades e anulabilidades no seio administrativo, se haveria de se cogitar da existência de um prazo, dentro do qual as ilegalidades que inquinam os atos administrativos poderiam ser corrigidas ou não.

Para o solucionamento desta questão foram elaboradas três teorias, que apresentam diferentes formas para resolver o problema:

1°) Pela primeira, propugna-se pela inexistência de prazo decadencial, podendo a Administração a qualquer momento retirar o ato viciado da arena jurídica;

2°) De acordo com a segunda, seria de se aplicar os critérios de direito privado, ou seja, prazos curtos para a invalidação de atos anuláveis, e longos para os atos nulos;

E, sendo o maior prazo instituído no CC de 20 anos, este seria aplicado para a eliminação dos atos nulos. Enquanto que para os anuláveis seria empregado, por analogia, os critérios reinantes para os casos em que se verifique vícios de vontade, para o qual o prazo de invalidação seria de 4 anos.

3°) E, para uma outra corrente de pensamento, deveria ser utilizado, analogicamente, o Decreto n° 20.910/32, cujo art. 1°, determina: As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação, contra a Fazenda federal, estadual, ou municipal, seja qual for sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originam. Bem como com base no prazo instituído para a interposição da ação popular, que prescreve em cinco anos (Lei n° 4.717/65, art. 21)

Isto para que se desse cumprimento ao primado da isonomia de tratamento, oferecendo-se instrumentos processuais equivalentes às partes, para que pudessem defender seus interesses em igualdade de condições. Portanto, se os particulares somente dispunham de cinco anos para proporem as ações judiciais que entendessem convenientes para defender seus direitos, nada mais seria de acordo com os postulados do princípio da isonomia, que se conferir prazo idêntico para que a Administração Pública invalidasse os atos que possuíssem vício de formação, ainda que esta eliminação do ato se operasse no plano administrativo, sem que se recorresse ao Judiciário.

Decreto este que é dotado de força de lei, pois editado no período pós-revolucionário, durante o qual o Chefe do Poder Executivo Federal havia avocado, excepcionalmente, as prerrogativas inerentes ao exercício das funções legislativas.

E que, por força do Decreto n° 4.597/42, art. 2°, a prescrição qüinqüenal prescrita no Decreto n° 20.910/32, foi estendida às autarquias, devendo ser considerada também aplicada as fundações de direito público.

Isto, cumpre ressaltar, para as ações pessoais, pois para as reais permaneceriam sendo aplicados os critérios do CC, art. 177.

Todos estes critérios, entretanto, tendo em vista o princípio da estrita legalidade administrativa – pelo qual o administrador deve, impreterivelmente, pautar sua atuação em consonância com os dispositivos legais existentes (CF, art. 37, caput; Lei n° 9.784/99, art. 2°) – não solucionavam adequadamente a questão, posto que deixava o tema em aberto e suscetível as mais variadas interpretações, e que muitas vezes colidiam frontalmente.com este princípio da legalidade, dado que as soluções apresentadas não se encontravam expressamente previstas na lei.

Entretanto, a despeito de toda esta controvérsia doutrinária e jurisprudencial acerca da existência ou não, de prazos decadenciais para a declaração de nulidade de atos administrativos eivados de vícios insanáveis, no âmbito da Administração Pública Federal esta questão parece ter sido solucionada, com a opção pelo legislador da não estipulação de um lapso temporal, dentro do qual poderia ser exercida a prerrogativa saneadora de extirpação de atos materializados em desconformidade com as normas legais de regência.

O que equivale a afirmar que, no tocante às entidades públicas federais, a invalidação dos atos administrativos portadores dos mais altos graus de ilegalidade, pode ser promovida a qualquer tempo, sem que se possa delimitar um período temporal no qual seria lícito promover sua retirada do mundo jurídico.

Porque, tal estirpe de atos, não são alcançáveis pelos efeitos da decadência, estabelecidos para os atos meramente anuláveis em geral.

Para se chegar a esta conclusão, contudo, desponta imprescindível fazer-se, preliminarmente, a diferenciação entre atos administrativos nulos e anuláveis. Posto que, da correta compreensão no que tange a cada uma destas modalidades de atos materializados pela Administração, poder-se-á facilmente averiguar que não está obstada a plausibilidade jurídica de reapreciação das posturas administrativas, adotadas em desarmonia com a legislação implicada.

Nesta esteira de raciocínio, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, in "Princípios Gerais de Direito Administrativo", Forense, vol. I, 1ª edição, 1969, p. 576/579, traz importantes esclarecimentos no que concerne à diferenciação entre atos administrativos nulos e anuláveis, nos comentários que tece acerca das invalidades que podem contaminar os atos administrativos:

"A invalidade decorre sempre da violação de uma norma jurídica, que faz acarretar essa conseqüência. Pressupõe a prática de ato administrativo contrário à lei, tendo em vista fatos contemporâneos à sua emanação, e, então, os seus efeitos ficam perturbados, ante essa anormalidade...

Será nulo quanto à capacidade da pessoa se praticado o ato por pessoa jurídica sem atribuição, por órgão absolutamente incompetente, ou por agente usurpador da função. Será nulo quanto ao objeto, se ilícito ou impossível por ofensa frontal à lei, ou nele se verifique o exercício de direito de modo abusivo.... Ao contrário, será simplesmente anulável, quanto à capacidade da pessoa, se praticado por agente incompetente, dentro do mesmo órgão especializado, uma vez o ato caiba, na hierarquia, ao superior. Outrossim, será tão-somente anulável o que padeça de vício de vontade decorrente de erro, dolo, coação moral ou simulação."

Entendimento que se coaduna com o estatuído no art. 2°, da Lei n° 4.717/65 (Lei de Ação Popular) que, ao descrever quais são os cinco elementos do ato administrativo (competência, forma, objeto, motivo e finalidade), também aduz quais são as hipóteses, e quando ocorrem, os vícios capazes de macular sua validade.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, in "Direito Administrativo", 5ª edição, 1995, Atlas, p. 201/205, citando Celso Antonio Bandeira de Mello, complementa esta análise, explicitando quando um ato administrativo deve ser reputado nulo ou anulável, de acordo com a possibilidade de ser ou não convalidado:

"... ‘o critério decisivo para distinguir os tipos de invalidade reside na possibilidade ou impossibilidade de convalidar-se o vício do ato’. Os atos nulos são os que não podem ser convalidados; entram nessa categoria:

a) os atos que a lei assim declare;

b) os atos em que é materialmente impossível a convalidação, pois se o mesmo conteúdo fosse novamente produzido, seria reproduzida a invalidade anterior; é o que ocorre com os vícios relativos ao objeto, à finalidade, ao motivo, à causa.

São anuláveis:

a) os que a lei assim declare;

b) os que podem ser praticados sem vício; é o caso dos atos praticados por sujeito incompetente, com vício de vontade, com defeito de formalidade...

Quando o vício seja sanável ou convalidável, caracteriza-se hipótese de nulidade relativa; caso contrário, a nulidade é absoluta. Cumpre, pois, examinar, quando é possível o saneamento ou convalidação...

Convalidação ou saneamento é o ato administrativo pelo qual é suprido o vício existente em um ato ilegal, com efeitos retroativos à data em que este foi praticado." (grifei)

Fosse o ato nulo ou anulável, portanto, poderia se cogitar de, em princípio, ser viável sua invalidação a qualquer momento, posto que inexistiriam prazos legais estipulados para que os atos administrativos eivados de ilegalidade fossem retirados do cenário administrativo.

Posição sustentada, dentre outros, por J. H. Meirelles Teixeira (RDA, 101:325), bem como por Régis Fernandes de Oliveira, "Ato Administrativo", São Paulo, RT, 1978:122, ao reverberar que: ao administrador sempre cabe reconhecer a nulidade de algum ato, desde que praticado com vício, bem como decretar-lhe a nulidade, já que qualquer deles é incompatível com a indisponibilidade do interesse público.

Matiz interpretativa encampada inclusive pelo Supremo Tribumal Federal, ao editar as súmulas representativas da uniformidade dos seus julgados que, em instante algum, fixaram marcos temporais para a invalidação dos atos administrativos acometidos de ilegalidade, sejam nulos ou meramente anuláveis:

"Súmulas

346. A administração Pública pode declarar a nulidade dos próprios atos.

473. A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial."

O Legislador Federal, de sua parte, em sintonia com as diretrizes alinhavadas pela Corte Constitucional, e cônscio da periculosidade que a confirmação de atos praticados ao arrepio das normas vigentes pode acarretar ao harmônico convívio da coletividade, e à manutenção do pacto social, cunhou o art. 114, da Lei n° 8.112/90, preconizando que: a administração deverá rever seus atos, a qualquer tempo, quando eivados de ilegalidade.

Em tese, destarte, qualquer ato administrativo viciado – fosse portador do vezo ensejador da declaração de nulidade, ou da decretação da sua anulabilidade – poderia ser extirpado da arena jurídica sine die (a qualquer momento) na seara da Administração Pública Federal.

Mas, o mesmo Congresso Nacional, atento para as vicissitudes do cotidiano, à alta complexidade que envolve a exata compreensão do ordenamento jurídico pátrio, em razão das miríades de repositórios legais existentes, bem como ao primado da presunção de legalidade dos atos praticados pelos agentes oficiais encarregados de administrar a res publica, houve por bem em fixar um determinado lapso temporal, dentro do qual seria lícito promover a invalidação de uma certa categoria de atos menos ofensivos ao arquétipo jurídico estabelecido, concretizados em desatendimento ao preceituado pela legislação.

Para tal desiderato, positivou a Lei n° 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, e que, no seus arts. 53/54, estatui:

"Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.

Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovado má-fé."

Da leitura conjugada destes dois preceptivos, aliado ao incrustado no art. 114, da Lei n° 8.112/90, várias ilações podem ser extraídas, e que vêm em abono à dialética aqui desenvolvida, de que não há que se cogitar da suposta decadência do direito de declarar a nulidade dos atos administrativos ilegalmente consolidados. Senão, vejamos.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

A um primeiro adejo pelos dizeres dos comandos legais destacados, poder-se-ia chegar ao equivocado convencimento de que, o art. 114, RJU (que não prevê prazo para a invalidação de atos ilegais), teria sido revogado pelo art. 54, da Lei n° 9.784/99 (que estabelece um interstício temporal dentro do qual o ato ilegal pode ser fulminado).

Pois, havendo uma suposta contradição entre ambos – que versam, in genere, sobre processos administrativos na arena federal, e foram veiculados por lei ordinária – seria de se aplicar um dos critérios existentes de superação das antinomias verificadas na lei.

No caso, o cronológico, tendo como referência os anos em que foram publicadas as leis enteladas. Pois versam precipuamente sobre o mesmo tema (processo administrativo), o que exclui o critério da especialidade, bem como por terem sido impostas por leis ordinárias, o que afasta o método hierárquico.

Circunstância que se coadunaria literalmente com o prescrito pela Lei de Introdução ao Código Civil, no seu art. 2°, § 1°. Que, por ser dotada de eficácia de norma de sobredireito (ou superdireito), aplica-se indiscriminadamente a todos os ramos da ciência do Direito.

"Art. 2°. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

§ 1°. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior."

Entrementes, para a hipótese discorrida, tendo em apreço que os dois preceitos apontados não são incompatíveis entre si, bem como que a matéria atinente aos processos administrativos não foi inteiramente regulada novamente – permanecendo em vigor os dispositivos não contraditórios elencados na Lei n° 8.112/90 – seria de se abrir campo para a incidência de outra disciplina ínsita na Lei de Introdução ao Código Civil, agora o consignado no art. 2°, § 2°, que assevera:

"A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior."

Isto porque, em verdade, não se está diante de uma antinomia real da lei, mas sim de um mero conflito aparente de normas (antinomia aparente). Em que basta se investigar amiúde os preceptivos normativos em relevo, para deles se extrair a correta inteligência que viabilizará a aplicação de ambos. Porque, como dito, trata-se, em verdade, de singela aparência de contradição, e não de um real conflito legislativo.

Ou, quando muito, de um conflito entre as normas implicadas que, no máximo, acarretaria a derrogação (e não a ab-rogação) do preceptivo ínsito no art. 114, RJU, no que tange aos atos administrativos anuláveis, posto que para os atos administrativos nulos a disciplina pretérita permanece intacta.

Por conseguinte, tem-se que o art. 114, RJU, dispunha genericamente que não haveria prazo para a eliminação de atos inválidos. O que lidera ao entendimento de que, tanto os atos nulos como os anuláveis, não estavam subordinados a espaços temporais fixos para a promoção das suas invalidações.

Com o advento da Lei n° 9.784/99, art. 54, todavia, duas inovações foram introduzidas, mas que não se conflitam com o disposto no art. 114, RJU (ou quando muito, apenas regulamentam diferentemente a sistemática de invalidação dos atos administrativos anuláveis).

A primeira novidade consiste na determinação legal vinculativa, consistente na impossibilidade jurídica de que os atos meramente anuláveis deixem de ser anulados quando flagrados, como se depreende da expressão cunhada no art. 53: A Administração deve anular.

Porque, é notório, sempre houve a divergência doutrinária e jurisprudencial acerca de ser um dever ou poder discricionário, a prerrogativa de decretar a invalidação de atos administrativos anuláveis.

Do que exemplo o magistério preconizado por Celso Antonio Bandeira de Mello, na obra "Curso de Direito Administrativo", 1999, 11ª edição, Malheiros, p. 337, ao defender que a Administração, perante uma situação em que foi vislumbrada a concretização de ato ilegal, necessitará preambularmente aferir do grau de ilegalidade. E, sendo de pequena monta, e se não acarretar prejuízos ao Estado, deverá convalidar o ato em atendimento ao interesse público na manutenção de um ato praticado por agente oficial, que goza da presunção de legitimidade, para a preservação, inclusive, da segurança jurídica das relações estabelecidas, como corolário do prestígio que devem ostentar os atos consumados pela a Administração:

"O grau de intolerância em relação a categorias de atos inválidos

O grau de intolerância em relação a eles há de ser compassado com o tipo de ilegitimidade. Se esta é suscetível de ser sanada, recusar-lhe em tese a possibilidade de suprimento é renegar a satisfação de interesses públicos em múltiplos casos...

Ademais, há vícios que pouco ou quase nada afetam o interesse finalístico procurado pelo Direito...

Daí que a possibilidade de convalidação de certas situações – noção antagônica à de nulidade em seu sentido corrente – tem especial relevo no Direito Administrativo."

Agora, porém, ante a redação deste art. 53, da Lei n° 9.784/99, fica patente a decisão do Legislador de, na órbita federal, impedir a possibilidade de convalidação de atos anuláveis. Sejam eles portadores de vícios leves ou gravíssimos, a recém-normatização compele o administrador a decretar sua invalidade.

Diferentemente do que se observava pela prescrição contida no art. 114, RJU, pela qual se inferia que somente os atos nulos (como conseqüência da sua própria natureza de ato totalmente inválido), necessitariam, forçosamente, serem defenestrados. Sendo que os atos anuláveis ficariam subordinados as regras gerais de eliminação da ilegalidade. Ou seja, seriam anulados ou convalidados de acordo com o teor de comprometimento da sua validade, e em consonância com o interesse público envolvido.

Entretanto, não se pode olvidar que, a despeito desta regra genérica – que impõe ao administrador o dever de decretar a anulação desta estirpe de atos – foi instituído, ainda, em casos extremos, o permissivo para que, diante de situações que não venham a lesar o interesse público, ou causar prejuízo a terceiros, sejam convalidados os atos anuláveis, nada obstante seu vício de formação (Lei n° 9.784/99, art. 55).

"Art. 55. Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria administração."

Trata-se, sem dúvida, de verdadeira regra de exceção, que deve ser cautelosamente utilizada pelo administrador. Tanto para que não sejam convalidadas situações irregulares, que não mereceriam este tratamento diferenciado, bem como para que outras circunstâncias, realmente ensejadoras do benefício legal, não sejam invalidas desnecessariamente.

Dois aspectos, todavia, precisam ser enfatizados:

1) O de que, esta disposição somente atinge os atos anuláveis; quanto aos nulos continua sendo de aplicação obrigatória o comando constante no art. 114, RJU, que não abre a oportunidade para que o ato seja convalidado.

Pois, no instante em que a norma se refere à possibilidade dos defeitos sanáveis serem convalidados, evidentemente que excluiu sua incidência sobre os atos eminentemente nulos, posto que os defeitos destes não são sanáveis e, portanto, não podem ser convalidados.

2) refere-se à assertiva de que, sendo regra de exceção a diretriz inserta no art. 55, não tem o condão de revogar o princípio geral talhado no art. 53. Equivale a dizer, deparando-se com um ato viciado, passível de ser anulado, o administrador deve, forçosamente, retirá-lo do mundo jurídico. Apenas não o fará se, de acordo com as circunstâncias, for conveniente sua convalidação, e desde que não lese o interesse público, ou venha a causar prejuízo a terceiros.

A questão poderia ser analisada, analogicamente, com o estatuído no art. 23, do Código Penal, que atua como regra de exceção no instante de se fazer a capitulação de uma conduta numa das figuras penais disciplinadas pela legislação criminal (excludentes de ilicitude, ou de antijuridicidade).

"Código Penal

Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:

I – em estado de necessidade;

II – em legítima defesa;

III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de um direito.

Parágrafo único..."

Vale dizer, praticada uma conduta abstratamente descrita pela normatização penal, incontornavelmente deverá ser reputada como crime. Mas, se esta conduta se amoldar a uma das situações previstas no art. 23, CP, deixará de ser crime por faltar-lhe um elemento essencial de constituição.

A segunda alteração de tratamento – continuando a interpretação dos arts. 53/54, da Lei n° 9.784/99, após esta breve digressão – consiste no estabelecimento de um prazo decadencial para a decretação destas anulações.

Significa dizer, ainda que o ato seja carecedor de legalidade de isofismável gravidade, após a barreira temporal dos cinco anos da sua concretização, restará invibializada sua anulação, como preceitua o art. 54, primeira parte, da Lei n° 9.784/99: O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos.

A distinção importante a ser enfatizada é que, em nenhum instante se cogitou de estipular um prazo decadencial, ou mesmo prescricional, para a declaração de nulidade dos atos eminentemente nulos. Para estes, permanece em vigor a disciplina do art. 114, RJU, escorada nos ensinamentos doutrinais e jurisprudenciais a respeito.

Para esta estirpe de atos viciados, não haveria necessidade do legislador ter positivado, em tom de severa advertência, que a Administração deveria declará-los nulos, posto ser este um consectário lógico e inafastável da sua formação ilegítima.

A faculdade de anular ou não, como ressalvado anteriormente, somente era reservada aos atos anuláveis. Mas que, hodiernamente, com a codificação dos arts. 53 e 54, da Lei n° 9.784/99, foi derradeiramente eliminada na esfera federal, exceto nas situações excepcionais a que faz referência o art. 55.

Aliás, o art. 114, da Lei n° 8.112/90, que não prevê a possibilidade de prescrição ou decadência do direito-dever de correção das ofensas máximas à legalidade dos atos administrativos, não é um dispositivo isolado no arcabouço normativo nacional. Outras hipóteses existem, em que certas pendências administrativas são consideradas imprescritíveis enquanto não solucionadas.

Neste diapasão, pode ser mencionada, à guisa de exemplo, à diretriz insculpida no art. 37, § 5°, da Carta de Outubro, de que as ações de ressarcimento para o repatriamento de verbas públicas ilicitamente desviadas são imprescritíveis:

"Art. 37....

§ 5°. A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento."

Aliás, a própria redação do art. 54, caput, parte final, da Lei n° 9.784/99, já prevê a impossibilidade de ocorrência da decadência dos atos administrativos anuláveis, na hipótese de comprovada má-fé na concessão do ato, ou mesmo se do ato não decorrerem efeitos favoráveis para os destinatários.

Ou seja, se o ato for nulo, a declaração da sua nulidade será imprescritível, e não sujeita a prazos decadenciais (Lei n° 8.112/90, art. 114); se for anulável, deverá ser anulado no prazo de cinco anos, salvo se comprovada má-fé ou mesmo se do ato não decorrerem efeitos favoráveis para os destinatários, hipótese em que poderá ser anulado a qualquer momento (Lei n° 9.784/99, art. 54), e ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento em razão da prática de ato ilícito que, por força de mandamento constitucional, também são imprescritíveis (CF, art. 37, § 5°).

Não restando espaço, portanto, para a invocação do princípio da segurança jurídica, que propugnaria em favor do reconhecimento da decadência ou da prescrição do direito de se efetuar a revisão do ato inquinado de ilegalidade.

É cediço que o Direito não se resume à lei, sendo que esta pode mesmo ser considerada sua menor parcela representativa. Sendo viável a identificação de outras regras imanentes ao Direito que não fazem parte do roteiro legal positivado, mas exercem poderosa influência na vida da coletividade, como é o caso, ilustrativamente, do primado da segurança jurídica.

Mas nem mesmo a premissa metajurídica da segurança jurídica, poderia ser evocada para se justificar uma suposta existência, à revelia de lei específica, de prazos prescricionais ou decadencias para se consumar a eliminação de um ato nulo.

Porque às relações estabelecidas somente é lícito delegar estabilidade imutável, salvos eventuais exceções, se forem concretizadas em consonância com as normas vigentes à época em que foram materializadas (CF, art. 5°, XXXVI; LICC, art. 6°):

E, se o ato possui defeito de formação, certamente que não lhe pode ser atribuída a estabilidade derivada nem do ato jurídico perfeito, nem do direito adquirido. Pois, se não foi consumado em consonância com as leis ao tempo vigentes, por certo que não poderá ser reputado de ato jurídico perfeito.

E, como o instituto do direito adquirido nada mas é que uma proteção adicional deferida aos atos jurídicos perfeitos, uma vez que estes não tenham se concretizado, não se poderão valer da guarida somente outorgadas aos genuínos direitos adquiridos.

Do contrário, seria a própria segurança jurídica que restaria prejudicada, por estar aberta a possibilidade de sedimentação de situações consolidas ao arrepio da lei, sem o devido calço legal.

Pois, em contraposição a outros países filiados ao sistema da common law, onde o Direito posto não deriva necessariamente das leis elaboradas pelo Parlamento, o Brasil encampou o modelo da civil law, arrimado quase que exclusivamente no jus scriptum, ou seja, no Direito Objetivo imposto pelo Estado, mediante a intermediação do Poder Legislativo.

Fato que demanda de todos a reverência ao texto de lei escrito, por ser precisamente a certeza de que estas leis serão observadas, que mantém as instituições nacionais em funcionamento e merecedoras do respeito dos cidadãos.

Mormente quando se trata de um ente da Administração Pública, que está inarredavelmente lastreada aos textos legais que lhe regulam a atuação, em obediência ao princípio da estrita legalidade administrativa e da supremacia do interesse público sobre o particular (Lei n° 9.784, art. 2°; CF, art. 37, caput).

A ilegalidade corroborada pela mera alegação do decurso do tempo, com exceção das ressalvas pontuais existentes, desacreditaria o próprio Estado de Direito, que tem como esteio e escudo a ordem jurídica estabelecida.

É certo que a serenidade das relações jurídicas pode resultar levemente abalada se não houver a estipulação de um interstício temporal limitado, dentro do qual poderão ser questionadas. Mas não se afigura ilícita a minimização axiológica deste princípio, se for para se dar guarida a outras conjecturas de igual ou maior envergadura, decorrentes da vida em sociedade. Que, em final análise, vêm mesmo em contribuição à manutenção desta segurança jurídica, ainda que à uma primeira vista pudesse se cogitar que seria desarrazoadamente prejudicada.

Do que é ilustração os contornos delineados aos direitos à vida e a liberdade, para muitos considerados os dois maiores bens inerentes ao ser humano. Segundo os postulados do jus naturalismo (Direito Natural), a vida e a liberdade são atributos essenciais dos indivíduos, que estão na própria ordem das coisas, e que por isso independem do reconhecimento pelas leis escritas para que sejam valorados em situações que estejam em periclitação, em razão de preexistirem à constituição da própria superestrutura Estatal.

Mas até mesmo nestas ocasiões estes princípios podem sofrer rigorosas limitações. Admitindo-se, inclusive, a cominação da pena capital, tolhendo-se a vida de um ser humano, ou a privação da liberdade dos culpados pela perpetração de práticas criminosas (CF, art. 5°, XLVII, "a"; LIV).

Ora, se até mesmo o direito à vida e à liberdade de um homem podem ser relativizados, o que se dirá do direito (patrimonial ou não) ilicitamente exercido, resultante da prática de ato incompatível com a lei.

Orientação diversa, pretendendo-se conferir a ferro e fogo primazia à manutenção de determinadas situações jurídicas, consolidadas em dissonância com as normas de regência, mormente se constituídas no âmbito da Administração Pública, iria mesmo de encontro, seriam contrárias, aos princípios mais caros da ciência jurídica.

Porque, como já alertava Cicero nos tempos de outrora, summum jus, summa injuria (a justiça exagerada se transforma em injustiça). Ou, nas palavras de Carlos Maximiliano, do exagero do Direito resulta a suprema injustiça.

E, como tudo aquilo que é juridicamente garantido é também juridicamente limitado (Guido Zanobini), não há como se escapar do entendimento de que, situações administrativas ilicitamente constituídas mediante a edição de ato administrativo nulo, não podem ser consideradas inatingíveis por atos administrativos posteriores que colimem restabelecer sua legalidade.

Aliás, o primado da segurança jurídica continua sendo preservado pois, os atos administrativas concretizados não estão irrestritamente sujeitos a serem invalidados pela Administração. Porque, ainda que determinada situação tenha sido consolidada em desacordo com as regras de regência, será possível – em tese – que venha a se tornar insuscetível de ser reformada, se o argumento utilizado para a retirada do ato do cenário jurídico for a nova interpretação conferida à matéria pela própria Administração, conforme preceitua o art. 2°, parágrafo único, XIII:

"Lei n° 9.784/99

Art. 2°. A Administração Pública obedecerá dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

XIII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação."

Equivale a dizer, praticado o ato em consonância com o entendimento reinante na esfera Administrativa – desde que não configure interpretação insofismavelmente arquitetada para burlar o escopo da norma – em princípio, não será mais possível sua reformulação para adaptá-lo à nova exegese, em homenagem ao primado da segurança e da estabilidade das relações jurídicas.

Circunstância que revela a preocupação do legislador para que injustiças não sejam cometidas, como decorrência da invalidação de todo e qualquer ato administrativo. Mas somente daqueles realmente capazes de comprometer a integridade da estrutura administrativa, enquanto sistema engendrado para promover a consecução do bem comum.

Destarte, pode concluir-se que, se for constatada a existência de um ato praticado pela a Administração Pública Federal, que esteja estigmatizado pela mácula indelével geradora de sua nulidade, nada impede – ressalvados eventuais hipóteses expressamente previstas em lei, para as quais seja conferido tratamento diferenciado – seja promovida a sua revisão a qualquer tempo, mediante o devido processo legal, tendente a desconstituir a situação irregularmente consolidada, posto que imune aos efeitos dos prazos decadenciais outorgados às demais categorias dos atos meramente anuláveis.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Sérgio de Oliveira Netto

Procurador Federal. Mestre em Direito Internacional (Master of Law), com concentração na área de Direitos Humanos, pela American University – Washington College of Law. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE (SC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA NETTO, Sérgio. Inexistência de prazo decadencial para a declaração de nulidade de ato administrativo na Administração Pública Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3295. Acesso em: 24 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos