A tentativa e a circunstância alheia interna

20/10/2014 às 23:13
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Tício, querendo matar Mévio, disparou três tiros. Mévio, alvejado mortalmente, caiu e ficou imóvel, fingindo-se de morto. Tício ainda colocou o revólver na cabeça de Mévio, mas, por achar que a vítima já estava morta, não disparou o restante dos tiros.

Tício, querendo matar Mévio, disparou três tiros. Mévio, alvejado mortalmente, caiu e ficou imóvel, fingindo-se de morto. Tício ainda colocou o revólver na cabeça de Mévio, mas, por achar que a vítima já estava morta, não disparou o restante dos tiros e foi embora. Aponte a solução jurídica, considerando que:

Aponte a solução jurídica, considerando que:

a) Mévio não morreu;

b) o Promotor de Justiça denunciou Tício por tentativa de homicídio;

c) o advogado, no plenário do Júri, alegou que o crime foi de lesão corporal, pois seu cliente desistiu voluntariamente, já que podia ter continuado a matar Mévio, e nenhuma circunstância alheia o impediu. Se não existiu circunstância alheia inibidora da vontade do agente ativo, inexiste tentativa.


Solução jurídica:

A tentativa é a realização incompleta do tipo. Trata-se de um caso de defeito de congruência: o tipo subjetivo aparece completo, mas o tipo objetivo aparece incompleto, inacabado.1

Para haver delito tentado, exige, o art. 14. do Código Penal, que o agente inicie a execução do delito, com intenção de consumá-lo, e que a consumação não ocorra por razões alheias à vontade do agente.

Por ser evidente, se iniciada a execução, e a consumação deixar de ocorrer porque o agente não quis que ocorresse, tem-se desistência voluntária ou arrependimento eficaz, casos em que o agente só responde pelos atos anteriores.

O artigo 15 do Código Penal é bem claro:

“O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados”.

Na desistência voluntária, o agente “suspende o curso do processo executório”, podendo livremente continuá-lo, desistindo da consumação delitiva;

Exemplo I. O agente que cogita e se prepara para envenenar a vítima, mas, no momento em que esta vai, desavisadamente, ingerir a substância letal, impede que o fato ocorra (desistência voluntária).

Segundo a fórmula de Frank, existirá a desistência voluntária sempre que o agente pode prosseguir, mas não quer; se ele quer, mas não pode, há tentativa.

Configura-se o arrependimento eficaz, quando o agente, “tendo praticado todos os atos suficientes para a consumação do tipo penal”, arrepende-se e atua em sentido contrário, evitando a ocorrência do resultado proibido pela lei repressiva.

Exemplo II. Pode ocorrer, todavia, que a vítima sorva o veneno e o agente, imediatamente, por ato voluntário, ministre-lhe um antídoto, impedindo o resultado morte (arrependimento eficaz). Em ambos os casos, o agente só é responsável pelos atos já praticados.

Nos dois casos supracitados, não poderá haver tentativa, pois o agente ativo iniciou a execução, mas “não houve uma circunstância alheia que inibiu a vontade do autor”.

Mas, há algo que a doutrina não explica, há duas espécies de circunstância a alheia.

DIVISÃO DA CIRCUNSTÂNCIA ALHEIA

Muñoz Conde leciona que a voluntariedade de uma conduta, no sentido de livre e espontânea, supõe que o autor tenha a possibilidade de seguir atuando. Se essa possibilidade falta por razões psíquicas, físicas ou técnicas, a questão da voluntariedade sequer se coloca.1

A circunstância alheia pode ser:

a) externa (física ou técnica);

b) interna (psíquica).

A circunstância alheia externa é um fator real que inibe a vontade do agente, fazendo com que o autor, sem querer, deixe de consumar o delito.

A circunstância alheia interna é um fator tácito ou imaginário que também inibe a vontade do agente, fazendo com que ele, sem querer, deixe de consumar o delito.

A circunstância alheia externa, por ser um fator real, faz com que o agente ativo pense: “Eu quero consumar, mas não posso.” Exemplo: o agente ativo iniciou a execução de um crime, mas a polícia chegou atirando.

A circunstância alheia interna, por ser um fator imaginário, faz com que o agente pense que está diante de duas hipóteses:

1ª hipótese: ele supõe que existe uma circunstância alheia real, “ele quer consumar, mas acha que não pode”. Exemplo: um ladrão entrou na casa de Petrus e começou colocar objetos em um saco. De repente, a janela abriu-se e o agente ativo, pensando que alguém estava entrando na casa, saiu correndo. Note que o agente ativo não desistiu voluntariamente, e sim achou que existia uma circunstância alheia real.

2ª hipótese: Ele supõe que o delito já esteja consumado. “O agente ativo quer consumar, mas acha que não é mais necessário, por entender que o delito já está consumado.”

O exemplo é o caso que estamos comentando: veja que “Tício ainda colocou o revólver na cabeça de Mévio, mas, por achar que a vítima já estava morta, não disparou o restante dos tiros e foi embora”. Perceba que o agente ativo não desistiu voluntariamente, e sim achou que o delito já estava consumado; portanto, não era mais necessário continuar a execução.

Conclusão didática. No caso em comento, Tício responde por tentativa de homicídio.

Houve uma circunstância alheia interna que inibiu a vontade do agente, fazendo com que ele, sem querer, deixasse Mévio vivo. Observe que só existe desistência voluntária ou arrependimento eficaz quando o agente ativo pode afirmar:

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“Posso continuar, mas não quero mais consumar o delito.”


NOTAS

1 Nesse sentido, MACHADO. Direito Criminal, p. 155.

2 No mesmo sentido: Muñoz Conde, Francisco. El Desistimiento Voluntario de Consumar el Delito. Bosch, Barcelona: Casa Editorial, p. 75-76.

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Sobre o autor
Francisco Dirceu Barros

Procurador Geral de Justiça do Estado de Pernambuco, Promotor de Justiça Criminal e Eleitoral durante 18 anos, Mestre em Direito, Especialista em Direito Penal e Processo Penal, ex-Professor universitário, Professor da EJE (Escola Judiciária Eleitoral) no curso de pós-graduação em Direito Eleitoral, Professor de dois cursos de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal, com vasta experiência em cursos preparatórios aos concursos do Ministério Público e Magistratura, lecionando as disciplinas de Direito Eleitoral, Direito Penal, Processo Penal, Legislação Especial e Direito Constitucional. Ex-comentarista da Rádio Justiça – STF, Colunista da Revista Prática Consulex, seção “Casos Práticos”. Colunista do Bloq AD (Atualidades do Direito). Membro do CNPG (Conselho Nacional dos Procuradores Gerais do Ministério Público). Colaborador da Revista Jurídica Jus Navigandi. Colaborador da Revista Jurídica Jus Brasil. Colaborador da Revista Síntese de Penal e Processo Penal. Autor de diversos artigos em revistas especializadas. Escritor com 70 (setenta) livros lançados, entre eles: Direito Eleitoral, 14ª edição, Editora Método. Direito Penal - Parte Geral, prefácio: Fernando da Costa Tourinho Filho. Direito Penal – Parte Especial, prefácios de José Henrique Pierangeli, Rogério Greco e Júlio Fabbrini Mirabete. Direito Penal Interpretado pelo STF/STJ, 2ª Edição, Editora JH Mizuno. Recursos Eleitorais, 2ª Edição, Editora JH Mizuno. Direito Eleitoral Criminal, 1ª Edição, Tomos I e II. Editora Juruá, Manual do Júri-Teoria e Prática, 4ª Edição, Editora JH Mizuno. Manual de Prática Eleitoral, Editora JH Mizuno, Tratado Doutrinário de Direito Penal, Editora JH Mizuno. Participou da coordenação do livro “Acordo de Não Persecução Penal”, editora Juspodivm.

Informações sobre o texto

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