Crimes contra a ordem tributária:

eleição do objeto jurídico e implicações constitucionais

Leia nesta página:

Trata-se de uma rápida análise constitucional sobre os crimes contra a ordem tributária, principalmente a fim de definir quais os objetivos buscados e quais suas consequências para o direito Direito Penal e seu caráter sancionador.

INTRODUÇÃO

            Trata-se de discussão arenosa os crimes contra a ordem tributária. Isto porque a sociedade não está acostumada com a criminalização de condutas que fogem ao cotidiano policial. No entanto, a realidade de necessidade de aumento das arrecadações tributárias para o benefício de toda a coletividade é uma das justificativas para que o Direito Penal venha a se preocupar com tal objeto jurídico.

            Para que se tenha uma melhor compreensão, necessária uma análise do Direito Penal à luz de alguns importantes aspectos de sua Teoria Geral, seja ela do Crime ou da Pena. Com isto, a discussão poderá ficar mais embasada, fazendo uma ponte entre o Direito Penal e o Direito Tributário.

            E esta relação é umbilicalmente ligada quando da análise dos crimes contra a ordem tributária, principalmente no que toca à eleição de seu objeto jurídico.  No mesmo sentido, faz-se mister discorrer sobre o histórico da criminalização de tais condutas no Brasil, principalmente o seu auge, que foi a edição da Lei n. 8.137 de 1990.

            Alguns temas polêmicos serão discutidos, como a necessidade de uma prévia ação fiscal, como condição de procedibilidade da ação penal, bem como a extinção da punibilidade em caso de pagamento.

            Por fim, serão abordadas algumas situações relativas às implicações constitucionais da relação entre Direito Penal e Direito Tributário, com destaque para a inviolabilidade do domicílio e o Direito ao Silêncio.

2. DIREITO PENAL

            Antes de adentrar na questão específica dos crimes contra a ordem tributária, cabe neste instante traçar algumas linhas norteadoras do Direito Penal, notadamente referentes à Teoria Geral do Crime e da Pena, para que tais informações possam dar suporte teórico para a discussão central.

2.1 Aspectos da Teoria Geral do Crime

            O Estado possui o direito exclusivo de punir. Quando se examina o histórico do Direito Penal conclui-se que nem sempre foi desta forma, uma vez que a chamada “vingança” já esteve sob o domínio divino e privado, antes de chegar ao público, que com a figura do Estado Moderno tornou-se mais forte.

            O jus puniendi a todo instante irá guerrear o status libertatis. Isto porque se de um lado o Estado visa aplicar as sanções cabíveis quando do cometimento de infrações penais, os cidadãos querer a todo tempo preservar o seu direito de liberdade.

            No entanto, para que o Estado venha a colocar a sua mão de ferro sobre os agentes criminoso, deve haver a provocação ao Poder Judiciário (poder do Estado responsável para julgar, processar e condenar) através de uma Ação Penal, que é um direito subjetivo constitucional. Tal direito poderá ser exercido pelo próprio Estado nas ações penais públicas ou pelos cidadãos, nas privadas. O Estado, nestes casos últimos, transfere o direito de ação, não o de punir.

            Proposta a ação, o Estado somente poderá punir se houver o respeito aos direitos e garantias processuais, que se resumem no devido processo legal. Sem seguir estes passos, qualquer decisão é completamente arbitrária e nula.

            E que espécies de condutas o mesmo Estado deverá criminalizar? Segundo Binding e Jescheck, o Direito Penal possui uma função fragmentária. Ou seja, o Direito Penal somente irá criminalizar aquelas condutas que violem os bens jurídicos mais importantes para o funcionamento da sociedade, aqueles considerados indispensáveis, como a vida, a liberdade, a honra, o patrimônio.

            Nesta senda, o Direito Penal, quando da proteção dos diversos valores e bens, se relaciona com todas as outras disciplinas jurídicas, inclusive o Direito Tributário. Pois apenas de ser a ultima ratio, o último recurso a ser utilizado pelo Estado para trazer novamente a paz social, o Direito Penal tornou-se importante e imprescindível para o combate às condutas nocivas relativas à arrecadação de tributos.

Daí afirmar que apesar da existência do princípio da intervenção mínima como norteador do Direito Penal, a preservação da arrecadação tributária é considerada, atualmente, como relevante para a proteção. Tal criminalização não poderá jamais ser confundida com a sanção civil e administração previstas para os mesmos ilícitos, uma vez se tratarem de searas distintas.

2.2 Aspectos da Teoria Geral da Pena

            Por que punir penalmente quem deixa de pagar tributos? Quando o Estado, através do Poder Legislativo Federal, resolve criminalizar uma conduta, sopesa em relação à proporcionalidade entre a conduta criminosa e a sanção penal. Esta é prevista para cumprir uma série de objetivos.

           Para a Teoria absoluta ou da retribuição, o fundamento da sanção penal é a exigência da justiça. Pune-se o agente porque cometeu o crime. Para a Teoria relativa, finalista, utilitária ou da prevenção, o sentido pode ser dividido em relação aos efeitos para a sociedade e para o condenado.

            À sociedade tem-se o efeito geral negativo, significando o poder intimidativo que ela representa a toda a sociedade, destinatária da norma penal, e o geral positivo, demonstrando e rearfimando a existência e a eficiência do Direito Penal. Ao criminoso, o especial negativo, significando a intimidação ao autor do delito para que não torne a agir do mesmo modo, recolhendo-se ao cárcere, quando necessário e evitando a prática de outras infrações penais; e o especial positivo, que consiste na proposta de ressocialização do condenado, para que volte ao convívio social.

           Para a Teoria mista, eclética, intermediária ou conciliatória, adotada pelo Código Penal brasileiro (art. 59, caput, CP), fundiram-se as duas correntes. Passou-se a entender que a pena, por sua natureza, é retributiva, tem seu aspecto moral, mas sua finalidade é não só a prevenção, mas também um misto de educação e correção.

           Atualmente, muito se discute acerca das chamadas Teorias extremadas da pena: Direito Penal mínimo e Direito Penal máximo. O primeiro prega a descriminalização e a despenalização, enquanto o outro a punição com rigor, a proteção de todos os bens jurídicos, em vez dos mais importantes.

           A criminalização dessas condutas, afora o caso da má redação e ambigüidade dos tipos penais tributários, bem como a penalização de condutas que consistiriam meras infrações administrativas é um exemplo das conseqüências desse movimento da lei e ordem da década de 90.

3. DIREITO TRIBUTÁRIO

Sobre a incidência do Direito Penal na relação jurídico tributária, há um grande embate doutrinário, surgindo diversos questionamentos sobre quais seriam os objetivos e os fundamentos para tal incidência. Neste ponto, buscaremos especificar qual o verdadeiro objeto desta relação.

Primeiramente, importa esclarecer que boa parte da doutrina afirma que o verdadeiro objetivo desta incidência seria o combate ao crime tributário, desestimulando, dessa forma, atitudes contrárias às políticas de arrecadação do fisco.

Esse, sem dúvidas, é o grande objetivo dos parlamentares brasileiros ao positivarem tal incidência. No entanto, surge o seguinte questionamento: é realmente legítimo utilizar o direito penal para combater atitudes dos contribuintes contrárias ao interesse arrecadatório do fisco, principalmente, observando o caso particular brasileiro?

4. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA

A finalidade dos tipos penais tributários é a repressão à utilização de meios fraudulentos e ilícitos para evitar o pagamento de tributos devidos. Para que se entenda com mais precisão tal objetivo, faz-se mister conhecer o objeto jurídico de tais delitos, ou seja, os bens jurídicos protegidos. Não se trata de objeto material do crime, que é a pessoa ou objeto sobre os quais se incidem as condutas criminosas. Trata-se do valor da sociedade que deve ser objeto de tutela.

4.1 Eleição do objeto jurídico

Importa perquirir qual o verdadeiro objeto jurídico protegido nesta relação entre direito penal e direito tributário.

Neste ponto, em específico, devemos observar que aquilo praticado pela Administração Fiscal brasileira se distancia bastante da interpretação da legislação, tida como correta, dada pela doutrina especializada do assunto.

Enquanto, no primeiro caso, busca-se demonstrar, através de atitudes, que o objeto da relação entre direito penal e direito tributário seria o interesse imediato da arrecadação, o segundo argumenta que, na realidade, o objeto seria a defesa da ordem tributária.

De fato, o direito positivo traz expressamente que a legislação busca a defesa da ordem tributária e, baseados nessa premissa, a doutrina majoritária tenta demonstrar que este deve ser o seu verdadeiro espírito, mesmo que os objetivos dos parlamentares ao elaborarem as leis e as atitudes da administração fiscal brasileira sejam outros. Um exemplo amplamente citado para se chegar a tal conclusão é o texto trazido na tipificação do excesso de exação, vejamos:

Segundo o texto legal, pratica o crime de excesso de exação aquele funcionário que exige tributo que sabe ou deveria saber indevido, ou, quando devido, emprega na cobrança meio vexatório ou gravoso que lei não autoriza. Ou seja, segundo Hugo de Brito Machado[1] resta devidamente demonstrado neste dispositivo legal que o objeto da incidência do Direito penal sobre a relação jurídico tributária vai muito mais além do que simplesmente o interesse de arrecadar, pois neste dispositivo se defende o patrimônio do contribuinte contra a cobrança indevida de um tributo, ou até mesmo quando devido, protege-se a moral do contribuinte contra utilização de meio vexatório ou gravoso não autorizado por lei.

Então, observando que o objeto da relação entre o Direito Penal e o Direito Tributário não é o “mero” interesse arrecadatório e sim, como bem trazido pela própria legislação positiva e pela doutrina, a defesa da ordem tributária, questiona-se: o interesse de arrecadar do estado estaria abrangido pelo significado de ordem tributária?

Tendo em mente que o significado de ordem tributária, de forma simples, é o conjunto de normas jurídicas relacionadas à tributação, ou seja, são aquelas normas que garantirão a existência e a continuidade da relação jurídico-tributária do contribuinte com o fisco, devemos analisar se o desfalque patrimônio decorrente das atitudes dos contribuintes podem afetar ou não a existência do próprio Estado ou do sistema tributário em si.

Para a doutrina de Rodrigo Sanchez Rios, ao considerar que, nos crimes fiscais, protege-se tanto um bem jurídico imaterial mediato, que seria a própria função tributária, bem como um bem jurídico específico imediato, que seria o patrimônio, pautando suas idéias basicamente sob o prisma do princípio da Solidariedade, há uma conciliação entre o interesse de arrecadar do Estado com a defesa da própria ordem tributária.

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Já para a doutrina de Hugo de Brito Machado, fundamentando-se no sentimento de que deve ser garantida a existência do Estado, entende que o bem jurídico protegido pelas normas que definem os crimes contra a ordem tributária é a função que o tributo deve exercer de acordo com as normas constitucionais.

Para complementar tais idéias, a doutrina (Gonzalo Rodriguez Mourullo) traz, como justificativa para a criminalização do ilícito tributário, dois fundamentos principais: o primeiro deles é o de que, com a criminalização e conseqüente punição do Eestado, possibilita-se o restabelecimento dos princípios éticos violados pelo autor do crime; e o segundo é no sentido de que tal criminalização produziria efeitos úteis aos dirigentes da sociedade.

Como se vê, no primeiro caso, haveria uma tentativa de compensação por parte do estado, uma tentativa de reeducação do criminalizado, demonstrando qual a conduta ética correta; enquanto que, no segundo caso, seria mais uma imposição pelo terror dirigido àquele possível autor do crime, amedrontando-o de realizar o crime.

Parte da doutrina argumenta a impossibilidade de se acatar o primeiro posicionamento, no caso particular brasileiro, devido à clara ausência de moral da administração nacional para atribuir a tal fundamento a sua justificativa. É evidente que a má-aplicação dos recursos advindos da pesada carga tributária imposta aos contribuintes, principalmente, nos seguintes aspectos:

1) Os serviços públicos prestados são de péssima qualidade, necessitando que os cidadãos tenham que realizar a substituição destas pelas prestações privadas, sendo, dessa forma, onerados duplamente; pois, além de arcar com a pesadíssima carga tributária, que não trazem retorno algum, devem arcar com segurança, educação e saúde particulares, etc.

2) Além disso, as atitudes dos governantes ao descumprirem as leis e decisões judiciais, agindo como se estivessem acima do estado democrático de direito; a imensa dificuldade de sucesso com processos administrativos e a demora das decisões judiciais, mesmo quando o contribuinte possui pleno e reconhecido direito; sem contar os constantes casos de sanções políticas, que são corriqueiramente aplicadas pela administração; acrescentando-se os inúmeros casos de corrupção que demonstram a má aplicação dos recursos públicos e das contribuições compulsoriamente retiradas dos cidadãos, que dão a sensação ao contribuinte de que melhor seria aplicação da verba pública em sua empresa do que nas contas dos familiares dos agentes políticos.

3) Também a imensa complexidade das normas tributárias que dificultam a observância dos direitos possuídos pelos contribuintes, além de dar uma grande dificuldade na sua arrecadação, dificultando sobremaneira o entendimento e clareza do contribuinte para com o sistema tributário, passando o sentimento de desonestidade do fisco para com o contribuinte.

4) Não possamos nos esquecer de outro grande fator é o tratamento tributário injusto, no qual os grandes empresários conseguem fugir da alta tributação enquanto os de menores portes são tributados de maneira severa, impossibilitando até a competição com os outros empresários favorecidos pela legislação e incentivos fiscais dados pela administração.

Assim diante de tal cenário, há um verdadeiro desestímulo para o contribuinte cumprir com suas obrigações tributárias, pois o estado sequer possui respaldo moral para criminalizar o ilícito tributário, vejamos a conclusão dado pelo doutrinador Hugo de Brito Machado no mesmo sentido:

Um estado que não cumpre com seus deveres básicos fundamentais para com a sociedade, não garante sequer a educação e a segurança, não tem respaldo moral para criminalizar o ilícito tributário.

Como se vê a justificativa para a criminalização do ilícito tributário, sob a lógica dos fatos, é a aplicação do terror, ou seja, o efeito intimidador da pena. Mas tal entendimento apesar de constantemente aplicado pelo Poder Legislativo brasileiro é passível de inúmeras críticas, pois estaria utilizando o Direito Penal para atacar as causas de ilícito, não sendo este meio o mais eficiente para tanto, pois o Direito Penal tem por fim atacar as conseqüências de um ilícito e não suas causas. Este poder intimidador deveria atuar apenas de forma secundária e não de forma primordial, ou seja, necessário seria realizar atividades positivas do Estado para evitar as causas do ilícito tributário. E os maiores motivos para prática de tais ilícitos, como se viu, é a falta de respeito da Administração pelos contribuintes, degradando esta relação jurídico-tributária.

Os crimes contra a ordem tributária afetam não somente vítimas determinadas, mas também o funcionamento eficaz e planejado das políticas públicas de redistribuição da riqueza nacional. No entanto, indaga-se: O objeto de proteção dos crimes tributários tem sido exclusivamente o de garantir os cofres públicos? Poderia equivaler em última instância à possibilidade de prisão por dívidas?

4.2 Histórico

O Código Criminal do Império, de 1830, tipificou como crime as condutas de contrabando e descaminho. O Código Penal Republicano, de 1890, reafirmou o conteúdo anterior. No Código Penal de 1940, a evasão fiscal foi posta sob o ponto de vista do patrimônio individual.

Com a Lei nº. 4.357/65, e diante do Estado Social de Direito, o poder público inicia uma intervenção em setores dos particulares. Trazia a previsão do crime de apropriação indébita. No mesmo ano, a Lei nº. 4.729/65 tipifica os crimes de sonegação fiscal propriamente ditos.

Somente com a Lei nº. 8.137/90 foram definidos os crimes contra a ordem tributária e fixadas as penas aplicadas a estes. Foi promulgada em um momento de crise do Governo Sarney, momento este em que a inflação mostrava-se descontrolada. O art. 14 da referida lei revogou parcialmente a Lei nº. 4.729/65, passando a determinar que a extinção da punibilidade pelo pagamento se dava quando este era anterior à denúncia (e não mais à ação fiscal).

Seguiu-se, então, uma série de mudanças. A Lei nº. 8.383/91 revogou o art. 14, da Lei nº. 8.137/90, voltando a ser aplicada a Lei nº. 4.729/65. A Lei nº. 9.249/95, em seu artigo 34, repristinou o art. 14, da Lei nº. 8.137/90. A Lei nº. 9.430/96 determinou, em seu art. 83, que a autoridade administrativa não poderia enviar informações ao Ministério Público antes do fim do procedimento administrativo, dando origem às discussões acerca da relação entre as instâncias administrativa e penal nos crimes contra a ordem tributária.

4.3 Ação Penal e Ação Fiscal

Uma vez que os crimes contra a ordem tributária estão diretamente ligados ao não pagamento de um tributo devido, o papel do procedimento administrativo de lançamento do débito tributário deve ser discutido

Trata-se de uma condição de procedibilidade. Os crimes contra a ordem tributária são entendidos como crimes de resultado, em que só há a consumação dos delitos quando se atinge um fim de natureza material, há a necessidade de uma demonstração real do dano causado. A ação fiscal, portanto, passa a ser condição de procedibilidade da ação penal.

Dessa forma, o término do procedimento administrativo é sim necessário para que, uma vez caracterizada a existência de obrigação tributária não cumprida, haja o interesse de agir do Ministério Público e, conseqüentemente, a justa causa da ação penal

4.4 Extinção da punibilidade

Segundo o artigo 34 da Lei 9.249/95:

Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei 8.137, de 27.12.1990, e na Lei 4.729, de 14.07.1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.

Trata-se, portanto, de norma de direito penal inserida em diploma de natureza tributária. É exceção na sistemática do direito penal. O legislador, de modo geral, atribuiu à reparação do dano causado: a diminuição (art. 16 do Código Penal), ou a atenuação da pena (art. 65, III, CP), conforme esta reparação ocorra, respectivamente, antes ou depois do recebimento da denúncia.

A única exceção até então existente era a do peculato culposo (art. 312, § 3º, CP). Deve ser realizado em sua integralidade, incluindo a correção monetária dos valores e multa, não extinguindo a punibilidade a mera renegociação da dívida.

A admissão da extinção da punibilidade pelo pagamento atende apenas aos interesses de uma minoria, detentora do poder econômico.

Há o entendimento de que o bem jurídico protegido pelos crimes tributários é mais do que a mera proteção à arrecadação do Fisco. É também a fidedignidade das informações prestadas ao Erário, o que impede que a punibilidade seja concebida como plenamente extinta com o mero pagamento da dívida.

Com a Lei nº. 10.684/03, houve nova modificação no que concerne à extinção da punibilidade dos crimes contra a ordem tributária. A referida lei, que instituiu o Programa de Parcelamento de Débitos Fiscais, REFIS II, trouxe uma previsão ampla da extinção da punibilidade, de modo a atingir não apenas as hipóteses de parcelamento de débitos fiscais. De acordo com o art. 9º, §2º, do mencionado diploma legal, o pagamento integral dos débitos tributários extingue a punibilidade sem que haja qualquer limitação temporal. O art. 34, da Lei nº. 9.249/95, foi então revogado.

5. IMPLICAÇÕES CONSTITUCIONAIS DA RELAÇÃO ENTRE O DIREITO PENAL E O DIREITO TRIBUTÁRIO

CF, Art. 145, §1º. Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitando os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

Como vemos, o §1º do art. 145, da Constituição Federal, traz prerrogativas à administração tributária, mas restringe sua atuação para que haja sempre respeito aos direitos individuais e sempre seja pautada no princípio da legalidade. Assim, podemos afirmar que os destinatários destas restrições são os agentes administrativos no que diz respeito a agir na estrita legalidade e o legislador, como também o agente administrativo, no que diz respeito a observar os direitos fundamentais.

Especialmente, nesta última, as implicações constitucionais da relação ente direito penal e direito tributário são inúmeras, sendo tratadas aqui apenas as mais relevantes, especialmente aquelas previstas no art. 5º, incisos II, X, XI, XII, XIII e XV.

5.1 Inviolabilidade do domicílio.

CF, Art. 5°. (omissis)

XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

Um primeiro questionamento que surge é sobre o conceito de domicílio. Hoje tal questionamento encontra-se um tanto o quanto superado, uma vez que a doutrina e jurisprudência majoritárias têm se posicionado pela possibilidade de tal conceito ser bastante abrangente.

O próprio STF, em julgado de 22 de janeiro de 1993, rejeitou a distinção de domicílio profissional. Também Pontes de Miranda defendia, há muito, que o conceito de domicílio deveria ser absoluto, devendo ser preservada a intimidade dos indivíduos.

A Constituição da República, como vimos, traz exceções que não se adéquam aos casos dos crimes tributários, com exceção a aqueles casos de determinação judicial. Importa notar as implicações deste dispositivo, vejamos:

Código Tributário Nacional:

Art. 195 – Para os efeitos da legislação tributária, não tem aplicação quaisquer disposições legais excludentes ou limitativas do direito de examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais dos comerciantes, industriais ou produtores, ou da obrigação destes de exibi-los.

Art. 200 – As autoridades administrativas federais poderão requisitar o auxílio da força pública federal, estadual ou municipal, e reciprocamente, quando vítimas de embaraço ou desacato no exercício de suas funções, ou quando necessário à efetivação da medida prevista na legislação tributária, ainda que não se configure fato definido em lei como crime ou contravenção.

Como vemos, os dois dispositivos acima estabelecem poderes aos administradores, inclusive para realizar requisição de força policial, quando vítimas de embaraço ou quando necessário à efetivação da medida prevista na legislação tributária. Haveria no presente caso, compatibilidade com a norma constitucional da inviolabilidade de domicílio?

Muitos são os que argumentam que a presente legislação tributária por ter sido criada em época de regime ditatorial não observou os direitos fundamentais dos cidadãos e, por conseguinte, a mesma não teria sido recepcionada pela atual Constituição. Estes doutrinadores afirmam que a partir da criminalização do ilícito tributário, não pode mais ter observância os presentes dispositivos sob pena de produzirem provas ilícitas.

Há ainda aqueles que defendem a possibilidade de sua existência, uma vez que decorre dos poderes inerentes à administração, do próprio poder de polícia e da autoexecutoriedade, característica do ato fiscalizatório administrativo.

Como vemos há um choque entre o direito da intimidade pessoal e o direito de fiscalização do estado. O STF [2] e o STJ [3] possuem julgados favoráveis ao entendimento que afirma pela impossibilidade do ato fiscalizatório nos moldes acima expostos sob pena de ofensa ao direito fundamental da inviolabilidade de domicílio.

Como conseqüência prática para a prevalência de tal entendimento é que só se poderá entrar no estabelecimento empresarial devidamente autorizado pelo contribuinte ou judicialmente. E naquele caso, necessário demonstrar através de comprovação hábil.

5.2 Direito ao Silêncio

Outro ponto sustentado de forma intensa pela doutrina contrária à fiscalização ampla da administração tributária é a observância do direito ao silêncio. Argumentam que o direito ao silêncio não passa de uma decorrência lógica do princípio do Devido Processo Legal, mais especificamente, da vertente da não autoincriminação (nemo tenetur se detere). Assim, não deveria o contribuinte, de forma alguma, ser imposto a ter que apresentar documentos que o comprometam criminalmente sob pena de querer obrigar a realização de atitudes ilógicas e que o comprometam criminalmente.

Esta corrente realiza inúmeros questionamentos principalmente sobre a possibilidade trazida nos seguintes dispositivos da Lei nº. 8.137/90:

Art. 1.° - Constitui crime contra a ordem tributária  suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

(...)

V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.

Parágrafo único – A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.

Alguns sustentam pela viabilidade jurídica de tais dispositivos sob o argumento de que a presente conduta seria equiparável ao crime de desobediência previsto no art. 330, CP. Mas a doutrina, em sua maioria, rechaça tal idéia, pois se estaria no presente caso trazendo ofensas às garantias trazidas na declaração dos direitos de liberdade e propriedade desde 1789. Ofensas estas sob observadas nos países ocidentais em épocas ditatoriais.

Argumentam ainda que, no presente caso, haveria conflitos de normas e interesses, pois o Pacto São José da Costa Rica traz expressamente o direito de não autoincriminação. E o presente tratado internacional, por ser norma relativa a direitos humanos estaria, segundo entendimento consagrado pelo STF, no patamar de norma supralegal, ou seja, estaria acima das leis ordinárias e complementares.

Ao julgar casos relacionados ao assunto aqui tratado, o Supremo Tribunal Federal, indo ao encontro entendimento trazido pela common law, se utiliza de outro argumento, especificamente, do princípio do devido processo legal, para justificar a impossibilidade defendida pela doutrina majoritária, vejamos trecho do voto:

“Qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimentos investigatórios policiais ou que ostente, em juízo penal, a condição jurídica de imputado, tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado. Nemo tenetur se detegere. Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal. O direito de permanecer em silêncio insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. E nesse direito ao silêncio inclui-se, até mesmo por implicitude, a prerrogativa processual de o acusado negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a prática da infração penal.” (STF, HC 68.929-9-SP, DJU de 28.8.92, p. 13.453, citado por Julio Fabbrini Mirabete, em Código de processo Penal Interpretado, 8º edição, Atlas, São Paulo, 2001, p.448.)

Interessante questionamento levantado pela doutrina seria que foi vantagem ou desvantagem, para a Administração tributária, a criminalização do ilícito tributário?

Argumenta a citada doutrina que com a criminalização houve a necessidade de se observar os direitos individuais do cidadão, utilizando principalmente aqueles direcionados ao devido processo legal. Mas agora eu levanto o seguinte questionamento à doutrina, deixaria de se aplicar aqueles dispositivos constitucionais pelo fato de não está criminalizado o ilícito tributário. Nós sinceramente acreditamos que não, pois os direitos individuais devem ser aplicados ao administrado, independentemente de ser criminalizada ou não a conduta, pois em sua maioria decorrem do devido processo legal e este tem aplicação também aos processos administrativos.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em países como França e Itália foi possível observar um relativo processo de despenalização das sanções impostas aos agentes que cometem crimes tributários, a provar que em realidade a escolha da via penal ou administrativa não se relaciona diretamente com a importância do bem jurídico em si, sendo mais uma questão de escolhas de conveniência política, com escopo de alcançar os fins preventivos e retributivos, no sentido de que se trata mais de uma questão de eficácia social do que de diversidade axiológica.

Uma importante mudança no que tange aos crimes tributários seria que tais infrações fossem julgadas por tribunais administrativos

Resultado da "fúria legislativa" da década de 90, os crimes tributários refletem o movimento da lei e ordem. Toda a problemática apontada mostra quanta dificuldade na aplicação de um tipo penal pode ocorrer se o trabalho legislativo não for feito de uma forma coerente, ainda mais quando está envolvida a problematização de dois ramos jurídicos: o Direito Penal e o Direito Tributário.

Como vimos, outra lastimável conseqüência como a criminalização dos ilícitos tributários é a verdadeira banalização do direito penal, pois este possui entre suas finalidades o exercício do controle social, devendo somente ser utilizado em casos de maior relevância para a sociedade, não devendo ser relacionado a ilícitos menos afetos ao sentimento ético das pessoas, como no caso dos ilícitos tributários que deveriam se restringir ao âmbito administrativo.

Sendo o fruto destas sucessão de equívocos do estado a degradação ainda maior da relação jurídico-tributária contra o contribuinte proveniente da soma da pretensão arrecadatória indevida do estado e das ameaças levianas do Direito Penal.

REFERÊNCIAS:

COSTA JÚNIOR, Paulo José da; DENARI, Zelmo. Infrações tributárias e delitos fiscais, 4ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2000.

DERZI, Mizabel de Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988.

FERREIRA, Roberto dos Santos. Crimes contra a ordem tributária. 2ª. ed. São Paulo: Malheiros. 2002.

MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Atlas, 2008

Martins, Ives Gandra. Crimes contra a ordem tributária. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

MONTEIRO, Rodrigo Oliva. Dos crimes contra a ordem tributária: definição do tributo e formação do tipo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 15, n. 64, pp. 145-196, mar.-abr./07.

RIOS, Rodrigo Sanchez. O crime Fiscal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998.

SALOMÃO, Heloisa Estelita. A tutela penal e as obrigações tributárias na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.


[1] In Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Atlas, 2008, p. 22

[2] STF: HC 3912/RJ, Rel. Min. Willian Patterson, DJU 08/04/96, MS 23.595, DJU 1º/02/00

[3] STJ: REsp 300.065, Rel. Min. José Delgado.

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Sobre os autores
Daniel Henrique de Sousa Lyra

Advogado e Professor Universitário. Mestre em Direito pela UFRN. Especialista em Ciências Criminais pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Estácio de Sá. Bacharel em Direito pela UFPB.

Humberto Antônio Barbosa Lima

Doutor (Ph.D.) em Ciências Jurídico-Econômicas pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito pela UFRN. Graduado em Direito pela UFC. Procurador do município de Natal Representante da Fazenda Pública junto ao Tribunal Administrativo de Tributos Municipais. Sócio do Barbosa e Souza Sociedade de Advogados. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) de Direito Obrigacional e Direito Empresarial.

Informações sobre o texto

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