Dentre as formas comuns de testamentos encontra-se o Testamento Público que exige a intervenção do oficial público e, neste ponto, diferencia-se do testamento particular. Nessa modalidade testamentária, é o próprio tabelião ou seu substituto legal quem escreve o testamento em livro de notas conforme as declarações do testador; além do mais, é aberto, ou seja, seu conteúdo torna-se conhecido por todos os participantes do ato. Constituindo-se, assim, como a forma de testamento mais preferível, por fornecer maior segurança em sua execução[1].
Este negócio jurídico apresenta, segundo o art. 1.864 do Código Civil/2002 , os seguintes requisitos de validade:
a) Ser escrito por tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas, de acordo com as declarações do testador, podendo-se este servir-se de minutas, notas ou apontamentos.
b) Lavrado o instrumento, ser lido em voz alta pelo tabelião ao testador e a duas testemunhas, a um só tempo; ou pelo testador, se o quiser, na presença destas e do oficial.
c) Ser o instrumento, em seguida à leitura, assinado pelo testador, testemunhas e pelo tabelião.
Ele pode, pelo parágrafo único desse artigo, ser escrito manual ou mecanicamente, bem como, ser feito pela inserção da declaração de vontade em partes impressas de livro de notas, desde que rubricadas pelo testador, se houver mais de uma[2].
Por serem requisitos de validade do testamento público, a inobservância a estas solenidades importará na nulidade do negócio jurídico testamentário.
Não é exigido que se faça o testamento público obrigatoriamente em cartório, podendo o tabelião se deslocar, com o livro de notas, para onde quer que se encontre o testador. De dia, de noite, em dias úteis ou não[3].
Segundo Orlando Gomes[4], não prejudica a validade do testamento a omissão de data, bem como, a inexatidão, intencional ou por equívoco. Sendo falsa, por dolo, o vício contamina o ato[5].
É a única forma testamentária admitida para os cegos; nesse caso, seu testamento será lido em voz alta duas vezes, uma pelo tabelião e a outra por testemunha designada pelo testador, ficando toda essa formalidade anotada no testamento. Pode, também, essa modalidade testamentária ser utilizada por analfabeto. Se o testador for inteiramente surdo, mas souber ler, lerá seu testamento e se não souber, designará alguém para que faça por ele a leitura[6].
Fora essa disciplina, que poucos problemas apresenta à doutrina atual, o testamento público propõe uma questão de debate, enfrentada por este trabalho, e que, todavia, não se demonstra muito pacífica na civilística atual.
O problema surge justamente das mudanças legislativas realizadas pelo novo código civil que alterou o texto do código revogado. É pacífico entre os doutrinadores que a oralidade era requisito necessário do testamento público, no regime anterior, mas, pelo atual Código Civil não há a mesma concordância.
A oralidade como requisito de validade desse negócio jurídico é aceita por alguns doutrinadores, mas não por outros. Aqueles que defendem a posição de que a oralidade já não é mais requisito essencial admitem, como consequência, a possibilidade do mudo testar pela forma pública. Não admitem o mudo testar publicamente os que defendem tese oposta.
Este artigo propõe esta questão para debate. É essencial ou não a oralidade para os testamentos públicos? Pode ou não o mudo testar por essa modalidade testamentária?
No código anterior, o testamento público era regido pelo art. 1632; ele disciplinava o regime dessa espécie de testamento, traçando seus requisitos essenciais para que, quem o desejasse, pudesse concluí-lo:
Art. 1.632. São requisitos essenciais do testamento público:
I - que seja escrito por oficial público em seu livro de notas, de acordo com o ditado ou as declarações do testador, em presença de cinco testemunhas;
II - que as testemunhas assistam a todo o ato;
III - que, depois de escrito, seja lido pelo oficial, na presença do testador e das testemunhas, ou pelo testador, se o quiser, na presença destas e do oficial;
IV - que, em seguida à leitura, seja o ato assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo oficial.
Parágrafo único. As declarações do testador serão feitas na língua nacional.
O testamento público, como negócio jurídico unilateral, depende da presença de manifestação de vontade do testador e, em relação a ela, Pontes de Miranda[7] dizia que deveria ser expressa de “viva voz” pelo testador. Pois, segundo o código revogado, o oficial escreveria em seu livro de notas o que foi ditado ou declarado pelo testador, não podendo restringir-se a copiar a minuta que lhe foi entregue, salvo se lida pelo próprio testador.
Assim, o art.1632. I não se referia apenas ao ditado pelo testador de sua última vontade, mas também às suas declarações impressas, sem serem ditadas e que apenas aludiam ao que seria sua vontade.
Observa-se que, fosse a ultima vontade dita em “viva voz” pelo testador, lida por ele a minuta aos presentes ou, simplesmente, declarando estar na minuta impressa sua ultima vontade, a oralidade era fator essencial ao ato, ou seja, havia sempre a exigência de um núcleo mínimo de oralidade e, por essa razão, o mudo não poderia testar pela forma pública, como reconhecia Orlando Gomes[8].
No código atual, por outro lado, a situação é ligeiramente diversa; as alterações legislativas que esse documento promoveu foram suficientes para que fizessem nascer certas dúvidas na civilística brasileira a respeito da situação do mudo na realização do Testamento público. O antigo art. 1632/16 foi substituído pelo art. 1864, que carrega as mais importantes mudanças quanto a esta modalidade de testamento:
Art. 1.864. São requisitos essenciais do testamento público:
I - ser escrito por tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas, de acordo com as declarações do testador, podendo este servir-se de minuta, notas ou apontamentos;
II - lavrado o instrumento, ser lido em voz alta pelo tabelião ao testador e a duas testemunhas, a um só tempo; ou pelo testador, se o quiser, na presença destas e do oficial;
III - ser o instrumento, em seguida à leitura, assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo tabelião.
Parágrafo único. O testamento público pode ser escrito manualmente ou mecanicamente, bem como ser feito pela inserção da declaração de vontade em partes impressas de livro de notas, desde que rubricadas todas as páginas pelo testador, se mais de uma.
Pelo código atual, o tabelião ou seu substituto legal, na presença de duas testemunhas, deve escrever a última vontade do testador no livro de notas segundo suas declarações. O testador pode servir-se de minuta, notas ou apontamentos para melhor expressar sua vontade. Nota-se, na atual redação da lei, a exclusão da palavra ditado, presente no texto da lei anterior (art.1.632 do CC/16), o que, sem dúvida, altera a interpretação da lei.
O testamento público é ato solene, cujas formalidades devem ser cumpridas por serem essenciais, sem elas “não vale o ato, por omissão ou infração de preceito de forma”[9].
A oralidade era forma exigida pelo antigo Código Civil segundo entendimento de Pontes de Miranda[10] e, assim, não podia o mudo testar por essa modalidade.
A questão que surge aqui é, portanto, se o mudo poderia testar sob a forma do testamento público, no regime atual; pois como no regime anterior ele era impedido, teriam as mudanças legislativas recentes autorizado o mudo a celebrar esse negócio jurídico?
Carlos Roberto Gonçalves[11] acredita que “permanece a exigência de que o testador manifeste sua vontade mediante declaração ao tabelião. A utilização de minuta, notas ou apontamentos é permitida apenas para que possa melhor encaminhar o seu pensamento, mas não dispensa a declaração oral”.(grifo nosso)
Na mesma linha de pensamento está Maria Helena Diniz[12] que afirma: “O testamento Público é lavrado pelo tabelião ou por seu substituto legal em livro de notas, de acordo com a declaração de vontade do testador, exarada verbalmente, em lingua nacional, perante o mesmo oficial e na presença de duas testemunhas idôneas ou desimpedidas”. (grifo nosso)
Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto, atualizadora da obra de Washington de Barros Monteiro[13], por outro lado, discorda dos autores acima: “O testamento deve ser lavrado de acordo com o ditado ou as declarações do testador. Nada impede, todavia, se apresente este perante o tabelião com minuta redigida por advogado, ou recorra a notas e apontamentos particulares, para melhor encaminhar o pensamento e bem, enunciar sua última vontade; quanto maior a perfeição de conteúdo, mais fácil a execução da disposição de última vontade”. (grifo nosso)
Carlos Roberto Barbosa Moreira, atualizador de Caio Mário da Silva Pereira[14] concorda com Ana Cristina e afirma que o testador, se quiser, poderá ditar as suas declarações ao tabelião, mas, pelo novo texto da lei, “nada impede que traga minuta para ser copiada pelo notário. A propósito, já não mais se justifica o entendimento, exposto nas edições antigas deste volume precedentos ao novo código civil, segundo o qual não bastaria a transposição do teor da minuta para o livro do tabelião, e que seria essencial a declaração oralmente feita pelo testador”.
Seguindo essa linha de raciocínio, Mário Roberto de Carvalho Faria, atualizador de Orlando Gomes[15] afirma que: “O novo texto do Código Civil não adotou o pirncípio da oralidade prescrito no artigo 1.635 do texto revogado, que considerava habilitados a testar somente os que pudessem fazer suas declarações de viva voz. Inexistindo obrigatoriedade de manifestar sua vontade de viva voz e podendo o testador servir-se de minutas para declarar suas disposições de última vontade, permitiu aos mudos que pudessem testar pela forma pública”. (grifo nosso).
Por fim, Giselda Hironaka e Paulo Lôbo, atualizadores da obra de Pontes de Miranda[16] atestam: ”Não há mais impedimento para que o mudo possa ser testador em testamento público, pois, desapareceu a exigência de fazer suas declarações de viva voz. O notário pode consultar-lhe por escrito se ouviu e compreendeu o texto lido, o que é suficiente para que possa assinar o testamento”. (grifo nosso)
Buscando a interpretação da Lei
A nova lei ( art. 1.864 do CC) aboliu a palavra ditado, constante do texto da lei anterior revogada, bem como, abrandou as exigências, como por exemplo, a necessidade de apenas duas testemunhas ao invés das cinco da lei anterior, também, permite agora que o testador se valha de minutas, notas ou apontamentos para melhor expressar sua vontade.
Se quisesse o legislador a manutenção da exigência da oralidade, como requisito essencial da forma, teria repetido o texto da lei anterior, ou susbstituido a palava ditado por outra equivalente,ou ainda declarando expressamente essa essencialidade, mas não o fez.
Pela interpretação, não apenas gramatical, do art. 1.864 do CC, nota-se o abrandamento das exigências legais, de onde se pode concluir que o legislador quis, com esse novo texto, ampliar a utilização dessa forma testamentária que é, sem dúvida, a mais segura de todas, garantindo ao testador que sua ultima vontade possa ser cumprida. Paralelamente a isso, não se encontra no sistema jurídico pátrio a obrigatoriedade, ou impedimento do mudo testar por uma ou outra determinada forma testamentária como fez com o cego que, só poderá valer-se do testamento público, ou do analfabeto que, de acordo com o art. 1.872 do CC/2002, não poderá fazer o testamento cerrado, ou autorizando o surdo a fazer testamento público.
Embora não esteja pacífica essa matéria entre os civilistas, entende-se que essa deficiência do mudo pode ser facilmente contornada dentro da base legal estabelecida; Luciano de Camargo Penteado[17] afirma que são três os elementos gerais intrínsecos do testamento: o objeto, a forma e as circunstâncias negociais. O objeto do negócio testamentário é todo seu conteúdo, ou seja, bens, direitos e deveres. A forma é o modo de expressão desse negócio jurídico determinado por lei. A circunstância negocial , ainda sob a ótica de Luciano Penteado[18] é o reconhecimento social de que o ato de fazer o testamento gera efeitos jurídicos.
As formalidades que são exigidas para que um testamento seja considerado válido são, na verdade, cautelas indispensáveis que visam garantir o resultado, ou seja, “meios para fins de segurança pública”. O texto do art.1.864 do CC informa que o testador deve declarar sua vontade ao tabelião[19].
Marcos Bernardes de Mello[20] diz que “somente vontade que se exterioriza é suficiente para compor suporte fático de ato jurídico”, e segue afirmando que essa vontade exteriorizada apresenta sempre uma forma, podendo ser uma manifestação ou declaração de vontade, diferenciando-se pelo modo como a vontade é exteriorizada. Se alguem joga seus sapatos no lixo está manifestando a vontade de livrar-se deles, mas, se diz à alguém que deseja lançar seus sapatos no lixo, estaria declarando sua vontade de abandonar os sapatos. Assim, continua o referido autor: “declaração e manifestação de vontade constituem elementos completantes do suporte fáctico dos atos jurídicos”.
Decorre disso que se a norma exige que a vontade seja exteriorizada por declaração, outra forma qualquer não será suficiente para que possa ser considerada existente. É importante para o direito considerar a vontade em si mesma, ou seja, o conteúdo dessa vontade declarada e a vontade de declarar, e que essa declaração deva ser consciente[21].
Desse modo, um mudo, ao declarar conscientemente sua vontade por escrito ao tabelião ou seu substituro legal, valendo-se de minuta, notas ou apontamentos - na presença de duas testemunhas - estaria buscando o reconhecimento social e jurídico a fim de que sua última vontade produza os efeitos jurídicos esperados, preenchendo as formalidades legais determinadas pelo art. 1.864 do CC, testando, assim, publicamente. Dispensável, portanto, o elemento oralidade.
[1] O. Gomes, Sucessões, 15ª Ed., atualizada por Mario Roberto C. Faria, Rio de Janeiro, Forense, 2012, pp. 114-115.
[2] L. Penteado, Manual de Direito Civil – Sucessões, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2014, p. 159.
[3] O. Gomes, Sucessões. cit., p. 116.
[4] Sucessões. cit., p. 116.
[5] F. C. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Tomo 59, Rio de Janeiro, Borsoi, 1971, p. 31.
[6][6] L. Penteado, Manual. cit., pp. 159-160.
[7] F. C. Pontes de Miranda, Tratado. cit., p. 36.
[8] Sucessões. cit., p. 115.
[9] F. C. Pontes de Miranda, Tratado. cit., p. 36.
[10] F. C. Pontes de Miranda, Tratado. cit., p. 36.
[11] Direito Civil Brasileiro – Direito das Sucessões, vol. 7, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2011, p. 258.
[12] Curso de Direito Civil Brasileiro – Direito das Sucessões, vol. 6, 23ª ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 211.
[13] Curso de Direito Civil - Direito das Sucessões, vol. 6, 35ª ed., São Paulo, Saraiva, 2003, p. 135.
[14] Instituições de Direito Civil, vol. 4, 16ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2007, p. 252.
[15] Sucessões. cit., p. 120.
[16] Tratado de Direito Privado, tomo 59, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 102.
[17] Manual. cit., p. 137.
[18] Manual. cit., p. 138.
[19] O. Gomes, Sucessões. cit., p. 114.
[20] Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência, 20ª ed., São Paulo, Saraiva, 2014, pp. 199-200.
[21] Teoria do Fato Jurídico. cit., p. 201.