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O reconhecimento "ex officio" do caráter abusivo da cláusula de eleição de foro

01/10/2002 às 00:00
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1. São freqüentes os agravos interpostos contra decisões que, pautadas no reconhecimento do caráter abusivo da cláusula eletiva de foro inserta em contratos de adesão, contêm a proclamação ex officio da incompetência absoluta do juízo, com a determinação de remessa dos autos do processo ao foro do domicílio do réu. E quase que invariavelmente os agravantes sustentam a validade da cláusula em questão, bem como a relatividade da eventual incompetência, passível de proclamação judicial, portanto, somente se e quando oposta pelo réu a adequada exceção ritual declinatória.

2. O correto enfrentamento do tema ora debatido impõe, sem dúvida alguma, o prévio exame das questões envolvendo a competência (ou a ausência dela) do órgão jurisdicional perante o qual foi ajuizada a ação.

Muito embora a doutrina e a jurisprudência já tenham consagrado as expressões competência absoluta e competência relativa, cremos ser mais adequado o exame das questões envolvendo o caráter absoluto ou relativo do instituto em foco sob seu aspecto negativo (incompetência), pois importam apenas as conseqüências que advêm da incompetência absoluta e relativa, nenhuma utilidade se extraindo da graduação da competência (ou seja, o exame do fenômeno sob o ponto de vista da sua existência).

A higidez dos atos decisórios praticados no processo depende apenas da competência (situação positiva) do órgão jurisdicional perante o qual aquele tramite, irrelevante a sua qualificação, pois em nada aproveita a aferição do grau da competência por ele ostentada; interessa, isto sim, o grau de sua eventual incompetência (situação negativa), pois diferentes as conseqüências derivadas de seu caráter absoluto ou relativo, como diferentes são os meios de argüição e reconhecimento de uma ou outra.

Sendo o órgão jurisdicional absolutamente incompetente, é totalmente ilegítimo o processamento da ação perante ele, padecendo de nulidade insanável, por decorrência, os atos decisórios proferidos pelo juiz (CPC, arts. 113, § 2º, 122, 485, II); e essa situação de ilegitimidade é infensa a correção ou convalidação, daí representar direito da parte - e dever do juiz - a argüição e o reconhecimento (inclusive de ofício), a qualquer tempo e grau, da incompetência absoluta (arts. 113 e 301, II e § 4º).

A relatividade da incompetência, por sua vez, não acarreta a invalidade de qualquer ato decisório, seja porque em princípio inexistirá ato judicial dessa natureza antes do momento adequado para a dedução da exceção correspondente (ressalvada eventual decisão inaudita altera parte, passível de confirmação ou revogação, no futuro, pelo juiz que atue no órgão ao final reconhecido como competente), seja porque, mantendo-se a parte inerte, isto é, não argüindo o defeito da incompetência na oportunidade e na forma previstas em lei (CPC, arts. 112 e 304 e segs.), tal possibilidade ficará acobertada pela preclusão temporal, com a conseqüente prorrogação (art. 114).

Entendida a competência como o limite, imposto ao juiz, para o exercício legítimo do poder jurisdicional em processo que tramite no órgão jurisdicional em que atue, a incompetência significa, contrario sensu, justamente a ausência dessa legitimidade, anotando-se, ademais, que a intensidade maior ou menor desse defeito está diretamente relacionada à norma legal ofendida com o ajuizamento da demanda perante órgão incompetente. Por outras palavras, as normas reguladoras da competência encontram sua razão de ser ora no interesse público (v.g., distribuição dos feitos, fundada em critérios objetivos ou funcionais, aos juízos da mesma comarca), ora no interesse da parte (v.g., quando concede vantagem ao credor de alimentos - CPC, art. 100, II), advindo, dessa duplicidade de interesses, conseqüências totalmente diversas.

Prevalecendo para a determinação da competência um critério fundado em norma protetiva de interesse público, a sua inobservância acarretará a absoluta incompetência do órgão jurisdicional perante o qual a demanda foi ajuizada, situação essa imodificável tanto pela vontade do juiz, quanto pela das partes. Sendo prevalente, ao reverso, um critério previsto em norma protetiva do interesse de qualquer das partes, sua vulneração gerará a incompetência relativa do órgão processante, se bem que nesse caso tal incompetência poderá ser afastada tanto por ato da parte (eleição de foro, não oposição de exceção declinatória), quanto por força da lei (v.g., CPC, art. 105).

Tratando-se de incompetência absoluta, os atos decisórios serão nulos, podendo essa nulidade ser reconhecida, como dito, a qualquer tempo e grau de jurisdição, reconhecimento esse não obstado sequer pela superveniência de coisa julgada material (CPC, art. 485, II); cuidando-se, porém, de incompetência relativa, o problema será solucionado no curso do processo, quer pela sua proclamação em julgamento de exceção declinatória, com a conseqüente remessa dos autos ao órgão competente, quer pela preclusão derivada da não oposição oportuna da exceção ritual adequada, gerando o fenômeno da prorrogação.

A natureza da incompetência absoluta afasta a possibilidade de prorrogação, podendo ela - objeção processual que é -, ser alegada a qualquer tempo e grau de jurisdição e inclusive reconhecida de ofício pelo juiz (CPC, arts. 113 e 301, II e § 4º).

Em síntese, a incompetência absoluta pode (deve, na verdade) ser proclamada de ofício, ao passo que o reconhecimento judicial da relativa sempre depende da argüição, pela parte prejudicada, de exceção declinatória, sob pena de prorrogação.

Convém esclarecer, a esta altura, que essa última assertiva de modo algum encontra aceitação pacífica em sedes doutrinária e jurisprudencial, conforme se demonstra a seguir.

3. Adotando tese exposta por LOPES DA COSTA, MONIZ DE ARAGÃO sustenta enfaticamente a possibilidade de o juiz declinar de ofício sua incompetência relativa, afirmando que "No Brasil, lei alguma proíbe aos juízes declarar de ofício a incompetência relativa; tampouco os compele a aceitar passivamente a prorrogação da competência, por ser relativa. O que não se lhes consente é deixar de fazê-lo no primeiro momento em que atuem no caso, ao apreciar a petição inicial, pois aí se firmará a prorrogação, que ficará a critério do réu obstar." E mais adiante assevera: "Ajuizada ação com infringência de norma de competência territorial, poderá o juiz, no primeiro ato a praticar, que é a apreciação da petição inicial, recusar de ofício a competência, como ficou visto no nº 192, pois, do contrário, precluir-lhe-á a faculdade e a regra da competência, que nesse preciso momento comportaria o tratamento dispensado à nulidade relativa, passará a subordinar-se unicamente aos princípios que regem a anulabilidade, ou seja, apenas o réu poderá impugnar a infração ocorrida, desde que o faça na forma e no prazo dos arts. 297 e 304, sob pena de perder a faculdade de fazê-lo, completando-se a prorrogação: a anulabilidade desaparece e o vício está sanado pela ausência da condição resolutiva." 1

Essa posição, também aceita por outros juristas de porte 2, adquiriu um certo prestígio nos tribunais paulistas, por influência direta dos julgados que emanavam, até recentemente, da Câmara Especial do Tribunal de Justiça, à qual compete julgar, enquanto derivadas de incidentes autônomos, todas as questões envolvendo competência.

Conforme orientação dessa Câmara 3, poderia o juiz reconhecer de ofício a incompetência relativa, desde que não houvesse ainda praticado ato que o vinculasse ao processo; cessaria tal faculdade, no entanto, se já operada a prorrogação da competência por força do artigo 114 - até porque, a essa altura, o juiz estaria vinculado ao processo. 4

A corrente contrária, que conta com adeptos do porte de BARBOSA MOREIRA5 e CÂNDIDO DINAMARCO 6, sustenta que a lei não confere ao juiz o poder discricionário de reconhecer a incompetência relativa, face ao contido no artigo 114 do Código, aplicável à luz do artigo 112. E isto porque as regras de determinação da competência relativa atendem precipuamente ao interesse das partes, não sujeito à discricionariedade da autoridade judiciária, sendo ainda certo, à luz dessa premissa, que à parte cabe com exclusividade a faculdade de excepcionar a incompetência relativa, até mesmo porque o ajuizamento da ação no foro ou no juízo relativamente incompetentes poderá redundar em uma situação de vantagem para qualquer dos sujeitos parciais da relação processual.

Nem vale, por outro lado, o argumento de que só caberia tal reconhecimento em se tratando da hipótese do artigo 114, visto que a lei não traça qualquer distinção, nesse particular, ao cuidar das duas causas de prorrogação voluntária da competência, devendo ser desprezados, finalmente, argumentos de caráter pragmático, pois em "um regime de direito escrito, de legalidade processual estrita, não se pode deixar ao magistrado a faculdade de aceitar ou não o processo segundo a sua própria comodidade". 7

Necessário observar, a esta altura, que essa última corrente é hoje absolutamente prevalente em sede jurisprudencial, a ponto de o Colendo Superior Tribunal de Justiça haver editado, a seu respeito, a Súmula 33, dispondo que "A incompetência relativa não pode ser declarada de ofício".

Concluindo e reiterando: o juiz deve declinar de ofício a incompetência absoluta, até porque esse defeito contamina irremediavelmente o processo, acarretando sua nulidade absoluta, que só não mais poderá ser judicialmente reconhecida após o decurso do biênio fixado para a propositura da ação rescisória (CPC, art. 485, II). A incompetência relativa, por seu turno, resulta apenas da afronta, por ocasião do ajuizamento da ação, de critério legal protetivo do interesse da parte, podendo, por isso mesmo, ser argüida pelo prejudicado, caso queira, no prazo e na forma previstos em lei; não o fazendo, opera-se a preclusão e, por conseqüência, a prorrogação da competência, como previsto no artigo 114 do Código de Processo Civil.

4. Partindo da correta conclusão de que ao juiz é defeso reconhecer de ofício a incompetência relativa, é lícito também concluir-se, à luz da dogmática processual, que a invalidade da cláusula eletiva de foro só pode ser judicialmente proclamada, ainda que incidentalmente, se e quando a parte prejudicada aponta o defeito em sua resposta.

Reconhecida que seja a invalidade, com o conseqüente afastamento do critério contratual determinativo da competência territorial, prevalecerá aquele contemplado no artigo 94 do Código do Código de Processo Civil, ensejando a pronta remessa dos autos do processo ao foro do domicílio do réu.

Convém lembrar, todavia, que a validade da correspondente decisão judicial estará condicionada à relatividade da incompetência do órgão jurisdicional; sendo ela absoluta, este grau máximo de incompetência derivaria, necessariamente, do prévio reconhecimento da nulidade da cláusula, que não permitiria proclamação de ofício, sob pena de ficar patenteada, por sua vez, a nulidade da própria decisão, contaminada que estaria pelo vício da incompetência.

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Acrescente-se ainda, em reforço à linha de argumentação até aqui desenvolvida, que o reconhecimento da invalidade da cláusula eletiva não acarretaria, por si só - e não obstante a sua influência imediata e direta no destino do processo -, a transmutação da incompetência relativa em absoluta, nem afetaria a higidez daquele, impondo-lhe, apenas e tão-só, o deslocamento para outro órgão jurisdicional, qual seja o competente.

5. Diante das dificuldades até aqui expostas, tudo indica que o problema ora enfocado deva ser solucionado sob outras luzes.

Dúvida não há de que a cláusula eletiva de foro, estabelecida em contrato de adesão pela parte economicamente mais forte, poderá revelar-se abusiva se e quando impuser, ao contratante mais fraco, sérios (e por vezes insuperáveis) óbices ao pleno acesso à jurisdição e à sua defesa no processo, assim afrontando as correspondentes garantias constitucionais; e essa afronta, abstraídos outros aspectos processuais (de menor ou nenhuma importância em confronto com ditas garantias), seria suficiente, por si só, para justificar a pronta remessa dos autos ao foro do domicílio da parte hipossuficiente. Melhor dizendo, a observância da técnica processual visa a atender, precipuamente, aos desígnios constitucionais e não, à evidência, impor ônus e gravames indevidos a um dos sujeitos processuais; e deve a autoridade judiciária, diante de situações que possam, efetiva ou potencialmente, colocar em risco tais desígnios, adotar de imediato as medidas corretivas adequadas, atenta ao dever de permanente vigilância e defesa dos ditames constitucionais, imposto a todos os cidadãos e, em especial, aos integrantes do Poder Judiciário.

É imperativo, no entanto, que o julgador não se deixe levar pela tentação de considerar toda e qualquer cláusula eletiva de foro sempre abusiva e ilegal; antes, deve ter em mente que o reconhecimento e a proclamação da afronta a preceitos constitucionais demandam o exame, caso a caso, das circunstâncias que envolvem o contrato contendo a cláusula em questão, não sendo lícita, nem jurídica, a pura e simples generalização.

No regime do Código de Defesa do Consumidor (ao qual se submetem, por certo, os litígios e os processos envolvendo contratos de consórcio e de empréstimos e financiamentos bancários, entre tantos outros), as mencionadas garantias constitucionais ganham ainda maior vulto e relevo, mercê da generosa e inescondível intenção da lei em proteger, nos intrincados e complexos negócios dos dias correntes, aquele contratante que, por razões pessoais e/ou econômicas, se encontre em situação de desvantagem perante o outro. E essa intenção se revela em sua plenitude quando a lei reconhece como abusiva - e comina de inválida - a cláusula contratual que viole o direito básico, garantido ao consumidor, de facilitação de sua defesa (arts. 6º, VIII e 51, IV e XV, conjugados).

Ao eleger o foro onde está localizada sua sede, em cláusula adrede preparada, como sendo o competente para as ações derivadas do descumprimento do contrato, determinadas empresas e instituições (que não raramente possuem agências e representantes em praticamente todo o território nacional) indevidamente impõem ao outro contratante, mormente quando domiciliado em outro Estado, sérias dificuldades ao pleno exercício de seu direito de defesa, representadas, à guisa de exemplos, por aquelas relacionadas ao custo do processo, à contratação de patrono e ao deslocamento à comarca eleita.

Esses óbices, ainda que eventualmente impostos de modo não intencional, autorizam e justificam a determinação de remessa dos autos do processo ao foro do domicílio do réu; e isto porque a questão em debate envolve, à evidência, tema muito mais sério e grave que a simples possibilidade de ser reconhecida de ofício a nulidade de cláusula abusiva ou a incompetência relativa ou, ainda, de se tratar de incompetência absoluta: cuida-se, em verdade, da necessidade (e não simples faculdade) de atendimento das exigências do devido processo legal, mister do qual todos os integrantes do Poder Judiciário devem, permanente e intransigentemente, se desincumbir.


Notas

1. Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, Rio, 2ª ed., 1976, vol. II, nº 192, pp. 188 a 191 e nº 348, pp. 331 a 334.

2. V.g., HÉLIO TORNAGHI, Comentários ao Código de Processo Civil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1974, vol. I, pp. 360 e MENDONÇA LIMA, A nova sistemática das exceções, Revista de Processo, vol. 2, pp. 61 a 76, entre outros.

3. Nesse sentido, entre outros, os vv. acórdãos prolatados nos Conflitos de Competência nº 5.233-0, de São Paulo, rel. Des. CÉSAR DE MORAES, julg. 17.10.85, nº 6.746-0, de Cubatão, rel. Des. DÍNIO GARCIA, julg. 14.O5.87 e nº 6.819-0, de Araçatuba, rel. Des. ANICETO ALIENDE, julg. 28.O5.87 - O Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo chegou a encampar tal entendimento em sua Súmula 28, com o seguinte enunciado: Pode o Juiz declarar de ofício da incompetência relativa, desde que o faça em sua primeira intervenção no processo.

4. Nunca é demais lembrar que essa orientação foi ditada, originalmente, muito mais pela necessidade de forçar-se o ajuizamento das ações perante as então varas distritais criadas pelas Resolução nº 1/71 e nº 2/76 do Tribunal de Justiça (na medida em que alguns advogados insistiam em promovê-las perante os juízos centrais, contando com a prorrogação da competência e assim opondo indevida resistência ao efetivo funcionamento daqueles juízos), do que por motivos de ordem técnico-processual.

5. Pode o juiz declarar de ofício a incompetência relativa?, ‘in’ Temas de direito processual, São Paulo, Saraiva, 5ª série, pp. 63 a 76.

6. Declaração ex officio da incompetência relativa?, ‘in’ Fundamentos do processo civil moderno, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1986, nºs 234 e 235, pp. 375 e 376 e Direito processual civil, São Paulo, José Bushatsky Ed., 1975, nº 86, pp. 138 e 139.

7. Cfr. CÂNDIDO DINAMARCO, Declaração ‘ex officio’ da incompetência relativa?, nº 233, p. 375.

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Sobre o autor
Antonio Carlos Marcato

professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, coordenador acadêmico do CPC – Curso Preparatório para Concursos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCATO, Antonio Carlos. O reconhecimento "ex officio" do caráter abusivo da cláusula de eleição de foro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3351. Acesso em: 22 abr. 2024.

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