4.O Tribunal de Contas e sua missão constitucional.
A atividade do Tribunal de Contas cresceu muito com a Constituição de 1988. Órgão secular, sua nova missão fez com que toda a sua organização e atividades fossem minuciosamente dispostas no texto constitucional, ocasionando mais estudos sobre a sua natureza, sua posição perante os Poderes do Estado, bem como sobre a juridicidade ou não de suas decisões.
4.1.O Tribunal de Contas e a Constituição Federal de 1988.
O Tribunal de Contas é um órgão de relevância constitucional, mas não goza de status constitucional pois apesar da Carta Política estabelecer suas funções e determinar sua competência, não foi criado pela Constituição.
Na Alemanha, defende-se que o Tribunal de Contas seja uma espécie de quarto poder, o que é totalmente descartado na realidade brasileira, em face do art. 2º, cláusula pétrea, que não o inclui entre os Poderes do Estado.
Questão complexa, portanto, é estabelecer e determinar qual a posição do Tribunal de Contas perante os demais Poderes., haja vista que não é órgão do Executivo nem tão pouco do Judiciário, a despeito da Constituição lhe atribuir a mesma competência dos Tribunais, pois não lhe outorga a função jurisdicional formal.
A doutrina se divide quanto à sua posição diante do Legislativo, mas a maioria fica com a posição de que o Tribunal de Contas é um órgão auxiliar deste Poder que não pratica, no entanto, atos de natureza legislativa. O Tribunal de Contas seria de acordo com a visão sistêmica da fiscalização, um órgão auxiliar do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, já que todos os poderes estão incumbidos de realizar a atividade fiscalizadora. Além disso, é órgão auxiliar da própria sociedade, uma vez que a Constituição Federal garante a participação popular no controle da gestão da coisa pública.
4.2.A natureza de suas decisões
O Tribunal de Contas não exerce a função legislativa formal, pois seus atos carecem de eficácia genérica, própria da lei, e não vinculam os demais Poderes às suas decisões.
Do ponto-de-vista da função jurisdicional material, o Tribunal de Contas exerce algumas funções típicas, pois uma das suas atribuições é o julgamento de contas dos responsáveis com imparcialidade, independência, ampla defesa, dentre outras garantias. Todavia, formalmente, o Tribunal de Contas não possui função jurisdicional, já que suas decisões não produzem coisa julgada e mesmo o julgamento das contas dos administradores está sujeito a recursos.
Enfim, seus atos são de natureza formalmente administrativa e, à exceção do julgamento de contas, também materialmente administrativa.
4.3.As novas competências do Tribunal de Contas.
De acordo com a Carta de 1988, o Tribunal tem a atribuição de julgar, sem ressalva, as contas de todo o universo de órgãos da Administração Pública, tanto direta quanto indireta, incluindo-se entre estas as empresas de cujo capital a União participe, mesmo em caráter minoritário ou igualitário, ao contrário do regime anterior que, de acordo com a legislação ordinária revogada (Leis nº 6.223/75 e 6.525/78) restringia às empresas nas quais a União fosse detentora da maioria de ações com direito a voto.
O Tribunal de Contas passa a ser um órgão público de controle externo, com poder jurisdicional em todo o território nacional, nas matérias de sua atribuição. Também voltou a ter resguardado seu direito de realizar inspeções, auditorias e levantamentos explícitos sobre as contas dos diversos órgãos. Sua ação tem caráter não apenas controlador, mas também educativo e moralizador, contribuindo para a correta gestão da coisa pública.
O controle foi estendido às contas nacionais das empresas supranacionais como Itaipu, por exemplo com 50% do capital brasileiro, que não estavam submetidas a esse tipo de fiscalização. Foi mantida a atribuição de parecer prévio sobre a prestação anual de contas do Presidente, que devem ser julgadas pelo Congresso Nacional, e da elaboração de um relatório sobre a gestão econômica, orçamentária, financeira e patrimonial da União.
O controle de pessoal também foi ampliado, estendendo-se o registro de concessões de aposentadorias e pensões na Administração indireta (nas autarquias) e na admissão de pessoal das Administrações direta e indireta, incluindo-se fundações.
O Tribunal de Contas deve controlar os recursos transferidos pela União a Estados, Municípios e Distrito Federal, ou a qualquer entidade ou órgão a eles vinculado, que acontece em consonância com o princípio da descentralização. Essa fiscalização se mostra um tanto insuficiente. Daí ter sido instituído um duplo controle: sobre quem repassa e sobre quem recebe o valor.
Essas são algumas atribuições conferidas em face das inúmeras outras dispostas no art. 71 da CF-88.
4.4.A ação conjugada entre o Legislativo e o Tribunal de Contas no controle externo.
Nos incisos IV, VII e XI e §4º do art. 71 da Constituição estão dispostas as atividades que exigem e exemplificam a ação conjunta do Tribunal de Contas e do Congresso.
Já no art. 72, §§1º e 2º, é estabelecido o estrito relacionamento existente com um dos órgãos de maior relevância do Congresso Nacional a Comissão Mista Permanente de Senadores e Deputados.
Conforme já foi visto anteriormente, cabe ao Tribunal de Contas a análise das contas do Presidente e de toda a Administração; e se forem verificadas irregularidades, serão estas também encaminhadas ao Congresso Nacional, para que sejam tomadas as medidas cabíveis.
Por sua vez, a possibilidade de o Tribunal de Contas aplicar sanções não é pequena. É facultada a aplicação de multas proporcionais aos prejuízos causados ao Erário. Vale salientar que as decisões desta Corte têm eficácia de título executivo.
Nas três esferas de Poder federal, estadual e municipal os representantes do povo, através do Congresso Nacional, Assembléias Legislativas estaduais e Câmaras Legislativas municipais e do Distrito Federal, respectivamente, são os encarregados de exercer o controle externo. Na realidade, o Tribunal de Contas exerce uma prévia apreciação técnico-administrativa, cabendo o controle de natureza política ao Poder Legislativo.
4.5.Organização e composição.
Dada a sua importância, a Constituição Federal, concedendo-lhe um perfil de independência, traça minuciosamente a sua organização, a forma de escolha e as prerrogativas de seus membros.
Sua organização obedece às normas aplicáveis aos Tribunais do Poder Judiciário, justificando, erroneamente, a opinião de alguns autores que alegam ser o Tribunal de Contas pertencente ao Judiciário.
Os servidores devem ser concursados, apresentando um alto grau de profissionalismo e preparo intelectual, tendo em vista suas atribuições. Formam um quadro próprio de funcionários, não subordinados a outros órgãos. Essa característica de preparo intelectual também deve ser seguida como critério de escolha de seus Ministros, que são 9, e que obedecem ao disposto no art. 73 da Constituição de 1988.
Ainda de acordo com este artigo, um terço dos Ministros deve ser escolhido pelo Presidente da República, com posterior apreciação do Senado Federal, dentre uma lista tríplice indicada pelo Tribunal, para que dela o Presidente, seguindo sua discricionariedade, proceda à escolha. Os dois terços restantes são escolhidos após a mesma forma de indicação, pelo Congresso Nacional.
Esses Ministros possuem as mesmas garantias e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça, como a vitaliciedade no cargo, por exemplo. Já os membros dos Tribunais de Contas estaduais, do Distrito Federal e dos municípios têm o título de Conselheiros. O Tribunal de Contas da União fica localizado no Distrito Federal, onde está desde 1961, após a transferência da Capital Federal do Rio de Janeiro para Brasília.
4.6.Os tribunais de Contas dos Estados, do Distrito Federal, Tribunais e Conselhos de Contas Municipais.
Pelo fato do Brasil constituir uma Federação, há uma simetrização dos demais Tribunais com o modelo federal, no entendimento do STF (RDA, 126: 341; RTJ, 46: 442; 50: 245; 52: 520). Mas estes Tribunais de Contas devem ter, no máximo, 7 Conselheiros. O critério de escolha à maneira do Tribunal de Contas da União seria inviável, sendo estabelecidos, em cada Estado, critérios próprios em relação ao quantum para a escolha.
É entendido pela doutrina (12) que a Constituição federal não estipula sobre a criação de novos Conselhos de Contas municipais, o que pode ser aferida em uma interpretação conjunta com o art. 31 §4º, que veda "a criação de Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais", mas apenas subsistem os Conselhos já existentes à data de sua promulgação.
5.O controle das contas públicas pelos cidadãos.
De acordo com o art. 74, §2º, da Constituição Federal, "qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União". Este artigo coaduna-se com o também disposto no art. 31, §3º, que garante a disposição das Contas dos Municípios por 60 dias a qualquer pessoa, e com o art. 5º, LXXIII, que garante às associações e outros órgãos a defesa dos direitos públicos coletivos e difusos, inserindo-se aí o papel do Ministério Público.
O Tribunal de Contas passa a ser um órgão fiscalizador auxiliar não apenas dos Poderes, mas da comunidade em geral, no exercício dos seus direitos (13).
6.Conclusão
A atividade fiscalizadora é de extrema importância por diversos aspectos, desde o fato de que apenas com a correta gerência do patrimônio público o Estado pode fazer frente às inúmeras expectativas e obrigações facultadas às atividades do chamado Estado de Bem-Estar Social, inclusive no que tange à questão da confiança que a sociedade em geral deve ter com relação à atividade estatal e dos governantes, de maneira geral.
A Constituição de 1988 inova ao conceder à coletividade não apenas o direito como também o dever de controle e fiscalização das contas públicas. Tal prerrogativa, no entanto, decorridos já 10 anos de sua promulgação, ainda não foi corretamente utilizada, apesar da crescente indignação diante da corrupção, do nepotismo e outras mazelas que contaminam a gestão da coisa pública. Mas esta indignação já é um sinal de avanço, haja vista que há pouco a capacidade de se manifestar acerca dos interesses públicos foi totalmente tolhida na base da noção de cidadania, em virtude dos tempos de difícil recordação, na vigência da ditadura militar.
Muito embora a preocupação do Constituinte em inserir na Carta de 1988 dispositivos que facilitem a participação do povo na vida estatal, o fato é que a falta de conscientização da população dos seus direitos, arma nas mãos de políticos nada escrupulosos para a manutenção de seus privilégios, só faz aumentar a total falta de participação popular na vida pública, servindo apenas o texto constitucional como álibi do Estado. Isto é, o Estado colocou nos textos legais os mecanismos de democracia e cidadania, buscando, com esse álibi, livrar-se da responsabilidade da falta de uso desses mecanismos pela sociedade (14).
Por outro lado, as funções típicas do Estado social não se realizam no Brasil. Basta ver que cada vez mais a sociedade se sente mais carente em relação às necessidades básicas de subsistência, bem como de direitos fundamentais, cada vez menos observados na realidade social, em virtude da inércia do Estado em lidar com tais questões.
No que tange à fiscalização, percebe-se que a inércia não se diferencia: nepotismo na nomeação de Conselheiros e Ministros dos Tribunais de Contas, falta de preparo intelectual e corrupção cada vez mais fazem com que a atuação do Estado, tal como estipulado na Constituição de 1988, fique cada vez mais distante da realidade, assertiva consubstanciada na sucessão de escândalos político-jurídicos de improbidade administrativa que assolam o País. Infelizmente, o "mundo da vida" vai se acostumando a viver corriqueiramente sob o manto da ilegalidade e da total falta de apego à principiologia que norteia o direito brasileiro, ao menos no que tange ao seu aspecto formal.
7.NOTAS
01. BONAVIDES, Paulo: Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 147-170.
02. TORRES, Ricardo Lobo: Curso de Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
03. CLÈVE, Clèmerson Merlin: Atividade Legislativa do Poder Executivo no Estado Contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: RT, 1993, p. 26. E na hodierna Teoria do Estado, principalmente a alemã, fala-se em "distribuição de funções organicamente adequada", vendo a Separação de Poderes mais sob o aspecto da especialização das funções estatais do que propriamente pela sua limitação, cf. ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria do Estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 152 s.
04. Sobre dogmática e zetética no direito, cf. FERRAZ JR., Tercio Sampaio: Introdução ao Estudo do Direito Técnica, Decisão, Dominação. São Paulo: Atlas, 1997, pp. 39-52.
05. MAXIMILIANO, Carlos: Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
06. MORAES, Alexandre de: Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999, p. 346.
07.FERREIRA, Pinto: Comentários à Constituição Brasileira. v. III. São Paulo: Saraiva, 1992.
08. BALLEEIRO, Aliomar: Uma Introdução à Ciência das Finanças. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 766.
09. SILVA, José Afonso da: Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 724.
10. TORRES, Ricardo Lobo: Curso de Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 170.
11. SILVA, José Afonso da: Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1997.
12. MORAES, Alexandre de: Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999.
13. TORRES, Ricardo Lobo: "Os Direitos Fundamentais e o Tribunal de Contas". Revista do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro. n. 23, 1992, pp. 54-63.
14. Sobre a legislação como álibi, cf, NEVES, Marcelo: A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, pp. 37-42.
8 BIBLIOGRAFIA
BALEEIRO, Aliomar: Uma Introdução à Ciência das Finanças. Rio de Janeiro: Forense, 1991.BONAVIDES, Paulo: Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999.
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