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Considerações sobre o controle de moralidade dos atos administrativos

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01/08/1999 às 00:00
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3. Mérito do Ato Administrativo

O Poder Judiciário exerce sobre quem tem a competência para o exercício da função administrativa um controle de juridicidade, ou seja, de adequação dos atos da Administração (administrativos ou não) ao ordenamento jurídico vigente (cf. França, 1997.1: 29/31; Franco Sobrinho, 1995: 10/11). Controle que assume grande importância para a manutenção da conduta ética da Administração, haja vista ter o nosso sistema jurídico concedido ao Poder Judiciário a competência para a apreciação e deslinde do contencioso administrativo (CF, art. 5º, XXXV).

Ato administrativo compreende "a declaração do Estado (ou de quem lhe faça às vezes - como, por exemplo, um concessionário de serviço público) no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional" (Mello, 1994: 173/174), determinando situações jurídicas individuais ou concorrendo para a sua formação (Seabra Fagundes, 1984: 22).

O controle de juridicidade exercido pelo Poder Judiciário não se restringe aos aspectos de legalidade do ato administrativo. O órgão jurisdicional também pode (e deve) apreciar as questões de moralidade dos atos administrativos.

Como preconiza o regime jurídico-administrativo, os atos administrativos, tal como todo e qualquer ato da administração pública, deve observar o princípio constitucional da moralidade administrativa. Esses provimentos estatais submetem-se ao controle jurisdicional quando surge, a partir de sua conclusão, controvérsia levantada por quem lhe questiona os efeitos ou a admissibilidade de sua existência junto ao órgão jurisdicional competente.

Para sua perfeição, validade e eficácia, é preciso que o seu ciclo de formação tenha sido completado no modo prescrito pela lei e em função do interesse público, ingressando no ordenamento jurídico sem vícios e, fazendo plenos e reais os efeitos decorrentes de sua utilização pela Administração. O ato administrativo necessita para tanto que sejam observados os requisitos exigidos pela lei, que estejam presentes os elementos e pressupostos essenciais à viabilidade do ato administrativo na ordem jurídica. Como enuncia Manoel de Oliveira Franco Sobrinho (1997: 30), só na juridicidade alcança conteúdo jurídico.

Nos atos vinculados, a lei constrói o ato administrativo com todas as especificações necessárias a sua aplicação, devendo o administrador ater-se ao seu enunciado e aos requisitos e elementos indispensáveis a plena eficácia da medida prevista, sob pena de invalidade. Nestes, somente pode haver uma escolha: o que a lei objetivamente determinar, e tipificada de modo a não causar qualquer dúvida ou controvérsia na aplicação da lei, predominando as especificações legais sobre os elementos a serem submetidos ao juízo discricionário (França, 1997.1: 37).

O regime jurídico-administrativo admite espaço para que o administrador construa parcela dos elementos dos atos administrativos com critérios de conveniência e de oportunidade, estabelecendo no caso concreto a melhor providência estatal. Embora sempre exista um núcleo mínimo de vinculatividade do ato administrativo à lei, quando se analisa a competência, a forma e a finalidade genérica, contida no texto normativo editado (em regra) pelo Poder Legislativo, nunca o legislador consegue prever todos os caminhos a serem trilhados pela atividade administrativa, principalmente em face da realidade social cada vez mais volátil que se apresenta diante do administrador (França, 1997.1: 37).

Celso Antônio Bandeira de Mello (1994: 462) define discricionariedade como "a margem de liberdade que remanesça no administrador para eleger segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente". Não se admite discricionariedade sem que lei faça a demarcação de suas fronteiras, na ausência de circunstâncias fáticas e jurídicas que possibilitem ao administrador dispor da chamada "opção discricionária".

Há espaço para a discricionariedade administrativa, quando em lei admitida: na formação do motivo, na apreciação dos pressupostos fáticos e jurídicos que autorizam a edição e concretização do ato administrativo; na delimitação do objeto, ou seja, do que se deseja criar, modificar ou declarar nas relações jurídicas administrativas; na definição da finalidade específica do ato administrativo na situação jurídica individual construída pela Administração, o resultado prático a ser alcançado com a sua execução, desde que coerente com a finalidade genérica expressa na lei; por fim, se a lei recorre a conceitos jurídicos indeterminados que não assumem no caso concreto um sentido unívoco na concretização do regime jurídico-administrativo (cf. França, 1997.1: 37/41).

A lei impõe que o ato administrativo esteja sempre adequado às exigências e previsões legais, bem como, ao interesse público, oferecendo à administração pública os meios indispensáveis para a melhor conformação desses provimentos normativos aos fundamentos e diretrizes constitucionais. Diante do caso concreto, o administrador atua como um mediador entre este e a lei. Cabe a ele, dentro de sua competência, tonar efetivo e resguardado o interesse público, e consoante as formas que a lei determinar. Já tivemos oportunidade de alertar uma vez (França, 1997.1: 38) que discricionariedade e arbitrariedade não podem ser confundidas, pois nesta, o poder público exorbita a esfera de sua competência, utilizando-se de instrumentos juridicamente inaceitáveis no cumprimento da finalidade legal, ou mesmo, ignorando-a em favor de finalidades estranhas ao interesse público. O exercício do poder discricionário pressupõe a severa obediência aos parâmetros legais e a correta subsunção do caso concreto às categorias opostas pela lei, do contrário, seria uma incoerência se o Estado de Direito edificasse um poder, um instrumento, sem limites e, danoso ao ordenamento jurídico, para Administração Pública.

In casu, a norma jurídica é imprecisa. Pode não haver a descrição antecipada da situação que exigirá dada medida administrativa; pode a situação ser descrita por conceitos vagos e indeterminados, bem como irredutíveis a uma objetividade total; pode existir a permissão expressa à liberdade decisória; e pode ter o seu objetivo exposto de forma genérica ou por uma forma específica carente de precisão. Somente diante da situação posta pela realidade, o agente público pode avaliar as condutas administrativas cabíveis e adotar a que representa "a providência ótima" para o adimplemento de seu dever legal (Mello, 1994: 207).

Observados os aspectos de legalidade, é vedada a intervenção dos outros poderes do Estado no chamado "mérito do ato administrativo" (França, 1997.1: 43), a não ser que subsista atentado à juridicidade, sob a forma de imoralidade.

O mérito do ato administrativo constitui o aspecto do ato administrativo relativo à conveniência ou à oportunidade da medida tomada (cf. Moreira Neto, 1991: 32). Relacionado com circunstâncias e apreciações só perceptíveis ao administrador, dados os processos de indagação de que dispõe e a índole da função por ele exercida, constituiria espaço imune à incidência do controle jurisdicional naqueles aspectos não abrangidos pela legalidade (Seabra Fagundes, 1991: 189). Assume um sentido político, vinculado ao dever da boa administração, compreendendo todos os aspectos de conveniência e oportunidade edificados por um juízo comparativo na adequação da lei ao caso concreto (Seabra Fagundes, 1991: 193). Enquanto no processo civil, entende-se por mérito o "conteúdo substancial da lide"; no direito administrativo, constitui um elemento que eventualmente pode compor o ato administrativo (Seabra Fagundes, 1991: 194).

Inexiste mérito nos atos vinculados sendo elemento privativo dos atos discricionários. Nos atos vinculados, o conteúdo político já foi analisado e definido pelo legislador, e, por conseguinte, não sendo necessário a formação de espaço para uma avaliação subjetiva de conveniência e oportunidade da ação estatal no caso concreto (Seabra Fagundes, 1991: 194).

A análise todos esses elementos deve ser levada em consideração pelo Poder Judiciário quando diante do contencioso administrativo em torno de tais atos jurídicos, pois a partir daí, o órgão jurisdicional poderá se habilitar ou não em exercer o controle típico. A maioria da doutrina e da jurisprudência impõe grandes restrições quanto à incidência do controle jurisdicional no mérito do ato administrativo. Entretanto, essa posição merece uma nova reflexão por parte dos operadores jurídicos.


4. Invalidação do Ato Administrativo Moral

A ética administrativa controla o direito aplicável, preservando a finalidade administrativa e o exercício ou a prestação de serviços na Administração coerente com a moralidade, concedendo harmonia entre a motivação pública e aquele fim genericamente exposto na lei (cf. Franco Sobrinho, 1997: 36/37)

O ato administrativo que viola o princípio da moralidade, independentemente de sua plena compatibilidade com os aspectos de legalidade, padece de invalidade (cf. Rocha, 1994: 195; Justen Filho, 1995: 47/48; Delgado, 1992: 36), devendo ser retirado do regime jurídico-administrativo. Quando imoral, o ato administrativo atenta contra a juridicidade que deve estar onipresente na conduta da administração pública, quebrando e distorcendo os fundamentos e diretrizes constitucionais, desprezando o dever de probidade imposto pela Constituição de 1988 ao agente público, e, por conseguinte, afastando a ação administrativa concreta da ética institucionalizada do regime jurídico que visa a administração pública concretizar.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (1991: 115) leciona que a imoralidade no manuseio dos métodos de interpretação gera atos inválidos perante o direito, podendo o mesmo acontecer nos processos de integração do regime jurídico-administrativo. O que torna o ato, apesar de legal, deformante da "verdade de fato" (Moreira Neto, 1992: 10).

A observância aos aspectos de legalidade não torna o ato administrativo imune à apreciação jurisdicional, embora tenha sido exarado e concretizado no exercício de poder discricionário. A juridicidade dos atos administrativos abrange os aspectos éticos que nortearam o administrador em sua escolha, devendo ser invalidado o ato que constituir uma tentativa de distorcer a moral administrativa, para a satisfação de valores morais não institucionalizados e incompatíveis com o sistema moral eleito pelo ordenamento jurídico. "Sob o prisma da moralidade, a satisfação dos requisitos de legalidade do ato não é suficiente. Será necessário ir adiante, na análise da ação administrativa, para investigar se o conjunto dos seus elementos realmente sustenta o interesse público ou apenas dá falsa impressão de que o faz" (Moreira Neto, 1992: 10/11).

Para que se possa identificar o atentado à ética administrativa, é imprescindível a análise do motivo e do objeto do ato administrativo, bem como a sua relação com a finalidade pública específica, eleita ou não no caso concreto (Moreira Neto, 1992: 11 e Franco Sobrinho, 1995: 10). A investigação do mérito do ato administrativo constitui o único caminho para aferir a compatibilidade do ato inquirido com o princípio da moralidade, concedendo objetividade para o controle deste decorrente (cf. Franco Sobrinho, 1995: 9/10)

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Ato administrativo imoral será aquele que infringir a motivação, enquanto dever constitucionalmente imposto ao administrador (CF, arts. 37, caput, e 93, IX), escapar a finalidade, não se apoiando no dever da boa administração (Franco Sobrinho, 1995: 10). A invalidação do ato administrativo por imoralidade depende de sua natureza, de sua utilidade, da sua urgência, da sua necessidade ou do interesse público provado, devendo o órgão jurisdicional controlador pesar tais elementos ao apreciar o atentado aos preceitos da ética da Administração (cf. Franco Sobrinho, 1997: 38).

Constata-se o vício de moralidade quando o ato administrativo (cf. Moreira Neto, 1992: 11/13) tem como lastro motivo inexistente, insuficiente, inadequado ou incompatível com o seu objeto, ou seja, quando os pressupostos fáticos e jurídicos que foram apreciados para sua expedição não guardam relação de pertinência com a relação jurídico-administrativa criada, modificada ou declarada pela Administração no exercício de sua função típica. Nesse caso, carece o ato administrativo de seu pressuposto lógico, a causa, essencial para o seu ingresso no ordenamento jurídico (Mello, 1994: 187/188).

Também há vício de moralidade quando o motivo "embora declinado verdadeiramente, for erroneamente estimado pelo agente para servir de fundamento para sua ação, levando a um resultado incompatível com o atendimento de interesse público específico a que deveria visar o ato" (Moreira Neto, 1992: 13).

O conteúdo do ato administrativo, em respeito ao princípio da moralidade, como também ao da impessoalidade, deve ter existência jurídica viável, compatível com o interesse público expresso na lei, sacrificando somente o necessário da esfera jurídica privada para a sua concretização (cf. Moreira Neto, 1992: 13/14).

Em se admitindo juízo discricionário na especificação do interesse público genérico tutelado pela lei no caso concreto, ou seja, na eleição por parte do administrador do fim específico do ato na situação jurídica individual, o controle da discricionariedade se faz segundo os ditames do princípio da impessoalidade. O interesse público específico identificado pelo administrador no caso concreto deve guardar proporcionalidade com a finalidade genérica imposta ao mesmo pelo ordenamento jurídico. Temos, in casu, simultaneamente, a quebra do princípio da impessoalidade e do princípio da moralidade, aflorando uma vez comprovada a desproporção entre a opção discricionária e o fim legal.

Mas a apreciação objetiva da moralidade do ato administrativo demanda o respeito, antes de tudo, ao princípio da publicidade, que determina ao administrador o dever da motivação. Entendemos precário vincular a moralidade a perquirição da intenção do agente. No direito público, somente se torna relevante quando exposta no ato a ser controlado. Ao emitir ato administrativo discricionário desmotivado, fere a administração pública a publicidade, inerente à juridicidade administrativa. Se o motivo exposto revelar interesse particular do administrador que comprometa a validade moral da conduta administrativa, tal como o enriquecimento ilícito ou em provocar dano ao erário, a intenção do agente ganha alguma importância ao confrontá-lo com as demandas da ética da Administração. Como nos lembra Diogo de Figueiredo de Moreira Neto (1992: 12), "o juiz deve ater-se apenas a verificar se foi atendido ou não o standard jurídico da boa administração e, se não o foi, invalidar o ato exclusivamente por essa razão".

Nesses casos, entendemos que há uma presunção juris tantum de imoralidade administrativa. Se a intenção do agente público representa tarefa árdua para a análise do operador jurídico, não pode tal obstáculo inviabilizar a certeza e segurança no controle da moralidade dos atos administrativos, devendo somente ser levada em consideração caso o órgão que os exarou consiga provar que agiu, ainda que erroneamente, para melhor satisfazer o interesse público na situação jurídica individual. Comprovada a boa fé do agente público, se não tipificada a conduta guerreada como improbidade administrativa, afasta-se a existência de atentado ao princípio da moralidade; embora persistam os vícios de impessoalidade, sujeitando o ato às conseqüências de sua invalidação jurisdicional. Moralidade administrativa significa conduta ética da Administração.

Somente é possível acionar o controle jurisdicional quando a quebra da juridicidade pelo ato administrativo irradia os seus efeitos na esfera de direitos e garantias do administrado, devendo eliminar as conseqüências do ato contestado, sem prejuízo ao controle de sua constitucionalidade. O Poder Judiciário reconstitui então a ordem jurídica violada pelo provimento inoportuno e ilegal da Administração Pública; mas os benefícios da sentença judicial que intervém ficam circunscritos ao caso concreto trazido à sua apreciação, subsistindo os efeitos do ato para as demais situações jurídicas individuais.

O exercício desse controle não pode ser realizado sem a observância da esfera de competência de cada poder, ou seja, a intervenção do órgão jurisdicional sem que seja levado em consideração a harmonia dos três poderes. Portanto, deve o Poder Judiciário manter-se, segundo a maioria dos administrativistas, alheio a tudo o que não disser respeito à legalidade dos atos administrativos (por exemplo, Seabra Fagundes, 1991: 189/190 e Meirelles, 1995: 137/138). O que implica dizer, diante da admissibilidade da apreciação subjetiva do administrador, a regra é a inércia do órgão jurisdicional.

É condição sine qua non para a atuação do controle jurisdicional que o contencioso administrativo verse sobre matéria que puder ser apreciada por critérios fundados na legalidade, segundo considerável parcela da doutrina e da jurisprudência, vedando-se ao Poder Judiciário interferir no que for concernente à intimidade do ato administrativo. Assume, portanto, um sentido meramente legal, restringindo-se a verificar se os atos da administração obedeceu às prescrições legais concernentes à competência, ao motivo, ao conteúdo, à finalidade e à forma.

Entretanto, utilizar esse critério de modo absoluto pode produzir aberrações no regime jurídico-administrativo e, por seqüência lógica, ninhos potenciais de abuso de poder.

Quanto a incidência do controle jurisdicional nos aspectos vinculados dos atos administrativos, presentes em todos, inexiste na doutrina e na jurisprudência qualquer dúvida. A inobservância do princípio da moralidade administrativa, se identificada, ocorre no plano da constitucionalidade da lei que ensejou o ato administrativo, podendo o órgão jurisdicional competente fazer uso do controle difuso de constitucionalidade, admitido em nosso sistema jurídico. A questão dos aspectos discricionários, do mérito do ato administrativo exige uma maior cautela.

A tendência hodierna do direito administrativo é a de se privilegiar a cidadania e a aproximação do administrado com a Administração, procurando induzir à sociedade a assumir um caráter mais participativo quanto à boa gestão da coisa pública. E o controle jurisdicional reflete essa preocupação.

A discricionariedade faz-se presente quando a norma permite que o administrador utilize a apreciação subjetiva para definir a situação jurídica individual e a providência administrativa a ser adotada. Contudo, passa a existir entre a opção discricionária e caso concreto um liame indissociável, vulnerando o ato administrativo ao controle jurisdicional. A competência discricionária tem limites no regime jurídico-administrativo e, sua utilização indevida ou contrária ao interesse público e à lei submete-se à apreciação do Poder Judiciário.

Em havendo a Administração fundamentado sua análise de oportunidade e de conveniência em uma conjuntura insustentável, desarrazoada, manifestamente inadequada, ou até mesmo inexistente, para a consecução do interesse público e do fim legal, não óbice algum a interferência do Poder Judiciário em retificar a violação da ordem jurídica. Diz-se então que o juízo discricionário se vincula a própria justificativa de sua formação, viabilizando a apreciação de sua juridicidade, diante do preconizado na ordem jurídica, pelos órgãos jurisdicionais.

A admissibilidade do controle jurisdicional dos atos administrativos de natureza discricionária representa uma evolução no direito administrativo brasileiro. Tem-se hoje uma tendência pela ampliação do raio de intervenção do Poder Judiciário na fiscalização das atividades desempenhadas pela Administração Pública. E a aparente retirada de aspectos discricionários do ato administrativo pela construção de meios jurídicos idôneos (como a teoria dos motivos determinantes, a teoria do desvio de poder), levando-os a zona de apreciação de legalidade, fez-se em razão de um maior questionamento da conduta da Administração. A lei não contém nada que possa ser dispensável ao Administrador no exercício de sua competência, sendo-lhe terminantemente proibido produzir anacronismos e conseqüências incompatíveis com o interesse público tutelado pelo regime jurídico-administrativo. Nada escapa ao controle de juridicidade quando se trata de lesão ou ameaça à direito, pois:

"Todo o ato administrativo, de qualquer autoridade ou Poder, para ser legítimo e operante, há que ser praticado em conformidade com a norma legal pertinente (princípio da legalidade), com a moral da instituição (princípio da moralidade), com a destinação pública própria (princípio da finalidade) e com a divulgação necessária (princípio da publicidade. Faltando, contrariando ou desviando-se desses interesses básicos, a Administração Pública vicia o ato de ilegitimidade expondo-o à anulação da mesma, ou pelo Poder Judiciário se requerida pelo interessado" (Meirelles, 1995: 606; grifo nosso).

          O princípio da separação de poderes estabelece no Estado Democrático de Direito que as funções estatais devem ser exercidas de modo harmônico e integrado pela ordem jurídica, respeitadas a competência e a autonomia do órgão do Estado no desempenho de suas atividades ordinárias e secundárias. Isso veda ao órgão jurisdicional intervir no ato administrativo quebrando o mérito formado pelo administrador quando diante da situação jurídica individual definida para a aplicação de ofício da lei, com a subseqüente usurpação da competência do agente administrativo pelo Poder Judiciário. O juiz não pode substituir o administrador e vice-versa. Mas pondera José Augusto Delgado (1992: 39):

"A extensão do princípio da moralidade conduz ao entendimento de que a administração pública tem o dever da melhor administração, que o ultrapassa o conceito de bem administrar. Isso representa que, em face de quatro ou cinco hipóteses boas, o administrador, ao contrário do particular, não tem o direito de escolher qualquer uma delas. É do seu dever de adotar a melhor. Se não o fizer, em face de como está posto, na Constituição Federal o princípio da moralidade administrativa, o juiz tem mais do que o poder jurisdicional, tem o dever de, no exercício do controle da referida atividade administrativa, de desfazer a decisão, por ser reflexo de uma ação que infringiu a obrigação de ‘melhor administrar’. Esse poder constitucional do juiz é, somente, o de constituir o ato administrativo. Não lhe é permitido que substitua a ação administrativa, sob pena de ferir um outro princípio que é o da independência e harmonia dos poderes".

Navega o controle jurisdicional pelo mar da juridicidade, jamais podendo invalidar um ato administrativo que não produziu nenhum dano à ordem jurídica. Compete sim, ao Poder Judiciário, invalidar todo e qualquer provimento da Administração que viole os preceitos éticos da moral administrativa. Onde há imoralidade, deve haver o controle de juridicidade, na sua modalidade jurisdicional.

O mérito do ato administrativo perde sua imunidade quando acolhe na intimidade da zona de apreciação subjetiva do administrador quebra à juridicidade que deve estar onipresente na ação da administração pública (cf. Delgado, 1992: 39/40; Saraiva Filho, 1996: 128; Ferraz, 1995: 300). Não se justifica a inércia do Poder Judiciário em examinar o mérito se suscitada a tutela jurisdicional em razão de prejuízo condenado pelo ordenamento jurídico. A Constituição Federal expressamente atribui ao órgão jurisdicional o dever de dirimir o contencioso administrativo levado à sua apreciação, não condicionando essa obrigação constitucional a outra fronteira a não ser a lei, ainda mais em face do expresso em seu art. 5º, inciso XXXV.. Então o que impede a atividade jurisdicional adentrar nos aspectos meritórios do ato administrativo quando este viola a moralidade administrativa, malgrado sua correção no tocante a sua legalidade?

Não vemos qualquer óbice à intervenção do órgão jurisdicional para se coibir a imoralidade no mérito do ato administrativo, pois em violando o administrador a ordem jurídica, a questão passa a ser de juridicidade. Se a quebra da lei e do interesse público nascem nos aspectos vinculados, discricionários ou meritórios do ato administrativo, é irrelevante ainda se discutir a viabilidade da provocação do Poder Judiciário em retificar a conduta da Administração, sob a forma de invalidação (cf. Ferraz, 1995: 300 e Borges, 1993: 52). A impessoalidade, a razoabilidade, a proporcionalidade e a publicidade, constituem os instrumentos postos à disposição do Poder Judiciário para aferir a juridicidade do ato administrativo quanto ao seu aspecto de moralidade.

Apesar da inviabilidade do órgão jurisdicional em tocar a justiça, oportunidade ou eficiência do ato administrativo, a constituição de uma zona proibida ao controle judiciário, mesmo na ocorrência da violação dos preceitos éticos do ordenamento jurídico, enseja um campo propício ao abuso ou desvio de poder. O Poder Judiciário não se furtar em retirar um ato administrativo quando a avaliação meritória se baseia em erro, falsidade ou conteúdo condenado pela ordem constitucional e infraconstitucional, ou quando desarrazoada e desonesta a motivação da conduta discricionária (ver Borges, 1993: 53/54).

De modo algum estamos propondo aqui a supremacia absoluta do Poder Judiciário no trato das questões controvertidas da Administração Pública. O que levantamos aqui é a inexistência de uma razão plausível para ainda se impedir que o Poder Judiciário deixe de agir, de fulminar a imoralidade da conduta da Administração.

Diante de duas ou mais concepções plausíveis ao ordenamento jurídico, o controle de moralidade fica prejudicado. Seria abusivo ao Poder Judiciário intrometer-se nesse aspecto do ato, porque a maior proximidade do administrador às situações jurídicas individuais que enfrenta a Administração pressupõe a melhor adequação de sua análise para a concretização do interesse público, quando no exercício do poder discricionário. Na dúvida quanto a juridicidade da apreciação subjetiva da administração, deve o órgão jurisdicional deixar prevalecer intocável o mérito do ato administrativo no que não for contrário ao ordenamento jurídico. O interesse público prevalece sobre o interesse privado (França, 1995: 38; no mesmo sentido, ver Saraiva Filho, 1996: 128).

Outro ponto que deve ser ressaltado é que o controle da moralidade do ato administrativo, quando discricionário, de modo algum descaracteriza o binômio conveniência-oportunidade que orientou a formação do mérito do ato administrativo. Não há razão prática para justificar o controle jurisdicional de aspectos como o abuso de poder, a irrazoabilidade e a desproporção no ato administrativo, a imoralidade administrativa, com base de um conceito excessivamente ampliado de legalidade. Isso provoca o esvaziamento de noções que a nossa Constituição tornou tão caras para a administração pública como a moralidade administrativa. A desobediência à razoabilidade e à proporcionalidade, instrumentos indispensáveis para se aferir a moralidade, não constitui um vício de legalidade (como em Zancaner, 1993: 210 e Borges, 1993: 52), mas sim ofensa aos princípios da impessoalidade e da moralidade.

A imoralidade administrativa nos atos discricionários não convertem os elementos construídos pela apreciação subjetiva em aspectos vinculados, como se costuma argüir. É vinculada , em última ratio, toda atividade administrativa à juridicidade, ao direito, ao ordenamento jurídico como um todo coerente e harmônico, embora nem sempre seja à legalidade. Toda essa celeuma que se fez e se faz em torno da preservação de um princípio, o da separação funcional do poder, em pleno esvaziamento (cf. França, 1997.1: passim), não deixa de ser inconveniente e embaraçoso, quando chega ao operador jurídico uma concreta ameaça ou lesão a direito do administrado, em virtude da conduta imoral do administrador. Ao invalidar um ato administrativo imoral, o Poder Judiciário está exercendo o seu papel constitucional de controlar a juridicidade dos atos do Poder Executivo, quando invadem de modo injustificado a esfera de direitos e garantias do administrado. Do contrário, o princípio da moralidade perde sua eficácia jurídica e atrofia o seu papel político-ideológico, provocando a imunidade judicial do ato discricionário quando imoral.


CONCLUSÃO

A revisão judicial dos atos administrativos consiste no último bastião entre a arbitrariedade e a juridicidade, principalmente na realidade nacional. Somente a permanência e a força da decisão judicial, desconstituindo o ato administrativo atentatório à moralidade administrativa, melhor supre o interesse público quando a Administração se recusa a exercer o seu autocontrole.

          São essas nossas considerações sobre o controle de moralidade dos atos administrativos e suas limitações no ordenamento jurídico pátrio. Nesta modesta contribuição, esperamos que o aperfeiçoamento e otimização dos mecanismos de controle de juridicidade da conduta administrativa, procurando-se aproximar mais o cidadão do Poder Público, por sua interdependência social que nunca deve ser esquecida e nem se deixa esquecer.


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Sobre o autor
Vladimir da Rocha França

advogado em Natal (RN), professor da UFRN e da Universidade Potiguar, mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE), doutor em Direito do Estado pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANÇA, Vladimir Rocha. Considerações sobre o controle de moralidade dos atos administrativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 34, 1 ago. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/338. Acesso em: 28 mar. 2024.

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