1. Direito e Moral no Estado de Direito
Um dos grandes problemas que tem sido gerado pela avalanche de conflitos na qual se encontra o Poder Judiciário, é a questão da moralidade administrativa. Os novos instrumentos de controle jurisdicional, bem como o novo enfoque que os meios já existentes assumiram em nossos dias, obtiveram desempenho satisfatório no controle de legalidade dos atos administrativos, impondo um maior cuidado e preocupação para o administrador no trato do interesse público, inexistente nos anos de chumbo. Apesar de tal conquista, ainda o Poder Judiciário encontra barreiras (ou as põe) para análise dos atos administrativos que, embora revestidos de legalidade, ameaçam e comprometem a estabilidade e a paz sociais. Principalmente, quando há atentado à moralidade, à ética que inspira o sistema jurídico positivado.
Nas tentativas que Hans Kelsen empreendeu para a construção de uma teoria "pura" do direito, o jurista austríaco propôs o afastamento do direito da ética. Cuidaria a ciência jurídica do direito, enquanto que a ética, da moral (Kelsen, 1991: 63/64).
Alertava ainda que somente se houvesse uma moral absoluta, poderia haver uma identificação entre direito e justiça. Do ponto-de-vista do conhecimento científico, dada a inviabilidade de valores absolutos em geral, não seria possível a aceitação de uma moral absoluta que excluísse a validade de qualquer outra, e, portanto, não haveria razão para não se considerar direito uma ordem de coação desconsiderasse a noção do justo, prescrevendo a conduta sem um valor moral absoluto ou, ignorando a busca de um elemento comum entre as diversas ordens morais (Kelsen ,1991: 69/71). O que dispensaria a necessidade de se justificar o direito pela moral, mesmo que parcialmente juridicizada (Kelsen 1991: 73/74).
A dissociação entre direito e ética não pode, ao nosso ver, ser admitida. As tentativas de fá-lo, impulsionadas pela ascensão do Estado na instrumentalização e na produção do direito posto, não conseguiram satisfatoriamente trazer a tão sonhada segurança jurídica que os positivismos tentaram oferecer às alternativas do jusnaturalismo de edificar uma ontologia do jurídico. Lembra João Maurício Adeodato (1995: 200/201) que essa separação somente é admissível como "artifício metodológico e pragmático", não expressando "qualquer realidade em si, ontológica, que pudesse vir a ser erigida em paradigma científico".
Embora seja impossível uma moral universal, a norma jurídica necessariamente constitui o veículo de instrumentalização de um valor moral relativo. O sistema jurídico seleciona, entre os diversos sistemas morais, um em especial (ou parcelas de diversos), juridicizando os valores deste.
Uma vez juridificados preceitos morais, estes passam a compor a dimensão de validade das normas jurídicas, vinculando a conduta do operador jurídico. Tais preceitos não perdem o liame com o sistema moral de origem (Kelsen, 1991: 73), mas somente podem ser empregados como critério de legitimidade para o direito se absorvidos pelo mesmo, por seus canais de comunicação e seleção junto aos demais sistemas sociais (cf. Kelsen, 1991: 73 e França, 1997.1: 8/9). Caberá justamente ao preceito moral juridicizado conceder coerência e unidade ao direito como sistema ético, preservando-o das injunções e tentativas de colonização por parte do econômico e do político no jurídico (cf. Souto, 1992: 23/25).
A importância do valor moral relativo exarado pela norma jurídica assumiu maior relevância com a evolução do Estado de polícia para o Estado de Direito.
No Estado de polícia, fase das monarquias absolutas (the king can do no wrong), o direito público se restringia ao preceito jurídico que concedia ao soberano o direito ilimitado de administrar, tanto para os seus fins como aos meios de exercício do poder. Nessa época, inexistia um ramo de conhecimento jurídico sobre o assunto (Gordillo, 1977: 27/28; cf. França, 1997.1: 32).
Com o advento do Estado de Direito, passou a haver uma demanda por uma administração pública honesta, transparente e democrática, onde o cidadão sentir-se-ia livre de fato (cf. Rocha, 1994: 180). Embora não aceitemos a existência nem a possibilidade de um sistema ético universal e absoluto, os valores da democracia e da cidadania encontram-se bem enraizados nas sociedades ocidentais, ainda que, não raras vezes, formalmente.
Uma das grandes conquistas da ciência do Direito foi a sistematização do que se convencionou chamar princípio da legalidade. A consciência de que o Estado jamais poderia ter novamente os poderes usualmente concedidos ao Príncipe absoluto, firmemente sedimentada entre os juristas a partir da consolidação da supremacia do pensamento liberal-burguês, viabilizou a construção e concretização de um melhor arsenal de instrumentos jurídicos para o controle do exercício da função administrativa.
A concepção clássica do princípio da legalidade aponta-o como aquele que determina ao administrador que sua conduta somente pode ocorrer quando, como e se estabelecida pelo legislador, procurando colocar a função administrativa subordinada a função legislativa (cf. Meirelles, 1995: 82/83). Ao contrário do que ocorreria na esfera jurídica privada, não existiria espaço para a vontade da Administração no exercício de sua função típica, ou, se aquela admitida fosse, uma vontade inferior e condicionada ao interesse público estabelecido por lei.
Do ponto-de-vista dogmático, nada pode estar fora da ordem jurídica, devendo o agente público se conduzir para a ordem jurídica e o interesse público, quando se trata do desenvolvimento de atividades estatais (cf. Seabra Fagundes, 1984: 80).
Entretanto, a expansão de poder e influência do exercício da função administrativa sobre as demais funções do Estado (legislativa e jurisdicional), bem como na vida jurídica do cidadão, acabaram colocando em crise a concepção de legalidade que até então se tinha. Não está se afirmando que o princípio da legalidade tenha, numa perspectiva lógico-formal, desaparecido, e sim a urgência de seu redimensionamento para satisfazer novas exigências sociais.
A demanda por uma maior intervenção do Estado em assuntos antes exclusivos da esfera jurídica privada, fez crescer o grau e o número de oportunidades para a apreciação subjetiva dos agentes públicos na situação de fato e de direito levada à sua apreciação. Embora se afirme que a discricionariedade no exercício das funções estatais seja sempre delimitada e somente válida quando concedida pelo próprio ordenamento jurídico (do contrário, não teríamos evoluído do arbítrio constante do Estado de polícia), as opções lícitas do concretizador do sistema são absorvidas pelo mesmo aparato normativo, sendo aceitas como juridicamente válidas e vinculantes para a conduta do cidadão. O que, por conseguinte, permite uma maior relevância jurídica à vontade do agente político, ainda que esta nunca tenha deixado, pelo menos em termos dogmáticos, de ser secundária quando comparada à vontade do sistema jurídico posto. Acresça-se a própria complexidade que as relações jurídicas privadas assumiram, o que tornou, não raras vezes, insuficiente a regulação jurídica estipulada pelo particular, gerando, por exemplo, o dirigismo contratual, a intervenção crescente nas relações de consumo, a desapropriação etc.
O que aumentou a procura dos ordenamentos jurídicos positivados pela inserção de um conteúdo ético seus princípios e regras (cf. Rocha, 1994: 190).
No que concerne à administração pública, a forte expansão da discricionariedade logo tornou insuficiente o grau de sindicabilidade judicial que os sistemas liberais-burgueses admitiam no exercício da função administrativa, baseado no clássico princípio da separação dos poderes e na concepção tradicional de legalidade imposta ao administrador após as conquistas da Revolução Francesa.
Os instrumentos de controle da função administrativa pelo Poder Judiciário, limitados a apreciação dos aspectos de legalidade dos atos administrativos, passaram a se mostrar ineficazes quando o administrador buscava, sob o véu da legalidade, atingir fins e obter vantagens inteiramente estranhas ao espírito do sistema jurídico-democrático.
Para viabilizar a eliminação de tais atos, embora revestidos de aparente licitude, segundo os critérios nem sempre realistas de legalidade, criou-se a teoria do abuso de poder. Passou-se a admitir que, em casos específicos como a inadequação da via eleita com o fim estatuído na norma, a incompatibilidade dos motivos exarados pelo administrador com a opção discricionária, a identificação de fins ilícitos e atentatórios à estabilidade do sistema jurídico posto, entre outros, a apreciação jurisdicional sobre questões que surgiriam como referentes ao mérito do ato, mas que se converteriam em questões de legalidade em face da conduta do administrador no caso concreto, viabilizando o controle do Poder Judiciário do ato discricionário do Poder Executivo.
Com a teoria do abuso de poder, a discussão sobre a necessidade de uma conduta ética, honesta e proba por parte do administrador começou a florescer. "O abuso de direito, ontem, como hoje, nada mais é do que um instituto de correção, destinado a evitar um direito, como são também a boa-fé, a teoria da imprevisão, a teoria da lesão enorme e a teoria das dívidas de valor" (Moreira Neto, 1992: 4; grifo do autor). A partir dessa construção teórica, que tanto serviço prestou para o controle judicial da função administrativa, a doutrina passou a identificar no ordenamento jurídico-administrativo a existência de uma moral própria, peculiar à administração pública.
2. Moralidade Administrativa na Constituição Federal
Segundo Hely Lopes Meirelles (1995: 79), a administração pública consiste na "gestão de bens e interesses qualificados da comunidade no âmbito federal, estadual ou municipal, segundo os preceitos do Direito e da moral, visando ao bem comum". A inserção de elementos de ordem moral no regime jurídico-administrativo, vinculando a conduta do agente público no desempenho de sua função, começa a partir da configuração das prerrogativas, atribuições e princípios que a orientam.
Cabe à função administrativa a determinação e formação das situações jurídicas individuais que deverão ser regidas pelo preceito proposto no texto legal, desencadeando um processo de concretização normativa da lei. Caracteriza-se pelo dever de ação de quem detém essa competência, no sentido de dar eficácia aos direitos subjetivos e obrigações públicas do indivíduo, estabelecidos no texto normativo, dentro dos princípios e regras extraídos no processo de concretização do ordenamento jurídico estatal (cf. França, 1997.1: 15).
Ao contrário do que acontece na esfera privada, o elemento volitivo tem existência precária no âmbito do direito público. O conjunto de prerrogativas e atribuições investidos na pessoa de quem exerce a função administrativa não podem estar submetidas ao seu livre arbítrio. Como se trata de uma atividade destinada a concretização de bens e valores caros a toda coletividade, o ordenamento jurídico procura eliminar, ou até mesmo, de forma mais realista, mitigar a influência da vontade do agente público e dos interesses secundários da administração pública, enquanto ente jurídico, na formação e execução dos atos de sua competência, diante do interesse público exposto no texto normativo e que aflora no caso concreto.
A presença de um forte conteúdo ético no regime jurídico-administrativo verifica-se, de imediato, ao se apreciar a finalidade da administração pública, que reside no bem estar da coletividade administrada. "Ilícito e imoral será todo ato administrativo que não for praticado no interesse da coletividade"(Meirelles, 1995: 81; cf. Rocha, 1994: 192 e Franco Sobrinho, 1995: 9).
Considerando a existência de valores morais relativos na norma jurídica, juridicizados pelos canais de comunicação e de seleção do sistema jurídico na realidade social, entendemos que o regime jurídico-administrativo, tal como o regime jurídico dos demais campos do direito positivo, tem preceitos éticos retores da função que visa regular. Há uma moral própria da administração pública, institucionalizada, determinando a conduta e desempenho da função administrativa. Convencionou-se chamá-la moral administrativa (cf. Meirelles, 1995: 84 e Rocha, 1994: 192).
A moralidade administrativa é resultante de uma moral extraída do conteúdo da ética socialmente afirmada, "considerando-se esta o conjunto de valores que a sociedade expressa e pelos quais se pauta a sua conduta"(Rocha, 1994: 192; no mesmo sentido, Zancaner, 1993: 210). Ao contrário da moral comum, onde se pressupõe a liberdade do indivíduo de fixar os seus próprios fins, a moral administrativa orienta-se pelo resultado, sendo irrelevante a intenção de produzi-lo, determinando que o desempenho da função administrativa deve atingir a sua finalidade institucional (Moreira Neto, 1992: 7/8; cf. Delgado, 1992: 36/37). Lembra Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1992: 9) que "como toda a instituição tem em si a idéia de fim, foi nessa vinculação teleológica que, ainda em pleno fastígio do positivismo jurídico, que se encontrou fundamento para desenvolver a teoria do desvio de poder (ou desvio de finalidade), como primeira manifestação da importância da moralidade administrativa, que, embora não tenha sido assim considerado, hoje ganhou reconhecimento e se expandiu para abranger não só os casos clássicos de desvio como todos aqueles em que o agente público atue em desconformidade com seu dever de finalidade à disciplina interna da Administração Pública".
A aceitação de uma moral administrativa, inicialmente, fez-se através de um alargamento no raio de incidência do princípio da legalidade, passando o vício de moralidade a ser interpretado como vício de legalidade. O que viabilizou o discurso do abuso de poder, e, assim, o controle jurisdicional mais adequado às novas exigências sociais, sem haver atentado contra o princípio clássico da tripartição dos poderes (cf. Di Pietro, 1991: 103 e Meirelles, 1995: 85).
A moral administrativa não pode servir como instrumento retórico, assumindo qualquer conteúdo no caso concreto, ao sabor das tendências ideológicas de quem tem competência para desempenhar a função administrativa ou, para controlá-la. O conceito de moralidade administrativa deve estar calcado nos fundamentos (CF, art. 1º, I a V) e diretrizes (CF, art. 3º, I a IV) estabelecidos pela Constituição e, que, constituem as opções político-ideológicas de nosso sistema constitucional (sobre fundamentos e diretrizes constitucionais, ver França, 1997.2: 474/477). O regime jurídico-administrativo pátrio rejeita quaisquer enfoques, teóricos ou jurisprudenciais, incompatíveis com esse lastro político-ideológico. É a ética da democracia e da cidadania que orienta o administrador e, portanto, a que foi juridicizada pelo sistema de direito positivo.
A Constituição vigente estabeleceu, em seu art. 5º, inciso LXXIII, ao instituir a ação popular, a possibilidade de invalidação de qualquer ato lesivo à moralidade administrativa. Há previsão constitucional da tutela e preservação da moralidade administrativa, também: ao prever as garantias constitucionais do habeas corpus e do mandado de segurança contra o abuso de poder (CF, art. 5º, incisos LXVIII e LXIX; ao vincular expressamente toda a atividade administrativa ao princípio da moralidade (CF, art. 37, caput); ao cominar com a suspensão dos direitos políticos, a indisponibilidade de bens e ressarcimento ao erário, os atos de improbidade administrativa; ao instituir a indignidade para o oficialato por improbidade administrativa (CF, art. 42, § 7º); ao determinar a competência do Congresso Nacional, por proposta do Tribunal de Contas da União, para sustar despesa irregular, ao lado da despesa ilegal (CF, art. 72, § 2º); ao conceder legitimação para o cidadão, o partido político, a associação ou o sindicato para denunciar irregularidades ao Tribunal de Contas da União (CF, art. 74, § 2º); ao elencar como crime de responsabilidade do Presidente da República os atos atentatórios à probidade administrativa (CF, art. 85, V); ao atribuir ao Senado Federal, após a autorização da Câmara dos Deputados, o processo e julgamento do Presidente e Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade e dos Ministros de Estado nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles agentes (CF, art. 52, I) (cf. Moreira Neto, 1992: 25/26).
Com o texto do caput do art. 37 da Carta Magna, expurgou-se na doutrina e na jurisprudência administrativa qualquer dúvida quanto ao caráter normativo, e não apenas meramente informativo, do princípio da moralidade. Tal como ele está estruturado no corpo da Constituição, o princípio da moralidade assume proporções altamente significativas para o ingresso dos atos administrativos no ordenamento jurídico. Como bem diz Alice Gonzalez Borges (1993: 50), "nunca um texto constitucional anterior abordou, de modo tão sistemático, objetivo e cristalino, as coordenadas que devem balizar a atuação dos administradores públicos brasileiros".
Os princípios constitucionais, como já tivemos oportunidade para dizer (França, 1997.2: 478), são expressões normativas consolidadas a partir dos valores (fundamentos) ou fins (diretrizes) predeterminados constitucionalmente. Garantem a coerência, univocidade e concreção ao ordenamento jurídico fundado numa dada Constituição, delimitando a margem de interpretação e apreciação do texto constitucional pelo operador jurídico. Asseguram a objetividade da concretização da norma constitucional e infraconstitucional.
O princípio da moralidade administrativa, expresso no art. 37, caput, da Carta Magna, constitui princípio constitucional geral do subsistema constitucional da administração pública, orientando e delimitando a atuação estatal no exercício da função administrativa. O princípio constitucional geral da moralidade administrativa decorre da moralidade pública, implícita nos art. 5º, incisos LXVIII, LXIX e LXXIII, da Constituição vigente, entre os direitos e garantias fundamentais do cidadão, e, por razão do art. 60, § 4º, do texto constitucional, elevada à condição de princípio constitucional fundamental (embora nem todas as cláusulas pétreas veiculem princípios fundamentais, eles são necessariamente cláusulas pétreas), sendo, por conseguinte, norma constitucional dotada de grau superior quando comparada aos demais princípios e regras constitucionais (França, 1997.2: 483/492).
Difere a moralidade administrativa da moralidade exigida nas relações jurídicas privadas por constituir uma ética vinculada e voltada para a conduta e desempenho da função administrativa, regida pelo direito público (Justen Filho, 1995: 45).
Todos os atos estatais (administrativos, legislativos e jurisdicionais) encontram-se submetidos ao princípio constitucional fundamental da moralidade pública (Justen Filho, 1995: 46/47; Rocha, 1994: 195), assim como estão aos princípios constitucionais fundamentais da isonomia (CF, art. 5º, caput e inciso I) e da legalidade (CF, art. 5º, II).
A moralidade administrativa constitui o princípio jurídico que norteia a ética da atividade administrativa, cuja atividade está vinculada a finalidade que lhe foi abstratamente atribuída pelo ordenamento jurídico (cf. Rocha, 1994: 191). "O acatamento do princípio da moralidade pública dá-se pela qualidade ética do comportamento virtuoso do agente que encarna, em determinada situação, o Estado Administrador, entendendo-se tal virtuosidade como a conduta conforme a natureza do cargo por ele desenvolvida, dos fins buscados e consentâneos com o Direito, e dos meios utilizados para o atingimento destes fins", fornecendo o sistema jurídico o conteúdo e a forma de concretização dos elementos da prática administrativa moral (honestidade, boa-fé, lealdade) (Rocha, 1994: 193/194). Constitui "regra de civilidade essencial à sobrevivência das instituições democráticas" (Zancaner, 1993: 210).
O princípio constitucional geral da moralidade administrativa goza de plena autonomia, assumindo identidade própria quando comparado aos demais princípios constitucionais gerais do subsistema constitucional da administração pública. Apesar do conteúdo principiológico do regime jurídico-administrativo exigir coerência, unidade e aplicabilidade, mesmo havendo a necessária interdependência entre os princípios constitucionais da administração pública, é preciso que esteja assegurado a cada preceito, um conteúdo e uma finalidade distinta, pois do contrário, a argüição do princípio no caso concreto perde sua utilidade práticas.
Bastante confundido com o princípio da moralidade administrativa, o princípio da probidade administrativa representa uma especificação daquele preceito, ao vedar a prática de atos desonestos e desleais para com a administração pública, praticados por agentes públicos ou terceiros no exercício de função pública (Freitas, 1996, 70/71). Enquanto a improbidade administrativa, atentado ao subprincípio da probidade administrativa, refere-se especialmente a conduta do agente público, acarretando o estabelecimento de sanções jurídicas para a repressão do desvio de comportamento do titular do múnus público, a imoralidade administrativa, que viola o princípio constitucional geral da moralidade administrativa, mais amplo e hierarquicamente superior, provoca a incompatibilidade jurídica entre o ato imoral e o regime jurídico-administrativo. É até precário em se falar em princípio de probidade administrativa, acreditamos, por não bastar por si só para gerar efeitos jurídicos concretos, necessitando prévia tipificação legal para a sua concretização (cf. Moreira Neto, 1992: 32). Talvez fosse mais preciso se falar em dever de probidade, que encontra tutela na rigorosa Lei nº 8.429/92.
Entendemos que vincular a probidade administrativa estritamente ao erário não é dogmaticamente preciso, haja vista previr a Lei nº 8429/92 como atentado a este bem jurídico a quebra dos princípios da administração pública, em seu art. 11. "Apesar de a dicção literal do comando não ser de fato, das mais felizes, o que parece plausível dele inferir é que, entretecidos os inegáveis nexos entre os princípios (moralidade e legalidade), o cometimento de uma irregularidade acompanhada pela marca indelével da desonestidade do agente ou da deslealdade para com o Poder Público implica em suficiente grau, a violação do princípio da probidade administrativa. Naturalmente, idêntico raciocínio se pode operar em relação aos demais princípios, o que empresta significado e tom inteligível ao disposto no art. 4º da Lei de Improbidade, o qual, um primeiro vislumbre soaria inócuo" (Freitas, 1996: 77/78).
A legalidade e a moralidade constituem princípios constitucionais dotados de mesmo grau hierárquico na Constituição Federal, pois aquela não admite exceções, dotada de força "de tal modo abrangente que nem os outros princípios dispostos no art. 37 da Carta Maior, o da impessoalidade, da moralidade e da publicidade, afastam as suas conseqüências" (Delgado, 1992: 34/35; em sentido diverso, ver Rocha, 1994: 213/214). Na concretização do regime jurídico-administrativo, eles incidem de modo diverso, segundo o alcance de cada um na formação, execução e controle dos atos praticados no exercício da função administrativa. Mas a distinção entre um e outro não constitui tarefa fácil. É preciso cuidado, sob pena de não esvaziar um princípio em detrimento do outro.
A legalidade cuida da adequação da atividade administrativa com o ordenamento jurídico posto (Delgado, 1992: 35), que concede ao administrador os pontos de partida do processo de concretização da função administrativa (França, 1997.1: 11/16). Na moralidade, busca-se delimitar a atividade administrativa segundo a moral administrativa, essa moral institucionalizada que procura dar sentido e coerência ética a ação da administração pública.
Ensina-nos Diogo de Figueiredo Moreira Neto (1992: 31) que o princípio da moralidade não depende que lei defina o que seja moral já que, como diz o jurista, a "precisão que se exige da legalidade não tem cabimento quando se trata de moralidade, pois, de outra forma, se estaria subsumindo um ao outro princípio, tornando ocioso falar-se em moral administrativa". Deve ser lembrado que "o conjunto de normas morais absorvidas pelo Direito e tornadas parte deste sistema, e assim, dotadas de efetividade jurídica, conduz à mesma qualidade obrigatória, genérica e com força coercitiva e, portanto, resposta sancionatória material e objetiva contra seu descumprimento" (Rocha, 1994: 194/195).
A relação do princípio da moralidade com os princípio da impessoalidade é bastante íntima. O princípio da impessoalidade, nas palavras de Hely Lopes Meirelles (1995: 85), "nada mais é que o clássico princípio da finalidade, o qual impõe ao administrador público que só pratique o ato para o seu fim legal (...) aquele que a norma de Direito indica como objetivo do ato, de forma impessoal" (grifo do autor; alguns o interpretam como o princípio da igualdade, ver Mello, 1994: 58/59). O princípio da moralidade administrativa concede efetividade jurídica à moral administrativa, aos condicionamentos éticos que devem estar onipresentes no exercício da atividade administrativa, justificando, por si só, a invalidação de ato administrativo que desconforme com tais ditames morais, e a aferição da obediência a finalidade legal constitui instrumento da mais alta relevância para a constatação da imoralidade. O fim legal pode conter atentado aos valores da cidadania e da democracia, fundamentos constitucionais inerentes da ética, mas neste caso, o ato administrativo torna-se teleologicamente ofensivo à Constituição, por padecer a lei que o ensejou de flagrante inconstitucionalidade.
Trata o princípio da publicidade da satisfação de uma exigência da cidadania: transparência e clareza no desempenho da atividade administrativa. Mediante a publicidade dos atos administrativos, assegura-se ao administrado a possibilidade de fiscalizar e controlar a conduta e desempenho da administração pública, além de constituir elemento indispensável para sua juridicidade (Meirelles, 1995: 86/88), estabelecendo ainda, o dever do agente público de motivar todo e qualquer ato proveniente do exercício da função administrativa. Toda a vontade deve qualificar uma intenção, que é "examinável pelos elementos de cada ato após a publicação" (Franco Sobrinho, 1995: 10). Não há controle de moralidade viável sem a obediência a este preceito constitucional, instituído pelo art. 37, caput, da Lei Maior (ver Ferraz, 1992: 67).
A isonomia, princípio constitucional fundamental da ordem instituída, também tem grande proximidade com o princípio da moralidade. A igualdade entre os administrados no acesso aos benefícios gerados pelo exercício da função administrativa constitui um valor moral juridicizado, indispensável para a compreensão de todo sistema de direito público. Por optar o nosso ordenamento jurídico em destacar a isonomia dos demais valores éticos do regime jurídico-constitucional, o conteúdo jurídico da moralidade administrativo pode, ao nosso ver, compor-se dos preceitos morais não abrangidos pelo princípio constitucional da igualdade.
Ao lado de outros princípios, além dos elencados aqui, o princípio da moralidade constitui elemento essencial ao princípio da juridicidade. Como já tivemos oportunidade de dizer (França, 1997.1: 20), toda e qualquer atividade estatal, tanto na edição do direito positivo infraconstitucional, como na concretização do direito positivo constitucional e infraconstitucional, está submetida a este princípio, que determina a submissão do Estado não apenas à lei, mas ao Direito (Rocha, 1994: 79).
Um ponto bastante controvertido ao se estudar o regime jurídico-administrativo é o problema da razoabilidade e da proporcionalidade nos atos administrativos. A existência desses princípios em nosso regime jurídico-administrativo partem do pressuposto de que o fim legal permite uma multiplicidade de meios para a sua concretização, demandando o exercício de uma discrição do administrador, que não pode exorbitar nem perverter a ordem instituída.
O princípio da razoabilidade institui a exigência de racionalidade, equilíbrio e sensatez no exercício da função administrativa (Zancaner, 1993: 209), da "existência, na conduta administrativa, de uma razão suficiente justa e adequada, fundada em norma jurídica amparada em uma necessidade social específica" (Rocha, 1994: 113). Pode estar inserido tanto no princípio do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV) como no princípio da proporcionalidade entre os meios e fins. "Há que se observar, contudo, que quando se associa a razoabilidade ao devido processo legal, o princípio se coloca mais como limite à discricionariedade na função legislativa; e quando se associa a razoabilidade com a proporcionalidade dos meios e fins, o princípio se coloca como limite à discricionariedade administrativa (Di Pietro, 1991: 140).
O princípio da proporcionalidade, por sua vez, prescreve a adequação e a exigibilidade do meio eleito com fim almejado (razoabilidade), o menos agressivo possível aos bens e valores constitucionalmente assegurados, preservando a harmonia destes (proporcionalidade em sentido estrito) (cf. França, 1997.2: 488/489). Alguns chegam a identificá-lo como uma face do princípio da razoabilidade (Mello, 1994: 54/57), posição equivocada no nosso entender, haja vista a importância crescente que o princípio da proporcionalidade tem assumido na preservação dos direitos e garantias fundamentais diante da intervenção crescente do Estado no cotidiano do cidadão, bem como à hermenêutica constitucional, o que provocou o seu ingresso na esfera de preocupações dos constitucionalistas.
A relação do princípio da proporcionalidade com o princípio da moralidade nasce com a apreciação do ato administrativo que se acusa imoral. Tal como o princípio da publicidade, o princípio da proporcionalidade torna viável o controle de moralidade (cf. Di Pietro, 1991: 111), podendo haver a recondução da ação administrativa a ética institucionalizada no ordenamento jurídico para o Estado-administrador.
Desrespeitados os princípios constitucionais da administração pública, " (...) os atos ficam amorais nos efeitos e na eficácia, deixando margem a medidas recursais que venha a resguardar interesses ou direitos ameaçados" (Franco Sobrinho, 1995: 12). O que aliás, foi tipificado em nosso regime jurídico-administrativo como atentado à probidade administrativa, sujeitando o agente público às sanções cabíveis (cf. Lei nº 8.429/92, art. 11).
Os princípios ganham melhor sentido quando integrados, assegurando a coerência na concretização do interesse público tutelado juridicamente, temperados pelo princípio da proporcionalidade no caso de choque aparente entre eles (cf. França, 1997.2: 489).