IV. - A sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo:
Outra vertente do problema está no registro de sociedades de fato entre pessoas do mesmo sexo.
a) A impossibilidade do registro:
Mantendo o mesmo critério de exposição quanto ao tema anterior, iremos examinar, antes, a tese da minoria.
Entende, a minoria, que, a Constituição Federal não amparou, nem equiparou a união estável entre pessoas do mesmo sexo à família, nem lhe estendeu a proteção do Estado; que, o direito natural não acolhe a livre opção sexual e nem essa se amolda aos critérios de moral e bons costumes; e que, apesar de admitida a livre disposição de bens, no âmbito do direito patrimonial, privado, por ato inter vivos ou causa mortis, não se confundem as liberalidades, por doação ou legado, onde o proprietário ou autor da herança pode dispor da parte disponível de seus bens, com o pacto de convivência entre pessoas do mesmo sexo, que, ainda na sociedade brasileira, é tida como em afronta à moral e aos bons costumes e, até mesmo, ao direito natural, por inconciliáveis questões biológicas.
Entendem, ainda, que a relação pública entre pessoas do mesmo sexo configuraria, em tese, o crime de ato obsceno ou atentado público ao pudor [26]. Admitem, entretanto, que, de lege ferenda, tal poderá vir a ser admitido, caso aprovada lei específica, no âmbito legislativo, sua permissão.
b) A possibilidade do registro:
Amparada no arcabouço da tese que admite o registro das uniões estáveis, quando integrada por separado de fato, entende, a corrente majoritária, ser possível o registro da declaração de sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo, para efeitos meramente patrimoniais, como meio de preservar a prova.
Argumentam, inclusive, com a realidade fática dos tempos modernos, lembrando que, já houve casos em que o reconhecimento de cláusula testamentária, nesse sentido, teria sido referendada pelo Tribunal de Justiça Carioca, no caso do artista plástico Jorge Guinle Filho.
b.1) A união estável :
Aqui, em contrário sensu, é forçoso lembrar que o legislador constitucional excepcionou a possibilidade de existência ou equiparação à entidade familiar da união entre pessoas do mesmo sexo, ao ressaltar que, somente "é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher" [27].
Não quis, portanto, o constituinte, reconhecer efeitos à união entre pessoas do mesmo sexo, muito menos a chancelou como se formadora de união estável.
Todavia, não é menos certo admitir-se que, na hipótese em tela, não se trata de união estável, porque assim não quis o legislador constituinte, mas mera sociedade de fato, perfeitamente admissível.
b.2) A formação biológica e o direito natural na convivência de fato:
Não se trata, aqui, de rotular, como certa ou errada, a união entre pessoas do mesmo sexo.
É certo que, a célula pretendida equiparar à família, é aquela onde possa haver agrupamento social, por descendência.
É correto, também, afirmar que, biologicamente, ainda não é possível resultar prole entre pessoas do mesmo sexo, tendendo à extinção, agrupamento assim formado.
De igual modo, não se olvida que, a relação entre pessoas do mesmo sexo, em público, é tipificada como ato obsceno [28].
Todavia, não é menos certo que, apesar de não encontrar eco, no direito natural, nem no direito positivo, conferir status de família a essa convivência, a sociedade tolera sua prática [29], apesar de ainda não lhe admitir, ipso facto, efeitos jurídicos.
b.3) A livre disposição de bens, por atos inter vivos ou cláusula testamentária, e a sociedade de fato:
De início e para que fique claro, não se pode negar a possibilidade da existência de sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo, porque, essa, pode ocorrer mesmo sem coabitação ou convivência habitual, sendo dispensável o intuito de constituir família. Ainda que se possa negar que, a união de patrimônios decorra, como fruto, puro e simples, dessa convivência, não se pode negar que nosso direito não veda a possibilidade de transferência de patrimônio, ao nuto de seus proprietários, a pessoas que se quer bem, com ou sem relação sexual.
É evidente que explorando atividade profissional conjunta, haverá a sociedade de fato, na medida da colaboração de cada um dos sócios [30].
Porém, da simples convivência entre pessoas do mesmo sexo, é certo que não resulta patrimônio comum, porque a lei assim não dispôs.
Frisam que, nesses casos, não se cogita de união estável, nem de ente equiparado à família, mas, sim, de mera sociedade de fato, instituto jurídico construído pela jurisprudência, que admite, até mesmo, a indenização por serviços domésticos prestados ou pelo simples apoio, moral ou sentimental, que dá margem e segurança a que um dos conviventes possa melhor auferir renda e estabilidade, para aquisição de patrimônio, que, assim, resulta de esforço comum.
Invocam, também, a elevada carga de hipocrisia que norteia a tese contrária, porque, assim o desejando, a um dos conviventes, detentor da titularidade do patrimônio, é lícito doar [31] ao seu companheiro, seus bens, nos limites da lei.
Podem, igualmente, fazê-lo via cláusula testamentária, por não haver vedação a que o testador legue parte disponível de sua herança [32], sem qualquer distinção.
Aplica-se, portanto, nessas hipóteses, o axioma ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus. Ora, se é lícita a comunhão de esforços para o bem comum e aquisição de patrimônio, através de sociedades de fato; se podem os conviventes pactuar a transferência de patrimônio, por meio de atos entre vivos ou testamento, porque não poderiam estabelecer regras para divisão do patrimônio comum auferido pelo esforço, também comum, reconhecido pelas partes?
Aqui impera a liberdade contratual, o Princípio da Autonomia da Vontade, por versar direito privado.
Nas declarações de sociedade de fato, por convivência entre pessoas do mesmo sexo, este fato, por si só, não é ensejador da comunhão de patrimônios, carecendo de suporte legal que o ampare. Todavia, é de se lembrar que é vedado, em nosso direito, o enriquecimento sem causa (que difere, como curial, do enriquecimento ilícito), não sendo justo atribuir todo o lucro a apenas uma das partes [33].
Observe-se, também, que é direito fundamental do ser humano a igualdade [34], porque não pode haver distinção jurídica entre as sociedades de fato, apenas em razão do sexo de seus integrantes.
Ora, se a lei não veda a pactuação sobre os efeitos patrimoniais, entre pessoas físicas, [35] porque dificultar a livre disposição patrimonial entre pessoas do mesmo sexo, que poderão obter os mesmos efeitos jurídicos por meio de atos oblíquos?
Deve imperar, portanto, a segurança jurídica pretendida obter pelas partes, com a prévia estipulação de direitos e deveres, um frente ao outro, dando a cada um o que é seu, na medida do que entendem ser o esforço comum ou individual.
Concluindo: não havendo distinção ou vedação legal, expressa, à constituição de entidade familiar ao separado de fato, nem à constituição de sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo, entendemos que, esses, tem direito, líquido e certo, amparado por Mandado de Segurança, ao registro, o que somente irá trazer segurança jurídica à sociedade.
Notas
1. Cf "Registros Públicos e Segurança Jurídica", Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, pág. 76.
2. Em 7 de fevereiro de 1924, foi sancionado o Decreto Legislativo n° 4827, reorganizando os registros públicos instituídos pelo Código Civil e, em 24 de dezembro de 1928, fazendo-se necessário disciplinar em âmbito federal sua execução, foi editado o Decreto n° 18.542.
3. "leges, nihil in eis debet esse inutile, ac superfluum, sine ministério aliquid operando" (Leis em nada devem ser inúteis, e supérfluas, sem produzirem algum efeito), in Axiomas e Lugares Comuns de Direito, de Simão Vaz Barbosa Lusitano, apud Regras de Direito de Augusto Teixeira de Freitas, ed. Lejus, 2000, pág. 132).
4. Vida Constituição Federal, artigo 236, §3°, parte final.
5. Cf. Estat. Cit., Liv. 2, Tít. 2°, Cap. 7°, §5°, apud Princípios do Direito Divino, Natural, Público, Universal, e das Gentes, Adotados pelas Ordenações, Leis, Decretos, e mais Disposições do Reino de Portugal, de Augusto Teixeira de Freitas, ob cit,. pág.311).
6. cf. Alvará de 7 de junho de 1755 princ., apud Teixeira de Freitas, ob. Cit. pág. 315).
7. Cf artigo 183, incisos VI e VII, do Código Civil em vigor.
8. Teixeira de Freitas, ob. Cit. pág. 130, contrario sensu.
9. Cf. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, ed. Nova Fronteira, 1ª. ed., pág. 950.
10. In Filosofia do Direito, ed. Saraiva, 19ª. ed., 3ª. tir., 2002,.
11. Ob. Cit. pág. 641.
12. Ob cit. pág. 640.
13. Ob. Cit. pág. 640.
14. Ob. Cit. págs. 641 a 642.
15. Ob. Cit. pág. 646.
16. Ob. Cit. pág. 647.
17. Ob. Cit. pág. 712 a 713.
18. Cf. o moralismo jurídico de Viktor Cathrein, o Direito Natural de Grócio e o Moralismo Jurídico de Georges Ripert, dentre outros – págs. 481 e ss, em especial pág. 492.
19. Ob. Cit. pág. 492.
20. In Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, ed. Nova Fronteira, 1ª. ed., pág. 594.
21. Cf. artigo 240, §2°, do Código Penal.
22. Cf. artigo 240, §3°, do Código Penal.
23. Cf. artigo 240, §4°, do Código Penal.
24. Cf. Constituição Federal de 1988, art. 5°, §2°.
25. Cf art. 146 do Código Penal.
26. Cf art. 233 do Código Penal.
27. Art. 226, §3°, CF/88.
28. Cf artigo 233 do Código Penal.
29. Admitindo, inclusive, o "Dia Nacional do Orgulho Gay", com passeatas que lotam as ruas das grandes capitais brasileiras, com ósculos públicos, presença e apoio de autoridades, já havendo, inclusive, em resposta aos reclamos sociais, projetos de lei, em trâmite no Congresso Nacional, para admitir efeitos jurídicos a essas uniões.
30. Cf. art. 1363 do Código Civil.
31. Cf. art. 1165 do Código Civil.
32. Cf. artigo 1721 do Código Civil.
33. Cf. art. 1372 do Código Civil.
34. Cf. artigo 5°, caput e §2° da CF/88.
35. Cf artigos 2°, 81 e 82 do Código Civil.