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Breves comentários acerca do novo direito das obrigações - Singelo paralelo entre os processos de reforma do BGB e do Código Civil brasileiro

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Tem-se criticado muito o considerável tempo tomado na aprovação do Novo Código Civil Brasileiro, que acabou trazendo como conseqüência a manutenção de normas já ultrapassadas para a realidade nacional atual.

De fato, no que tange aos direitos das obrigações, foco central deste trabalho, algumas das ‘novidades’ criadas pelo NCC, que não passam de mera positivação do entendimento jurisprudencial dominante, já se encontram ultrapassadas, demonstrando que o legislador perdeu excelente oportunidade de acompanhar as mais modernas conquistas do direito nacional e do direito comparado.

No direito alemão, aparente morosidade parece também ter marcado o projeto de reforma das obrigações no BGB. Contudo, substanciais diferenças merecem ser apontadas.

No dia primeiro de Janeiro de 2002, a então chamada ‘Lei de modernização do Direito das Obrigações’ (Schuldrechtsmodernisierungsgesetz ) foi finalmente aprovada na Alemanha. Cuida-se da mais importante reforma operada no BGB desde o seu nascimento em 1900.

Esta reforma teve como uma de suas fontes um projeto preparado por uma Comissão de Reforma, constituída para tanto desde a década de 70. Aquela Comissão era composta não só de membros do Ministério da Justiça, juízes, mas também por amplo número de professores universitários dos mais renomados. Em 1994, o projeto foi levado para a apreciação de uma assembléia de advogados alemães conhecida como Deutscher Juristentag, que se reúne de dois em dois anos, e aprovado por maioria absoluta. Contudo, principalmente em virtude de poderoso lobby dos representantes da indústria alemã, preocupados com o impacto das alterações, o projeto foi abandonado, permanecendo nos arquivos do Ministério da Justiça daquele país. Somente tempos depois, com a aprovação da Diretiva Européia de Vendas ao Consumidor, o antigo projeto foi desengavetado e levado à aprovação.

Ao lado desse trabalho, a reforma alemã também teve outras fontes. Uma delas pode ser condensada nas Diretivas da Comunidade Européia, mais especificamente a Diretiva de Vendas ao Consumidor, a Diretiva referente ao comércio eletrônico e a Diretiva de Pagamento a Crédito, as quais tinham prazo prescrito para serem adaptadas ao ordenamento jurídico alemão. Daí se falar, hoje, em ‘europenização do BGB’. A outra fonte de reforma é representada pelas diversas leis especiais esparsas que tratavam de matérias atinentes ao direito privado. [1]

Bem se vê que a reforma alemã toma outros contornos, muito mais associada ao processo de modernização da Comunidade Européia, dentre tantos detalhes que igualmente merecem pesquisa específica.

Mas é importante salientar que, mesmo naquele antigo projeto alemão engavetado, conquanto tenha levado tanto tempo para ser implementado, o seu processo de elaboração supera em muito nosso tradicional, arrogante e esquisito modo de compor leis. Atente-se para o valor dado, na sua confecção, aos professores universitários que compõem as universidades daquele país, bem como a preocupação em escutar as opiniões de toda a comunidade jurídica, integrada por juízes e advogados, dentre outros.

A lição deve permanecer em nossas mentes. O Novo Código Civil, apesar de trazer ao nosso ordenamento jurídico valiosos acréscimos, também deixou de efetuar imprescindíveis alterações. Percebe-se, claramente, que o recente Estatuto Civil está longe de compor um conjunto normativo coeso e atual como o Código de Defesa do Consumidor. Somente como exemplo, deve ser citado o princípio da boa-fé objetiva. Em que pese o Novo Código Civil ter adotado o princípio da boa-fé objetiva como baluarte de todo o direito privado, ainda assim alguns de seus dispositivos encontram-se presos ao paradigma da boa-fé subjetiva. Talvez a situação seria outra, se o processo de elaboração do Código Civil tivesse acompanhado o exemplo da democrática sociedade alemã.


Breves comentários às principais alterações no Direito das Obrigações encetadas pelo Novo Código Civil.

De um modo geral, pode-se afirmar que a grande novidade no Direito das Obrigações brasileiro reside na adoção expressa do princípio da boa-fé objetiva. Como princípio que é, deverá nortear todo o ordenamento privado, alterando profundamente a lógica que atualmente preside a seara das obrigações.

Todavia, o impacto do princípio da boa-fé objetiva no direito privado nacional é matéria que requer detido e aprofundado estudo, razão pela qual será abordado noutro trabalho. Nesta oportunidade, tem-se por escopo efetuar um breve apanhado das principais alterações específicas operadas em cada dispositivo do Novo Código Civil. Portanto, serão analisados, um a um, os artigos mais importantes do Livro I, Parte Especial, do NCC, que versa sobre o Direito das Obrigações.

Art. 245- A nova redação deixa claro que o devedor deverá ser cientificado da escolha na obrigação de dar coisa incerta, quando da concentração, o que não estava expressamente previsto no Código de 1916.

Art. 249, parágrafo único- Nas obrigações de fazer, acrescentou-se a possibilidade do credor executar ou mandar executar a obrigação devida, independentemente de autorização judicial. Obviamente terá cabimento naqueles casos em que a obrigação não é personalíssima. Dessa forma, torna-se quase impossível ao devedor liberar-se de sua obrigação, deixando o credor ao desamparo. Cuida-se de patente implementação do princípio da operabilidade, já que dispensa até mesmo a intervenção judicial, zelando pela celeridade.

O novo dispositivo vem confirmar a tese de LUIZ GUILHERME MARINONI, para quem "é evidente que a tutela que confere ao autor o bem em si, ao invés do seu equivalente em pecúnia, deve merecer prioridade". [2]

É claro que, se o credor preferir não fazer uso da execução extrajudicial da obrigação, poderá optar pela intervenção do Poder Judiciário, requerendo a aplicação do artigo 461 do CPC, principalmente dos seus parágrafos 3º, 4º e 5º, já que a nova prerrogativa estabelecida no artigo 249, parágrafo único do NCC pressupõe que o credor é quem arcará com os custos, "sendo depois ressarcido".

Cabe ressaltar que o artigo 249, parágrafo único do NCC autoriza a medida em casos de urgência. Indaga-se, nesse sentido, se o devedor poderá se esquivar do ressarcimento devido pela execução extrajudicial implementada pelo credor, ao argumento de que inexistia urgência. Nesses casos, portanto, inevitavelmente será chamado para solucionar a controvérsia o Poder Judiciário, o que leva ao questionamento se não seria sempre mais seguro ao credor requerer, de imediato, a liminar prevista no artigo 461, § 3º do CPC, obtendo a execução direta pelo devedor.

Art. 251, parágrafo único- Aqui valem os mesmos comentários expendidos na análise do art. 249, parágrafo único, retro. O presente dispositivo, entretanto, trata das obrigações de não fazer, e por essa razão não dispôs que o credor será ressarcido após a implementação extrajudicial da obrigação. Isso porque o desfazimento da obrigação de não-fazer nem sempre trará prejuízos, justificando-se o ressarcimento somente quando a reposição ao estado anterior acarretar gastos.

Art. 252, parágrafos 2º, 3º e 4º- No parágrafo segundo do artigo 252 está expressamente previsto que a opção de escolha nas obrigações alternativas poderá ser exercida em cada período, quando as prestações forem, evidentemente, periódicas. O dispositivo restou aprimorado, já que na redação anterior (art. 884, § 2º ) concedia-se a mesma prerrogativa exclusivamente nos casos de prestações anuais.

Na escolha das prestações sucessivas, o denominado jus variandi caberá apenas ao devedor. Logo, se a escolha couber ao credor ele não poderá dela valer-se em cada período. Já no caso da opção permitida ao devedor, a escolha que ele fez num período não o abriga a mantê-la no próximo. [3]

A maior novidade, contudo, está nos parágrafos 3º e 4º.

- § 3º: Nos termos da nova redação, em havendo obrigação alternativa com pluralidade de optantes, não existindo unanimidade entre eles, deverá ser acionado o Poder Judiciário, de forma que o Juiz prescreverá um prazo para a deliberação dos optantes. Em homenagem ao princípio processual da celeridade, combinado com o princípio civilista da operabilidade, caberá ao Juiz assinar o prazo logo no recebimento da inicial, no despacho inaugural. Não havendo especificação do prazo pelo Magistrado, mas apenas a ordem de deliberação, este será de cinco dias (Art. 185 do CPC). Transcorrido o prazo, os autos deverão retornar conclusos ao Julgador, que decidirá sobre qual a obrigação prevalecente. Alguns autores, como Sílvio de SAlvo Venosa, criticam a solução legal, opinando que deveria prevalecer a vontade da maioria, cosntatada pelo valor das respectivas quotas-partes. [4]

- § 4º: Muito importante, outrossim, a nova redação consubstanciada no parágrafo 4º. Segundo dispõe, quando o título da obrigação eleger um terceiro para exercer a opção, e este não quiser ou não puder fazê-lo, não havendo acordo unânime entre as partes, deverá o Juiz decidir. No regime anterior, a atuação do terceiro seria condição essencial ao ato jurídico, e a sua impossibilidade de atuar implicaria nulidade da obrigação. "Nesse aspecto, andou muito bem o Novo Código, desvinculando a questão da atuação do terceiro da própria validade da obrigação alternativa". [5] O parágrafo sob foco, in fine, determina que a escolha do Juiz só poderá prevalecer "se não houver acordo entre as partes". Portanto, na impossibilidade de escolha pelo terceiro, conveniente que primeiro seja observado o procedimento positivado no parágrafo 3º, para somente depois o Juiz proceder à escolha.

Art. 258- O artigo 258 efetua tarefa de toda desaconselhável pela melhor doutrina, que é a de positivar conceituações. O conceito de obrigação indivisível presente no novo artigo não emprega redação precisa, porquanto não elabora clara diferenciação entre indivisibilidade física, legal, convencional e judicial.

Art. 266- A solidariedade, para o Direito das Obrigações, não pressupõe condições e estipulações formatadas e padronizadas a todos os co-obrigados. "Isto é assim porque a solidariedade diz respeito à prestação e não à maneira pela qual é devida". [6] Nesse sentido é que o artigo 266 do NCC permite seja determinado o pagamento num local, para certo devedor, e noutro sítio, para outro co-obrigado, sem prejuízo da solidariedade.

Art. 269- O credor não é obrigado a receber a prestação devida de forma diversa da contratada, de sorte que não é permitido, v.g., pagar em fração aquilo que foi convencionado em sua integralidade. Apesar disso, o artigo 269 permite que a quitação parcial realizada a um dos credores solidários reduza a dívida até o montante do que foi pago, inovando substancialmente o direito anterior.

Evidentemente, o presente dispositivo não pode ser lido ao desamparo do artigo 267 do NCC. Assim, a liberação somente ocorrerá caso quaisquer dos credores solidários concedam a quitação. Esse detalhe é de suma relevância, afinal a intenção do artigo 269 do NCC não foi a de erigir um direito subjetivo do devedor ao pagamento parcial. Não há como defender, e.g., a ação de consignação em pagamento ajuizada pelo devedor solidário que pretende quitar somente parcela do devido.

Art. 273- Pelo disposto no artigo 911 do Código Civil de 1916, ao devedor não é permitido opor em face do credor exceções pessoais referentes a outros co-devedores. Pela redação do artigo 273, a mesma previsão é repetida quando abordada na solidariedade ativa. Está, pois, em consonância com o artigo 281 do NCC. Estabeleceu-se, como regra geral, que se a defesa do devedor diz respeito a apenas um dos credores solidários, só contra esse poderá o vício ser apontado, não atingindo o vínculo firmado com os demais credores.

O artigo 273 ganhará nova redação com o Projeto de Alteração do Novo Código Civil do Dep. Ricardo Fiúza: "Art. 273. A um dos credores solidários não pode o devedor opor as defesas pessoais oponíveis aos outros ".(NR)

Preferiu-se a palavra defesas, no lugar de exceções, por questões de técnica.

Art. 274- O presente artigo foi copiado do Código de Obrigações organizado pelo Professor Caio Mário da Silva Pereira (art. 217), que tinha como intenção esclarecer a regra geral de que o comportamento de um só co-credor não poderia prejudicar os demais.

Deduzido em juízo qualquer litígio que verse sobre exceções pessoais entre o devedor e um dos credores solidários, o julgamento que a este último prejudique não interferirá no direito dos demais co-credores.

O julgamento favorável ao credor, contudo, a todos os outros credores aproveitará. Para que o julgamento favorável ao credor litigante se estenda aos demais, não há que se falar em litisconsórcio unitário ou necessário, vez que o próprio direito material dispôs no sentido contrário. E, como cediço, a norma processual, por ser instrumental, não pode criar óbice ao direito material concedido pela Lei. [7]

Todavia, a extensão do julgamento favorável não valerá quando a decisão transitada em julgado tiver sido dada com supedâneo em exceção oponível somente entre as partes litigantes, oportunidade na qual vigorarão as regras dos artigos 273 e 281 do NCC.

Art. 275, caput- Aqui o pagamento parcial é tratado da mesma forma como abordado no artigo 269 do NCC, valendo as mesmas advertências feitas nos comentários respectivos, até porque a primeira parte do artigo 275 deixa claro que ao credor fica a opção de exigir a prestação no todo ou em parte.

Art. 275, parágrafo único- No parágrafo único não houve mudança com relação ao regime anterior. De qualquer modo, elogiável a redação nova que prima pela técnica. O artigo 275, parágrafo único vem confirmar a regra de que a extensão do julgamento favorável prevista no artigo 274 do NCC dispensa qualquer espécie de litisconsórcio necessário ou unitário.

Art. 286- Apesar de ainda ‘nascituro’, este novo dispositivo já será objeto de alteração pela reforma encetada pelo Dep. Ricardo Fiúza, in verbis:

"Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, inclusive o compensável com dívidas fiscais e parafiscais (art. 374), se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação". (NR)

O artigo 286 do NCC traz novo regramento à cláusula proibitiva de cessão. Segundo o regime recente, a disposição que proíbe a cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé se não constar do instrumento da obrigação.

Cumpre esclarecer, pois, a qual ‘instrumento da obrigação’ o artigo faz referência: aquele firmado entre o devedor e o credor ou aquele firmado entre o cedente e o cessionário? Ora, não há como cogitar da presença da cláusula proibitiva da cessão presente no instrumento firmado entre cedente e cessionário. Como o cedente transmitiria qualquer crédito ao cessionário estipulando no instrumento do pacto que a cessão seria vedada? Então, vê-se que o artigo refere-se à cláusula proibitiva da cessão presente no pacto firmado entre o devedor-cedido e o credor-cedente (pacto de non cedendo).

O cessionário, portanto, não seria atingido pela vedação à cessão se no instrumento firmado entre devedor e cedente não constasse expressamente a proibição. Por essa razão o cedente é obrigado a fornecer o instrumento que originou a obrigação cedida, com todos os outros instrumentos anexos de aditamento ou alteração, que deverão ser analisados quando da cessão de crédito. O intuito da norma, por óbvio, é o de primar pela boa-fé objetiva, definida com base em elementos exteriores, em contraponto à boa-fé subjetiva, que marcou o regime civilista antigo.

Note-se que a redação em análise, ao empregar a palavra ‘cláusula’ pode gerar, a princípio, certa perplexidade. Afinal, o artigo sob comento preceitua que "a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação". O instrumento da obrigação referido, como visto, é aquele firmado entre o devedor e o cedente. Assim sendo, aos olhos daqueles que confundem cláusula com estipulação escrita, a redação em estudo poderia parecer conflitante, já que, nessa visão limitada, toda cláusula, por consistir em estipulação escrita, deveria inevitavelmente estar presente no instrumento da obrigação. O ponto nodal para a questão reside na compreensão da existência de cláusulas não escritas. De fato, a palavra cláusula foi aqui empregada em seu sentido amplo, na sua acepção jurídica própria. A distinção entre contrato e instrumento contratual, aliás, é lição das mais básicas, de modo que a apontada contradição é apenas aparente.

Dessa forma, somente em duas ocasiões a proibição da cessão do crédito poderia ser inoponível ao cessionário, que despontaria como terceiro contratante de boa-fé: a) quando o cedente apresentasse o instrumento da obrigação cedida, dele suprimindo a cláusula escrita de proibição da cessão, oportunidade na qual este -o cedente- agiria com patente má-fé, ao passo em que o cessionário, agindo de boa-fé, teria resguardada a confiança que depositou; b) quando a cláusula de proibição de cessão do crédito consistisse em cláusula não escrita, como, por exemplo, quando firmada verbalmente. Nessa última circunstância estaria caracterizada, da mesma forma, a boa-fé do cessionário.

Observe-se que o cedente, no primeiro caso, ao agir com má-fé, responderá por perdas e danos perante o cessionário e o devedor-cedido. Importante salientar também que, ainda no primeiro caso, não seria permitido ao cedente omitir-se na apresentação de qualquer instrumento de aditamento contratual firmado entre ele e o devedor, em que constasse a cláusula de proibição de cessão, já que tais instrumentos integram o contrato original.

Não pode passar desapercebida, por fim, a oportunidade perdida pelo legislador em alterar os contornos da cessão de crédito no sentido de tutelar também o devedor e manter o sinalagma funcional do contrato com ele firmado. Observe-se que se apresenta inviável a cessão do crédito quando não permitirem: a) a natureza da obrigação; b) a lei; c) a convenção com o devedor. Essas três hipóteses, contudo, não asseguram proteção integral ao devedor, que muitas vezes será obrigado a firmar um contrato de adesão no qual a possibilidade de acordar com o credor será inexistente. Ainda, a vedação da cessão do crédito de acordo com a natureza da obrigação não abrangeria, a princípio, uma ampla gama de ‘contratos de massa’ firmados no mercado que, conquanto despersonalizados, configuram o que a moderna doutrina vem denominando de "contratos cativos de longa duração" [8], nos quais o contratante leva em conta o renome e solidez do grupo econômico com o qual contrata. Tenha-se, por exemplo, contratos de conta-corrente firmados com uma conhecida instituição financeira. Caso o Banco decida transferir sua carteira de clientes para outra instituição financeira, por via da cessão de crédito, quais opções restarão aos correntistas?

De se ressaltar que no campo do Direito do Consumidor a questão vem sendo debatida de igual forma, levando CLÁUDIA LIMA MARQUES a tecer as seguintes considerações:

"A cessão de direitos ou da posição contratual por parte do fornecedor, muitas vezes utilizada como técnica para poder modificar as cláusulas contratuais iniciais pode abalar o sinalagma funcional e afetar a realização das expectativas legítimas dos consumidores. Logo, deve ser especialmente cuidada, controlada e mesmo evitada, como ensinam os mestres europeus." [9]

Caberá à jurisprudência, no intuito de contornar situações tais, interpretar os casos de vedação da cessão de crédito em consonância com os novos princípios norteadores do Direito Civil, principalmente no que tange aos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato. Assim, crescerá em importância a nova leitura que será dada à expressão "se a isso não se opuser a natureza da obrigação".

A boa-fé objetiva é princípio hoje inequivocamente adotado no Novo Código Civil (art. 422) [10]. Como princípio geral e regente, trará consideráveis alterações na hermenêutica contratual, bem como alterará sobremaneira a dinâmica do Direito das Obrigações, tal como se vem observando no Direito do Consumidor. [11] Como já visto, o princípio da boa-fé objetiva foi invocado também no capítulo que trata da cessão de crédito, logo no artigo 286. Dessa forma, ao cessionário, resguardado pela boa-fé objetiva, deverão restar esclarecidas todas as vantagens e desvantagens do crédito cedido, cabendo sempre a anulação quando essa conduta cogente não se observar. Neste particular, portanto, não há como concordar com o Prof. CÉSAR FIÚZA, para quem seria possível anular a cessão somente em caso de omissões dolosas. [12] Aqui não há que se perquirir dolo ou má-fé, bastando a omissão. Tenha-se em conta que a má-fé é requisito eleito para fins de responsabilização do cedente somente em casos de cessões a título gratuito (art. 295, última parte).

No que tange à possibilidade de cessão das dívidas fiscais, pretendida pela reforma do Dep. Ricardo Fiúza, será a mesma analisada nos comentários ao artigo 374.

Art. 292- A condensada redação do artigo 286 deve ser desdobrada para apreciação detida.

Na primeira parte do dispositivo, está prescrito que se o devedor pagar ao credor originário (cedente), antes da notificação da cessão, o pagamento será válido. Nesse caso, o cessionário nenhuma ação terá contra o devedor não notificado, mas sim contra o cedente. [13]A contrario sensu, se o devedor, mesmo após a notificação da cessão, pagar ao cedente, deverá repetir o pagamento ao cessionário.

Em seguida, o art. 292 diz que se existirem mais de uma cessão, sendo todas notificadas, o devedor ficará liberado somente se pagar para o cessionário que lhe apresentar, com o título da cessão, também o da obrigação cedida.

O artigo silencia, entretanto, nos casos em que existirem mais de uma cessão do crédito, sendo que a notificação foi realizada em apenas uma delas. Nesse particular, tudo indica que prevalecerá a notificação, a uma porque a primeira parte do dispositivo em análise esclarece que o devedor ficará exonerado somente se pagar antes da notificação, a duas porque a última parte do artigo ressalta novamente a ‘prioridade da notificação’. Ou seja, está claro que a notificação configura o critério seguro eleito pelo legislador. Destarte, mesmo que algum cessionário apresente ao devedor o título da cessão e o título da obrigação cedida, se não houver a notificação o pagamento não será autorizado.

Finalmente, se o crédito constar em escritura pública, prevalecerá sempre a prioridade da última notificação, não comportando aqui exceções.

Art. 293-

"A notificação do devedor é requisito de eficácia do ato, quando a ele devedor. Mas não impede o cessionário de investir em todos os direitos relativos ao crédito cedido, podendo não só praticar os atos conservatórios, mas todos os demais atos inerentes ao domínio, inclusive ceder o crédito a outrem. A cessão do crédito produz efeitos imediatamente nas relações entre cedente e cessionário. Assim, todas as prerrogativas que eram do cedente passam de logo ao cessionário. Apenas a eficácia do ato frente ao devedor é que fica dependente da notificação" [14]

A marca dessa nova prerrogativa legal é, sem sombra de dúvidas, o princípio da operabilidade que, no Novo Código Civil, segundo MIGUEL REALE, teria a função de não só de estabelecer soluções normativas de modo a facilitar a interpretação e aplicação do direito, mas também de realizá-lo em sua concretude. [15]

Art. 294- Na letra fria do revogado artigo 1.072 do Código Civil de 1916, o devedor poderia opor tanto em face do cedente quanto do cessionário as exceções pessoalíssimas referentes a cada um, mas no momento em que tomasse conhecimento da cessão. No regime anterior, portanto, só caberia a oposição se efetuada oportunamente contra o cedente ou contra o cessionário.

O novo artigo 294 desmembrou propositadamente a redação antiga em duas partes que merecem análise em separado. Em sua primeira parte, quando determina que "o devedor pode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem", nada mais fez do que reproduzir a essência da redação anterior (art. 1.072), confirmando de forma mais técnica a regra de que a cessão de crédito ocasiona alteração meramente subjetiva, e não objetiva, transferindo o crédito com as mesmas características que possuía à época da cessão.

Somente na segunda parte da nova redação é que o requisito temporal foi destacado, valendo apenas em face do cedente. Ou seja, se no Código Civil de 1916 estava claro que a oposição deveria ser efetuada pelo devedor oportunamente contra o cedente ou o cessionário, no momento em que tivesse conhecimento da cessão, no Novo Código Civil a oposição oportuna é requisito que deverá ser observado somente contra o cedente, e nunca contra o cessionário.

Art. 299- O NCC inova ao positivar a assunção de débito, mais conhecida na doutrina como cessão do débito. Buscou-se introduzir no Código a disciplina a fim de expurgar da doutrina e da jurisprudência qualquer dúvida a respeito de sua admissibilidade no direito pátrio. [16] Vale destacar que autores como Orlando Gomes, Caio Mário, Pontes de Miranda, Orozimbo Nonato, Carvalho de Mendinça, Antunes Varela e Arnold Wald já admitiam o instituto. [17]

A doutrina ortodoxa não admitia ser possível a substituição, a título singular, do devedor, sem que se extinguisse o vínculo obrigacional. O art. 299 do NCC, baseado no art. 167 do Projeto de Código de Obrigações do professor Caio Mário da Silva Pereira, enfim, afasta completamente a controvérsia.

Cabe conceituar a cessão do débito como um negócio jurídico bilateral, pelo qual o devedor, com a anuência expressa do credor, transfere a um terceiro os seus encargos obrigacionais, de modo que este assume sua posição na relação obrigacional, substituindo-o. [18]

A doutrina chama a atenção para duas formas de cessão de débito. A primeira seria na forma de expromissão, onde o credor contrataria diretamente com o terceiro e a segunda seria na forma de delegação, quando o devedor é quem contrataria diretamente com o terceiro. [19]

Nesse sentido, MÁRIO LUIZ DELGADO RÉGIS propôs nova redação ao artigo 299, que foi incluída no projeto de reforma do Dep. Ricardo Fiúza, conforme segue:

"Art. 299. É facultado a terceiro assumir a obrigação do devedor, podendo a assunção verificar-se:

I. Por contrato com o credor, independentemente do assentimento do devedor;

II. Por contrato com o devedor, com o consentimento expresso do credor.

§ 1º Em qualquer das hipóteses referidas neste artigo, a assunção só exonera o devedor primitivo se houver declaração expressa do credor. Do contrário, o novo devedor responderá solidariamente com o antigo ;

§ 2º Mesmo havendo declaração expressa do credor, tem-se como insubsistente a exoneração do primitivo devedor sempre que o novo devedor, ao tempo da assunção, era insolvente e o credor o ignorava, salvo previsão em contrário no instrumento contratual ;

§ 3º Qualquer das partes pode assinar prazo ao credor para que consinta na assunção da dívida, interpretando-se o seu silêncio como recusa;

§ 4º Enquanto não for ratificado pelo credor, podem as partes livremente distratar o contrato a que se refere o inciso II deste artigo". (NR)

No inciso primeiro da redação proposta, está caracterizada a assunção de dívida por expromissão (expromissio), enquanto que no inciso segundo está marcado a modalidade por delegação (delegatio).

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O parágrafo único do artigo 299 do NCC, tal como originalmente aprovado, foi praticamente copiado do Código Civil alemão, e obteve críticas por parte de CAIO MÁRIO,

"pois se a assunção de dívida não for concertada, de comum acordo com o credor, de nada vale a sua interpelação para que manifeste a sua anuência. Se ele não a deu, na fase dos entendimentos, ou se o devedor não a obteve, não será a interpelação que mudará seus propósitos". [20]

Assim, consoante a nova redação do aludido projeto, no artigo 299 serão inseridos o inciso II e seu parágrafo 1º, mais incisivos no sentido de exigirem a anuência do credor.

O parágrafo 3º, por sua vez, repetirá a redação do parágrafo único atual.

Já o proposto parágrafo 2º repete a hipótese presente no atual caput do artigo 299, in fine. Cuida-se de curiosa hipótese de repristinação, na qual a obrigação originalmente firmada será restaurada caso seja o novo devedor insolvente, ao momento da assunção da dívida. A insolvência do novo devedor, nesse caso, deverá ser provada em juízo, por intermédio de ação que buscará provimento constitutivo, qual seja, a restauração da relação contratual anterior. Deverão compor o pólo da relação processual, em função do litisconsórcio unitário, tanto o novo devedor quanto o devedor da relação original desconstituída pela assunção do débito.

Na nova redação do parágrafo 2º foi aberta ressalva até então inexistente no Novo Código Civil, ao determinar-se que a hipótese de repristinação analisada anteriormente poderá ser contratualmente afastada.

A redação do parágrafo 4º inserido no projeto requer exame cuidadoso. Segundo dispõe, caso o credor tenha optado por não anuir com a cessão do crédito, e o distrato entre o devedor e o terceiro ainda não tenha sido obtido, o pacto firmado por estes dois últimos acabará perdendo o objeto. Trata-se, portanto, de típica obrigação condicional, na qual o contrato entre o devedor e o terceiro existe, mas não produz nenhum efeito, enquanto não acontecer o evento futuro e incerto previsto como condicionante, qual seja, a anuência do credor. Cuida-se de um negócio válido, mas sem eficácia.

Perceba-se que o termo distrato neste dispositivo foi empregado equivocadamente. Isso porque o distrato, na sua acepção jurídica, requer encontro de vontades no sentido de desfazer o vínculo criado (resilição bilateral) [21]. Melhor teria andado o legislador se tivesse substituído o termo ‘livremente distratar’ por ‘resilir unilateralmente’. [22] De qualquer forma, deve-se entender que a expressão ‘livremente distratar’, utilizada no parágrafo 4º, foi empregada no intuito de permitir que tanto o devedor quanto o terceiro desistissem unilateralmente da cessão do débito, até a anuência do credor, sem que isso lhes acarretasse qualquer espécie de obrigação.

Art. 300- A redação dada ao artigo 300 e até então vigente é confusa, e a nova roupagem dada pelo projeto de reforma do Dep. Ricardo Fiúza, conforme se verá adiante, parece não ter sanado o vício de técnica.

Observe-se que na assunção do débito, pautando-se pela pureza científica, ocorre a transmissão da dívida em sua integridade, ou seja, sem alterações na sua estrutura. Por isso é que se pode dizer que há mudança apenas subjetiva, e não objetiva, sob pena de se confundir este instituto jurídico com outros (e.g., com a novação). CÉSAR FIÚZA, nesse sentido, exemplifica:

"João toma empréstimo junto a Manoel, apresentando um imóvel em garantia. Teremos, portanto, empréstimo garantido por hipoteca. Se o pai de João propuser ao credor, Manoel, que libere João, assumindo ele, o pai, seu lugar, sendo a quitação, verdadeiramente, liberatória, tratar-se-á de novação, ficando extinta a obrigação antiga. O novo devedor passa a ser o pai de João. O importante é frisar que a hipoteca se extingue com a antiga obrigação. Se a hipoteca não se extinguisse, não teríamos novação, mas assunção de dívida." [23]

Assim sendo, na cessão de débito não haveria como transmitir a dívida desvencilhada de suas garantias. Apesar disso, o artigo 300 traçou peculiar hipótese de transmissão da dívida sem suas garantias especiais, nos casos em que inexistir assentimento expresso do devedor primitivo.

Aliás, no que tange à expressão "salvo assentimento expresso do credor primitivo", MARIA HELENA DINIZ parece não apresentar a melhor interpretação. Segundo a renomada autora: "A partir da cessão do débito somente se houver anuência expressa do devedor originário ter-se-á a extinção das garantias especiais (penhor, hipoteca etc.) por ele dadas ao credor." [24]

Contudo, está claro na redação do artigo 300 do NCC que o assentimento expresso do devedor opera no sentido contrário, para não extinguir as garantias especiais por ele originalmente dadas ao credor. No dispositivo em foco, a expressão ‘presumem-se extintas’ revela que está positivada uma extinção que decorre ex lege. [25] Em outras palavras, quando da cessão do débito, caso exista interesse pela manutenção das garantias especiais concedidas pelo devedor primitivo, deverá o mesmo ser procurado, para que consinta com a não extinção.

Vale questionar, igualmente, o que se deve entender por ‘garantias especiais’. MÁRIO LUIZ DELGADO RÉGIS defende que se cuidam daquelas"(...) garantias que não são da essência da dívida e que foram prestadas em atenção à pessoa do devedor, como, por exemplo, as garantias dadas por terceiros (fiança, aval, hipoteca de terceiro)."

Ao que completa o mesmo autor: "Já as garantias reais prestadas pelo próprio devedor originário não são atingidas pela assunção. Vale dizer, continuam válidas, a não ser que o credor abra mão delas expressamente". [26]

Contudo, outros autores como MARIA HELENA DINIZ não fazem a mesma distinção, generalizando o conceito de garantias especiais, para nelas incluir qualquer espécie de penhor ou hipoteca, como visto supra. De fato, não cabe ao intérprete distinguir onde a lei não distingue, e a diferenciação apregoada por MÁRIO LUIZ DELGADO RÉGIS, assim, parece destituída de amparo legal.

A nova redação proposta ao artigo 300, ao que tudo indica, tenta restringir a hipótese de extinção das garantias especiais:

"Art. 300. Com a assunção da dívida transmitem-se ao novo devedor, todas as garantias e acessórios do débito, com exceção das garantias especiais originariamente dadas ao credor pelo primitivo devedor e inseparáveis da pessoa deste.

Parágrafo Único. As garantias do crédito que tiverem sido prestadas por terceiro só subsistirão com o assentimento deste ". (NR)

A primeira vista já se percebe que foram suprimidas as expressões "salvo assentimento expresso do devedor primitivo", bem como "consideram-se extintas", eliminando a extinção legal das garantias especiais e, por conseguinte, dispensando o assentimento do devedor para mantê-las.

Contudo, restou excepcionada a assunção das "garantias especiais originariamente dadas ao credor pelo primitivo devedor e inseparáveis da pessoa deste."

Mesmo com a nova redação fica ainda a dúvida sobre o conceito de ‘garantias especiais’, na ótica da cessão de débito. Sem embargo dessa obscuridade, o novo artigo 300 restringe a hipótese de extinção das garantias, ao acrescentar a expressão "e inseparáveis da pessoa deste", que surge na qualidade de requisito. Quer dizer, não basta à garantia ser especial, mas também deve ser inseparável da pessoa do devedor primitivo, o que demandará análise casuística. Veja-se, por exemplo, o caso da hipoteca: é uma garantia inseparável da pessoa do devedor primitivo? Salvo melhor juízo, a resposta é negativa, porquanto a hipoteca grava um bem. Já a fiança, por outro lado, só poderá integrar a cessão de débito se houver o assentimento do terceiro que prestou a garantia, nos termos do parágrafo único do novo texto. Neste particular será aplicada a regra da extinção da garantia ope legis, extinção essa que só valerá quando a mesma for prestada por terceiros, salvo assentimento pugnando pela sua manutenção.

Ressalte-se, por fim, que mesmo na nova redação conferida ao artigo 300, traçando como regra geral a não transmissão das garantias especiais inseparáveis do devedor (caput) e a não transmissão de quaisquer garantias prestadas por terceiros (parágrafo único), a cessão de débito adquiriu contornos que destoam dos moldes clássicos. Afinal, já não se pode mais afirmar, em sede de direito positivo, que a cessão de débito acarreta somente alteração subjetiva na obrigação, mas também objetiva.

Art. 301- O artigo 301 do NCC apresenta outra hipótese de repristinação. Anulada a assunção da dívida, o débito será restaurado ao estado anterior, para o devedor originário, com todas as suas garantias. A regra só não terá cabida quando se tratar de garantias prestadas por terceiros, as quais não serão restabelecidas. Aqui, tem-se por fito garantir a observância do princípio da boa-fé objetiva. Renascerão as garantias dadas por terceiros, entretanto, se estes conheciam o vício que deu causa à anulação.

Art. 302- Atente-se para o fato de que o artigo 302 refere-se apenas às defesas pessoais que competiam ao devedor primitivo. É vedado ao novo devedor invocar, pois, o direito de compensação que possuía o devedor primevo em face do credor [27], a incapacidade, o vício de consentimento etc. [28] Outras exceções anteriores que não sejam pessoais, entretanto, poderão ser sempre opostas em face do credor.

Art. 303- A regra inserida no artigo 303 deve ser lida com bastante cuidado. Não se entenda no preceito ali insculpido a possibilidade do adquirente de imóvel hipotecado poder ou não tomar ao seu cargo o pagamento do crédito garantido, como se lhe fosse autorizado adquirir um imóvel com ou sem o gravame devidamente registrado. Ora, o que importa para fins de hipoteca é o bem gravado com esse ônus real, sempre garantido pelo direito de seqüela. É dizer, a garantia do credor reside in totum no bem, independentemente da vontade do novo adquirente.

O que se pretendeu por via desse dispositivo, portanto, foi excepcionar a regra de que na cessão de débito faz-se necessária a autorização expressa do credor. A razão dessa exceção à regra está em que o valor da garantia da hipoteca, muitas das vezes, é superior ao débito cedido, de modo que não faz sentido insistir na autorização expressa do credor, visto que seu interesse não sofre ameaça alguma. Assim é que elucida MÁRIO LUIZ DELGADO RÉGIS:

"De fato, em hipóteses tais, a segurança do credor reside muito mais na garantia em si do que na pessoa do devedor. Se a assunção do débito pelo terceiro adquirente do imóvel possibilita a permanência da garantia real, pouco ou nenhuma diferença fará ao credor se o devedor será A ou B. Daí a mitigação da exigência de que o consentimento do credor seja expresso, sobretudo nessas hipóteses em que a garantia seja superior ao débito." [29]

A nova previsão legal será de grande utilidade, sobretudo na solução das contendas em que se questiona a possibilidade de cessão de débitos em contratos do Sistema Financeiro da Habitação, sem a anuência expressa do financiador. Pelo novo regime, está claro que nesses contratos a autorização expressa do credor não se erige como requisito imprescindível. Muito pelo contrário, pelos motivos já expostos, não há porque defender a necessidade dessa formalidade. Lembre-se que foi justamente o repúdio da doutrina e da jurisprudência, contrários à autorização, que causaram a elaboração do artigo em análise (ocasio legis). SÍLVIO RODRIGUES, por exemplo, já defendia que deveria "a lei permitir a cessão por mero acordo entre devedor e cessionário, pois a oposição do credor não encontra outro esteio que não seu capricho, visto que seu interesse não sofre ameaça por força da excelência da garantia." [30]

E não se objete que no regime do Novo Código Civil será o adquirente de imóvel hipotecado obrigado a notificar o credor hipotecário para que consinta na cessão de débitos. Além do artigo 303 empregar o verbo "pode", também dispõe que nem sempre a notificação será necessária, quando menciona "se o credor, notificado (...)". Então, conclui-se que a notificação consiste apenas numa prerrogativa concedida ao adquirente, para forçar a manifestação do credor hipotecário. Assim, quando utilizada, caso o credor não se oponha no prazo de trinta dias, haverá uma presunção iuris et de iure de que aceitou, numa inequívoca hipótese de manifestação tácita.

Em suma, a autorização do credor hipotecário é necessária. Caso não fosse, o artigo 303, segunda parte, seria dispensável. Entretanto, o presente dispositivo admite que a manifestação seja dada tacitamente, acolhendo aquelas decisões judiciais que entendem pela aceitação tácita do credor hipotecário, mesmo quando obtidas fora da hipótese da notificação que, repita-se, não é obrigatória.

Art. 304, parágrafo único- A inovação está no parágrafo único, que fez constar expressamente a possibilidade do devedor se opor à realização do pagamento pelo terceiro não interessado.

Art. 306- Pelo revogado artigo 932 do Código Civil de 1916, o devedor beneficiado pelo pagamento de terceiro não interessado estava obrigado a reembolsá-lo, ao menos até a importância em que o pagamento lhe foi útil.

Pela regra atual, o devedor não será obrigado a reembolsar, independentemente do benefício que tenha experimentado, se o pagamento foi efetuado sem o seu consentimento ou com a sua oposição, mas somente se o mesmo possuía meios legais para ilidir a ação do credor. "No caso, a referência é aos meios de defesa do devedor junto ao credor, ilidindo a ação deste, na cobrança de seu crédito". [31]

Importante esclarecer, portanto, o que se entende por "meios para ilidir a ação". O devedor possui meios para ilidir a ação do credor quando está amparado por qualquer razão legal para não proceder ao pagamento. Qualquer fundamento jurídico que torne inexigível a dívida enquadra-se na hipótese. Tenha-se, por exemplo, a cobrança de dívidas anuláveis em virtude de defesas pessoais do devedor, só oponíveis ao primitivo credor.

A razão da opção legal é óbvia. Não pode o pagamento efetuado por terceiro onerar a posição do devedor perante aquela relação que mantinha com o credor. De fato, as peculiaridades daquela relação original, mormente no que diz respeito às vantagens do devedor, não podem ser extintas pelo pagamento do terceiro.

Apresentando uma redação mais clara ao dispositivo, o projeto de reforma do Dep. Ricardo Fiúza assim dispõe:

"Art. 306. O pagamento feito por terceiro, com desconhecimento ou oposição do devedor, não obriga a reembolsar aquele que pagou, se o devedor tinha meios para ilidir a ação do credor na cobrança do débito". (NR)

Justificando a alteração, o Dep. Ricardo Fiúza aduz as seguintes considerações:

"A redação atual do art. 306 deixa a desejar. Tem-se a impressão de estar se referindo à ação do terceiro, mas isso não seria possível, mormente se o devedor desconhecesse o pagamento por ele realizado. No caso a referência é aos meios de defesa do devedor junto ao credor, ilidindo a ação deste, na cobrança de seu crédito. Daí a razão da modificação proposta."

Art. 316- Nos contratos que se pautam por pagamento de prestações sucessivas, é lícito convencionar-se o aumento progressivo das mesmas.

Importante determinar precisamente o que se entende por aumento progressivo, até para que não seja confundido com a figura do anatocismo ou com outros institutos jurídicos aparentemente semelhantes.

MARIA HELENA DINIZ opina que se refere à cláusula de atualização de valores monetários, estipulada para fins de contornar a desvalorização da moeda. [32]MÁRIO LUIZ DELGADO RÉGIS parece concordar com a autora, defendendo que o dispositivo trata das alcunhadas ‘cláusulas de escala móvel’, empregadas para a atualização monetária das dívidas em dinheiro e daquelas de valor. [33]

Realmente, impossível enxergar aqui a figura do anatocismo. Isso porque o Novo Código Civil, quando quis dele tratar, fê-lo expressamente. Basta conferir o seu artigo 591 que, ao dispor sobre o mútuo, determinou que a capitalização seria apenas anual, in verbis:

"Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual."

As novas determinações do NCC obviamente não poderão ser lidas ao desamparo da Lei 10.192/01, norma especial que trata da correção monetária e do reajuste por índices de preços gerais. Como lei especial que é, suas determinações deverão ser aplicadas em detrimento de qualquer lei geral. Afinal, lex posterior generalis non derrogat priori speciali. Assim é que, em seu artigo 2º, caput e parágrafo primeiro, está disposto:

"Art. 2º É admitida estipulação de correção monetária ou de reajuste por índices de preços gerais, setoriais ou que reflitam a variação dos custos de produção ou dos insumos utilizados nos contratos de prazo de duração igual ou superior a um ano.

§ 1º É nula de pleno direito qualquer estipulação de reajuste ou correção monetária de periodicidade inferior a um ano."

Por outro lado, o artigo 15 do mesmo Diploma Legal assim enuncia:

"Art. 15. Permanecem em vigor as disposições legais relativas a correção monetária de débitos trabalhistas, de débitos resultantes de decisão judicial, de débitos relativos a ressarcimento em virtude de inadimplemento de obrigações contratuais e do passivo de empresas e instituições sob os regimes de concordata, falência, intervenção e liquidação extrajudicial."

Destarte, pela redação do artigo 15, há perfeita simbiose entre a Lei 10.192/01 e o Novo Código Civil. Somente em dispositivos conflitantes é que deverá prevalecer esta Lei especial.

Art. 317- Na esteira do princípio da socialidade [34], fundamento de significativas positivações como, v.g., a função social dos contratos (art. 421), o artigo 317 desponta como marco na alteração do direito das obrigações. Nele está acolhido, expressamente, a teoria da imprevisão, nos moldes da cláusula rebus sic stantibus do direito romano. Importante atentar para o fato de que o presente artigo foi inserido na seção que versa sobre o objeto do pagamento, patenteando sua característica de cláusula geral, a influenciar todo o direito privado.

Não seja confundida a hipótese, entretanto, com a doutrina da quebra da base objetiva do contrato. A hipótese do artigo 317 é, sem sombra de dúvidas, condicionada aos requisitos da teoria da imprevisão, diferentemente da revisão pela alteração no sinalagma funcional do contrato presente no artigo 6º, V do Código de Defesa do Consumidor. Neste sentido, pondera CLÁUDIA LIMA MARQUES:

"A norma do artigo 6º do CDC avança ao não exigir que o fato superveniente seja imprevisível ou irresistível, apenas exige a quebra de base objetiva do negócio, a quebra de seu equilíbrio intrínseco, a destruição da relação de equivalência entre prestações, ao desaparecimento do fim essencial do contrato. (...) Nesse sentido, a conclusão n. 3 o II Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor- Contratos no ano 2.000, com o seguinte texto: "para fins de aplicação do art. 6º, V do CDC não são exigíveis os requisitos da imprevisibilidade e excepcionalidade, bastando a mera verificação da onerosidade excessiva". [35]

"mencionar simplesmente que a Teoria da Imprevisão teria sido aceita pelo CDC pode ser uma interpretação do art. 6º, inciso V, prejudicial ao próprio consumidor, pois dele pode ser exigida a referida imprevisão e extrinsibilidade do ocorrido, fatos não mencionados no referido artigo. De outro lado, enquanto gênero, as teorias sobre a imprevisão sempre visaram prioritariamente a liberação do contratante superveniente debilitado, sua desobrigação, retirando assim do consumidor – ou pelo menos diminuindo a intensidade de- seu novo direito a manter o vínculo e ver recriado o equilíbrio contratual original por atuação modificadora do juiz." [36]

Vale transcrever, por oportuno, os precisos esclarecimentos de RIZZATTO, que acompanha o mesmo entendimento esposado pela consumerista mencionada supra:

"Entenda-se, então, claramente o sentido da revisão trazido pela lei consumerista.

Não se trata da cláusula rebus sic stantibus, mas, sim, de revisão pura, decorrente de fatos posteriores ao pacto, independentemente de ter havido ou não previsão ou possibilidade de previsão dos acontecimentos.

Explique-se bem. A teoria da imprevisão prevista na regra do rebus sic stantibus tem como pressuposto o fato de que, na oportunidade da assinatura do contrato, as partes não tinham condições de prever aqueles acontecimentos que acabaram surgindo.

Por isso se fala em imprevisão. A alteração do contrato em época futura tem como base certos fatos que no passado, quando do fechamento do negócio, as partes não tinham condições de prever.

Na sistemática do CDC não há necessidade desse exercício todo. Para que se faça a revisão do contrato, basta que após ter ele sido firmado surjam fatos que o tornem excessivamente oneroso. Não se pergunta, nem interessa saber, se, na data de seu fechamento, as partes podiam ou não prever os acontecimentos futuros. Basta ter havido alteração substancial capaz de tornar o contrato excessivo para o consumidor." [37]

A distinção é importantíssima. Com a adoção da teoria da imprevisão pelo Direito das Obrigações, no NCC, não faltarão aqueles mandriões que tentarão formatar o entendimento para enxergar no artigo 317 do NCC e no artigo 6º, V do CDC o mesmo instituto jurídico. Todavia, é imperioso ter em mente que o moderno Código do Consumidor, elaborado por juristas de escol, é fruto de profundos estudos no direito comparado. Seus diversos dispositivos, dessarte, foram elaborados em consonância com o que há de mais moderno no direito privado mundial. O artigo 6º, V do CDC, pois, hauriu seus fundamentos na teoria germânica da quebra da base do negócio (Wergfall der Geschäftsgrundlage) [38].

Quem quer que se aventure no estudo artigo 6º, V, do CDC, portanto, deverá sempre recorrer aos ensinamentos da doutrina alemã em torno da teoria da quebra da base do negócio, principalmente consultando as conclusões doutrinárias mais recentes, e não só tecendo especulações sobre alfarrábios jurídicos que consubstanciam pensamentos já ultrapassados.

É nesse necessário exercício de humildade que se transcreve as seguintes conclusões de LUÍS RENATO FERREIRA DA SILVA, que se debruçou em dedicado estudo sobre o tema:

"Em primeiro lugar, pode-se estabelecer uma relação de gênero e espécie, no sentido de que na imprecisão, o elemento causador, reveste-se de caráter genérico, enquanto na teoria da base há um caráter mais específico. A teoria da base, por sua vez, engloba circusntâncias outras que as abrangidas pela imprevisão (como, por exemplo), a frustração do fim do contrato e não somente a onerosidade excessiva. Mas a principal diferença, marcante do subjetivismo e da vinculação à vontade que se faz presente na teoria da imprevisão e torna a teoria da base do negócio mais atraente, diz respeito à previsibilidade das circunstâncias supervenientes, exigida naquela e despicienda nesta.

(...)

Pode-se notar, dentro da evolução atual da doutrina alemã, uma tendência a privilegiar a definição prévia dos riscos, acentuando um aspecto (distribuição dos riscos) que não fora inicialmente cogitado, mas que está inserido entre os requisitos necessários para poder-se valer da teoria da base. Vê-se que a tendência a objetivar a teoria da base é a senda natural, vez que ela se diferencia da teoria da imprevisão, que privilegia as antevisões de cada qual do contratantes. Assim, a configuração dos pressupostos para a ocorrência da base, nos ordenamentos que a contemplam, refletem o resultado da evolução histórica supra elencada e até mesmo abarcando o critério da distribuição de riscos por último aventado." [39]

Art. 318- A redação deste dispositivo era de toda dispensável, vez que presente exatamente com o mesmo conteúdo em outras leis (Decreto 23.501/33; Decreto-Lei 857/69; Lei 10,192/01)

A regra do ‘curso forçado da moeda nacional’, inserta neste artigo, encontra exceções no artigo 2º do Decreto-Lei 857/69,que são as seguintes:

- contratos de exportação e importação em geral, bem como os acordos resultantes de sua rescisão;

- contratos de compra e venda de câmbio;

- contratos celebrados com pessoa residente e domiciliada no exterior, excetuados os contratos de locação de imóveis situados no território nacional, bem como a sua transferência ou modificação a qualquer título, ainda que ambas as partes já estejam nessa oportunidade residindo no País;

- contratos de locação de bens móveis, desde que registrados no Banco Central do Brasil;

- contratos de leasing celebrados entre pessoas residentes no País, com base em recursos captados no exterior.

Art. 320, parágrafo único- O parágrafo único, reconhecendo as peculiaridades do tráfego jurídico, dispensa os requisitos do caput, sempre que se puder concluir por outra maneira que a dívida foi paga. O preceito não interfere nos artigos 402 e 403 do Código de Processo Civil.

Art. 324- A entrega do título ao devedor faz nascer uma presunção jures tantum de quitação, salvo se o credor provar, em 60 dias, que não obstante a posse do título com o devedor, ainda assim não recebeu a prestação devida. O artigo, neste caso específico, não inova.

O prazo de 60 dias prescrito é de natureza decadencial. Mas o que deverá o credor realizar dentro desse prazo de sessenta dias? Ora, deverá ajuizar a ação por via da qual pretende provar a falta da quitação, em que pese o devedor estar de posse do título da obrigação. Obviamente que o processo instaurado não terá que atingir a fase de produção probatória durante os 60 dias, já que os prazos assinados ao juiz são, em sua essência, impróprios.

Foi suprimida na nova redação o § 2º presente no artigo 945 do Código Civil de 1916 porque no caso de quitação dada por instrumento público, pouco importa se o título foi ou não entregue ao devedor. A quitação por escritura pública, mesmo diante da supressão normativa, continua gerando uma presunção juris et de jure de pagamento (Art. 215 do NCC), salvo se o credor provar a falsidade deste documento, o que acarretará nulidade do próprio ato, ou seja, da escritura pública de quitação.

Art. 325- No artigo em foco foi generalizada a hipótese em que o credor arcará com o acréscimo das despesas que deu causa. Ou seja, todas as despesas com pagamento e quitação majoradas por culpa do credor deverão por ele ser pagas.

Art. 329- Eventualmente, em casos de urgência, o pagamento devido poderá ser realizado pelo devedor em local diverso do contratado, desde que não acarrete prejuízo ao credor. Este prejuízo, de qualquer modo, poderá ser coberto por acréscimo no pagamento, de modo a possibilitar o adimplemento em local diverso, devido à urgência, o que deverá ser sempre franqueado ao devedor para evitar que fique cingido aos caprichos do credor. Igualmente, se a mudança do local do pagamento implicar o acréscimo de outras despesas, estas serão de responsabilidade do devedor. A consignação em pagamento, nos casos de recusa ao recebimento, apresentar-se-á como o melhor recurso.

O Novo Código Civil emprega expressão genérica- ‘motivo grave’- que será apreciada de acordo com o caso concreto, pelo juiz. Este artigo, portanto, denota o novo espírito do Direito Civil, de estabelecer ‘cláusulas gerais’ e também princípios abrangentes, como o fez o Código de Defesa do Consumidor. O intuito, segundo confirma RICARDO FIÚZA, é de

"manter os seus comandos suficientemente abertos, afastando o positivismo exagerado do Código Civil de 1916 e permitindo que o texto possa se amoldar tal como as circunstâncias sociais do presente e do futuro, sem que venha a necessitar de grandes modificações. O que é motivo grave hoje, pode deixar de sê-lo amanhã, não competindo à lei que se quer perene definir hermeticamente a gravidade do motivo." [40]

Art. 330- O dispositivo inova, mas somente no que diz respeito ao direito posto. Isso porque a doutrina e a jurisprudência já consagravam a possibilidade de alterações contratuais tácitas em função de práticas reiteradas efetuadas entre os contratantes, incluindo-se aqui o pagamento:

"Não tendo o contrato disciplinado o lugar do pagamento e, por outro lado, vindo o devedor efetuando-o, desde o princípio, através de boleta remetida pelo credor, nas quais constava que o pagamento deveria ser feito em "qualquer agência do Banco do Brasil S/A", forçoso concluir, em razão da óbvia existência de acordo tácito a respeito, que este é o lugar do pagamento (...)(TA/MG- Processo: 0310017-4 (10º); Orgão Julgador: Sétima Câmara Cível; Apelação (Cv); Relator: Lauro Bracarense; Data da Julgamento: 10/08/2000).

Ao mesmo tempo em que o Novo Código Civil advém com louváveis avanços, também demonstra apreço pelo retrocesso, principalmente porque em muitos casos pecou pela omissão. Ora, seria de todo desejável que o preceito do artigo 330 fosse positivada no nível de regra geral, alcançando não só o pagamento, mas todas as práticas reiteradas que evidenciassem alterações contratuais tacitamente aceitas pelas partes. Assim dispunha o artigo 1.079 do Código Civil de 1916:

"Art. 1.079 - A manifestação da vontade, nos contratos, pode ser tácita, quando a lei não exigir que seja expressa."

O artigo já era, por assim dizer, razoavelmente satisfatório, pois consubstanciava regra abrangente, conquanto pouco incisiva.

Comentando este dispositivo transcrito, ponderava CAIO MÁRIO:

"Pode a declaração de vontade ser tácita, quando a lei não a exigir expressa (Código Civil, art. 1079), desde que se infira inequivocamente de uma atitude ou conduta do agente, hábil a evidenciar a manifestação de seu querer, no sentido da constituição do negócio contratual." [41]

Além do Novo Código Civil não ter se prestado a aprimorar o transcrito dispositivo, acabou por suprimi-lo. Mas as necessidades do cotidiano moderno apontam noutra direção, requerendo regras que assegurem a vinculação de todas as condutas reiteradas dos contratantes, que importem em demonstração de alterações contratuais adjetas as quais, muitas das vezes, em virtude do alucinante ritmo das contratações de massa efetuadas no mercado, não podem ser reduzidas a termo em instrumentos contratuais.

KARL LARENS há muito vinha esclarecendo que no desdobramento do contrato, durante sua execução, poderiam sempre despontar condutas que significassem novas estipulações, aderindo às outras obrigações contratadas. Afinal, como admite o jurista da Universidade de Munich,

"(...) la voluntad de admitir el contrato se ha realizado con suficiente claridad en el acto de ejecución. Pues la voluntad de ejecutar un contrato incluye también la voluntad de admitirlo" [42].

Obviamente, o ato de execução deve supor o consentimento.

A solução, portanto, diante da supressão, será recorrer à Teoria Geral dos Contratos, que sufraga a possibilidade de contratações tácitas, bem como ao princípio da boa-fé objetiva, que manda observar e manter a confiança despertada no contratante pelas práticas observadas na execução do pacto.

Vê-se, então, que estamos ainda distantes de alcançar os avanços que o Direito Civil Alemão positivo já consolidou nesse campo, por via do artigo 151 do BGB, que dá relevância jurídica aos usos e condutas esperadas em cada tipo de contrato, possibilitando a construção das figuras dos atos concludentes, dos atos de cumprimento, dos atos de apropriação ou utilização, e das condutas socialmente típicas. [43]

Art. 334- Este dispositivo ultrapassa o Código de Processo Civil, vez que permite a consignação em pagamento de qualquer obrigação cujo objeto da prestação seja passível de depósito bancário, a exemplo de jóias, metais preciosos e papéis de qualquer espécie, não se restringindo ao depósito em dinheiro.

Art. 359- Ocorrendo a evicção, que consiste na perda da coisa em razão de sentença judicial, conferindo o domínio a terceira pessoa, pode restar atingida a dação em pagamento. Assim, se o credor receber como dação em pagamento coisa que não pertence ao solvens, perdendo-a em razão da evicção, a obrigação primitiva é restabelecida em seu estado anterior.

Excetua-se, entretanto, os direitos de terceiros, que não serão atingidos por essa hipótese de repristinação. Cabe saber, dessa forma, quais seriam esses terceiros. Como a lei não faz diferenciações, e não cabendo ao intérprete distinguir onde a lei não distingue, não serão alcançados os terceiros vinculados tanto no pólo ativo quanto no pólo passivo da relação obrigacional original. Ou seja, qualquer terceiro contratualmente vinculado ao credor em virtude da obrigação originária não poderá ser prejudicado com o restabelecimento causado pela evicção. Suponha o seguinte caso: João somente receberá de Pedro caso Lucas pague a este último. O crédito de João, portanto, está visceralmente condicionado à relação obrigacional existente entre Pedro e Lucas. Efetuado o pagamento por Lucas e, por conseguinte, recebendo João, não poderá Pedro querer anular o pagamento efetuado ao terceiro (João), sob o argumento de que o adimplemento de Lucas foi frustrado em razão da evicção. De igual forma, terceiros vinculados ao devedor da relação obrigacional primitiva não poderão ser prejudicados. Tenha-se, por exemplo, o caso do fiador exonerado com a dação em pagamento, posteriormente invalidada pela evicção. Por força do artigo sob comento, bem como do art. 838, III do Novo Código Civil, não poderá a fiança ser restaurada. De se notar que todos os terceiros que prestaram garantias ao devedor, igualmente, não poderão ser prejudicados com o retorno à obrigação original, em vista do direito de se verem liberados pela dação em pagamento aceita pelo credor.

Art. 361- A novação não se presume, de modo que deverá resultar de inequívoca intenção das partes, conforme apurado nas circunstâncias que envolvem o caso concreto.

Decerto que a novação tácita será de configuração ainda mais difícil, se comparado com o regime anterior, já que a Lei foi incisiva ao requerer manifesta vontade convergente neste sentido, ao empregar o adjetivo ‘inequívoco’.

O acréscimo também importará em reflexos na aplicação prática. Nesse sentido, tenha-se em conta a inserção de uma cláusula num instrumento contratual que faz apenas remissão ao artigo 361 do NCC, como que tentando configurar a novação de uma obrigação anterior, mas não pugnando pela transparência. Aqui não se cogitará da existência de ânimo inequívoco de novar, já que a redação da cláusula foi elaborada de modo a torná-la obscura. Por conseguinte, não há como falar em manifestação de vontade acerca daquilo que se desconhece, e tampouco em existência de acordo.

A nova redação será de grande relevância também para aplicação nas relações de consumo. Isso porque a imposição de ânimo inequívoco, aos olhos do Código do Consumidor, toma contornos especiais. É que a união de vontades, no CDC, requer sempre a máxima transparência, sendo certo que esta lei adotou normas cogentes e impositivas no sentido de obrigar o fornecedor a observar, sem ressalvas, o princípio da informação. Para tanto, basta conferir, v.g., os artigos 46 e 54, §§ 3º e 4º do citado diploma legal. Da leitura destes artigos, principalmente do artigo 46 do CDC, percebe-se que todas as estipulações contratuais devem ser levadas ao efetivo conhecimento do consumidor. A esse respeito, anota NELSON NERY JÚNIOR:

"Dar oportunidade de tomar conhecimento do conteúdo do contrato não significa dizer para o consumidor ler as cláusulas do contrato de comum acordo ou as cláusulas gerais do futuro contrato de adesão. Significa, isto sim, fazer com que tome CONHECIMENTO EFETIVO do conteúdo do contrato" [44](grifos nossos)

Por isso é permitido afirmar (apesar da persistente incompreensão de muitos julgadores, principalmente daqueles que ainda nem se deram ao trabalho de ler a lei 8.078/90) que nem só porque há cláusula expressa, em instrumento contratual assinado, estará o consumidor vinculado a tal estipulação. Novamente, pela clara redação dos artigos 46 e 54, §§ 3º e 4º do CDC, se as cláusulas estiverem redigidas sem destaque, sem o emprego de letras garrafais, utilizando-se de redação não cognoscível e, portanto, obscura, "não obrigarão os consumidores" (artigo 46, mais uma vez).

Em conclusão, pode-se afirmar que, dentro do contexto do Código do Consumidor, o requisito presente no artigo em destaque veio para somar. Fora do princípio da informação e da transparência, nas relações de consumo, não se poderá falar em ‘ânimo inequívoco’

A hipótese prescrita neste artigo não se confunde com aquela prevista no artigo 367, in fine do NCC. Ou seja, a par da impossibilidade de novação de obrigações nulas, a lei quer sancionar também quando não esteja presente o ânimo inequívoco de novar, de ambas as partes. Portanto, o intuito do legislador foi o de estabelecer controles ao instituto da novação que, não raras vezes, é utilizado na prática com o escopo de fraudar a Lei, mormente em se tratando de contratos de adesão.

Art. 374- A questão que se suscita com relação a este dispositivo é a de sua aplicabilidade em face do artigo 170 do Código Tributário Nacional, já que este último teria natureza de lei complementar, e não poderia ser alterado por uma lei ordinária.

A dúvida, entretanto, é afastada pela própria redação do artigo 170 do CTN, que autoriza o tratamento da matéria atinente à compensação em lei ordinária. Tanto é que diplomas normativos ordinários já existem versando sobre o mesmo tema, como a lei 9430/96 e do Decreto 2.138/97, normas estas que até então nunca tiveram a constitucionalidade atacada. Comunga deste entendimento DAVI LAGO:

"Conquanto o Novo Código Civil não seja, do ponto de vista disciplinar, lei tributária, de toda forma, acredito que o mesmo poderia tratar do instituto da compensação, estando preenchido o requisito de tal matéria ser tratada pelo legislador ordinário conforme competência a ele atribuída pelo CTN.

Além disso, como o artigo 170 do CTN utiliza a conjunção alternativa "ou" para delimitar as duas modalidades de compensação chamadas de legal e convencional (ou administrativa), estaria o legislador ordinário, valendo-se da faculdade a ele concedida pelo legislador complementar, preferindo adotar, em matéria tributária, unicamente a compensação legal, com novas estipulações, em prejuízo da compensação convencional." [45]

Este entendimento, que sem sombra de dúvidas será o mais acatado pela doutrina e pela jurisprudência, consiste numa considerável alteração do Código Civil de 1916, que não admitia a compensação ampla.

Por tratar este artigo de compensação legal, constitui direito potestativo, independendo da vontade das partes para ser observado. Assim completa MÁRIO LUIZ DELGADO RÉGIS:

"Não há necessidade, no caso, de um reconhecimento prévio, em processo administrativo, do pagamento indevido do tributo, ou, de sua liquidez, certeza e exigibilidade por parte da devedora, que futuramente tratará de cobrar o que eventualmente não pudesse ter sido objeto da compensação. A administração fazendária não pode, em hipótese alguma, limitar, restringir, ou negar ao contribuinte o direito à compensação sempre que a parte for credora da Fazenda Pública de um crédito líquido, certo e exigível." [46]

Deverão ser tidos como requisitos para a compensação a reciprocidade, a liquidez, a exigibilidade e a fungibilidade dos créditos.

Na operacionalização do instituto despontarão um sem-número de dúvidas, como as que já vêm sendo levantadas por DAVI LAGO: "quando os créditos tributários do contribuinte são líquidos? Os tributos a serem compensados deverão, necessariamente, estar vencidos?" [47]

Defende MÁRIO LUIZ DELGADO RÉGIS que os créditos contra a Fazenda Pública, a partir da vigência do Novo Código Civil, poderão ser objeto de cessão e utilizados pelo cessionário para compensação, bastando, para isso, uma mera comunicação à Secretaria da Receita Federal. [48] Conforme já abordado, a nova redação dada ao artigo 286 do NCC pelo projeto de reforma do Dep. Ricardo Fiúza incluirá expressamente a possibilidade de cessão ora discutida.

Anote-se que também é questionável o conflito entre este novo artigo com as leis especiais já existentes, que também tratavam da compensação no Direito Tributário. DAVI LAGO advoga que o artigo 374 do Novo Código Civil acabou por revogar, tacitamente, os artigos 7º, do Decreto-lei 2.287/86; 33, da Lei nº 8.383/91 e 74, da Lei nº 9.430/96, por serem com estes incompatíveis. [49]

MÁRIO LUIZ DELGADO RÉGIS entende que todos os dispositivos de lei anteriores que asseguravam ao contribuinte o direito á compensação, como no caso da Lei 9430/96 e do Decreto 2.138/97, estariam plenamente em vigor. [50]

Por fim, importante ressaltar que a alteração fomentará novos debates sobre a relação jurídica tributária, se estaria a mesma excluída ou não do campo obrigacional.

Art. 385- A liberação graciosa operada pelo credor, mediante consenso expresso ou tácito do devedor, não poderá prejudicar direito de terceiros.

Como exemplo, pode ser citado alguém que dá em penhor um crédito seu, fazendo surgir outro credor pignoratício. Não pode o credor original, dessa forma, remitir seu crédito para com o devedor, porque em assim agindo estaria prejudicando aquele que recebeu o crédito em penhor.

Art. 389- Empregou a lei a expressão "índices oficiais regularmente estabelecidos", que merece ser analisada. Sabendo-se que inexistem palavras inúteis na lei, cabe sacar da letra do dispositivo a mens legis. Assim, note-se que todo índice de juros ou de correção monetária, para decorrer ex lege, deverá ser estabelecido, evidentemente, de acordo com a Lei. Então, a expressão "regulamente estabelecidos" não se refere a estar ou não em consonância com a lei. Entender de maneira diversa seria altercar em favor da redundância! O índice que se tem em foco decorre ex lege, e seria estultice imaginar que o legislador queria repisar um requisito inafastável, como que a dizer: "o índice legal deverá ser estabelecido de acordo com a lei".

A solução, portanto, está na palavra ‘regular’. Consta no Dicionário Houaiss que ‘regular’ pode significar aquilo que está em consonância com as regras e as leis ou o que está de acordo com sua natureza. Descartada a primeira hipótese, o artigo 389 do NCC só pode ter empregado a expressão "regularmente estabelecido" para destacar que não seria aplicável qualquer índice. Estariam afastados, portanto, aqueles que não se prestam unicamente à finalidade precípua para a qual foram criados, porque trazem em seu bojo parcela embutida de natureza diversa. Pensar contrariamente equivale a desprezar as palavras "regularmente estabelecidos".

O Novo Código Civil vêm inovar ao prever o pagamento de honorários do advogado na forma de regra geral, incrustada no Livro das Obrigações. A intenção manifesta da norma é de valorizar o ofício advocatício. Atualmente, o pagamento de honorários decorre ex lege, quando configurado o inadimplemento, tornando dispensável qualquer estipulação contratual. O advogado contratado para levar a cabo negociações extrajudiciais, por exemplo, também fará jus a honorários. Dessa forma, devem ser revistas posições como a de NELSON NERY JÚNIOR, para quem "somente em ação judicial são devidos honorários de advogado". [51]

Art. 390- O NCC foi técnico ao criar este dispositivo. Muito embora na prática os efeitos da mora e do inadimplemento se confundam, ontologicamente essas figuras são distintas.

Art. 391- Perdeu aqui o legislador a oportunidade de positivar o moderno princípio de que na execução das obrigações, deve-se primar pelo cumprimento específico, para somente depois se buscar o sucedâneo em perdas e danos. Contudo, conforme bem coloca LUIZ GUILHERME MARINONI, o Estatuto Processual Civil (art. 461) e o Código do Consumidor (art. 84) já trataram de corrigir o equívoco de que todo inadimplemento deve acarretar, invariavelmente, perdas e danos. [52]

Art. 392- O NCC, por motivos óbvios, limitou a responsabilidade daqueles que, nos contratos benéficos, não auferem qualquer benefício, casos em que respondem somente por culpa.

Art. 395- Valem aqui os mesmos comentários expendidos no artigo 389, supra.

Art. 400- O artigo 400 quando se refere à conservação da coisa, dispõe sobre a obrigação de dar. Por isso o pagamento do devedor, aqui, é a própria entrega da res debita. Ao entregar a coisa, receberá do credor montante segundo a sua mais alta estimação. A nova redação, portanto, somente elucidou esta hipótese, um tanto obscura no antigo artigo 958 do Código Civil de 1916. Esclareceu, destarte, que a coisa será recebida pela estimação mais favorável ao devedor.

Art. 402- O artigo 402 não repetiu o parágrafo único do artigo 1.059 do Código Civil de 1916, segundo o qual caso o devedor estivesse em mora, somente responderia pelos lucros que foram ou podiam ser previstos na data da obrigação. A supressão justifica-se em razão de que o Novo Código Civil impõe ampla indenização, determinando ao devedor ressarcimento por todos os prejuízos a que sua mora der causa (Art. 395).

Todavia, perceba-se que, para o pagamento dos lucros cessantes ocasionados pela mora do devedor, o artigo 1.059, parágrafo único do CCB/1916, impunha um requisito que foi igualmente suprimido. Como conseqüência, para o cálculo da indenização por lucros cessantes decorrentes da mora do devedor, nos moldes do artigo 395 do Novo Código Civil, não se requer mais aquele requisito, que determinava ao menos a ‘previsão ou previsibilidade dos lucros na data da obrigação’. De todo o modo, o artigo 403 do NCC traça parâmetros que deverão ser levados em conta.

Art. 404, caput- Vide comentários ao artigo 389.

Art. 404, parágrafo único- Nas obrigações de pagamento em dinheiro, ao calcular o montante devido a título de perdas e danos, poderá o juiz determinar indenização suplementar ao credor, se este provar que os juros da mora não foram suficientes, e se não houver sido estipulada pena convencional.

Aqui, mais uma vez, o legislador implementou o princípio da operabilidade.

Art. 406- Por incrível que pareça, o legislador foi capaz de inserir no Novo Código Civil um artigo flagrantemente inconstitucional. Causa espécie o fato de que esse vício passou desapercebido da grande maioria dos doutrinadores que se prestaram a comentar o Novo Código Civil, com raríssimas exceções. [53]

Em que pese o STF ter decidido pela não auto-aplicabilidade do artigo 192, § 3º da Constituição Federal de 1988, tal decisão não concede ao legislador autorização para desobedecer este comando maior, por via de legislação ordinária.

CANOTILHO adverte que todas as regras e princípios constitucionais são dotadas de normatividade, sendo certo que, hodiernamente, mesmo às normas programáticas é reconhecido um valor jurídico constitucional idêntico ao dos restantes preceitos da constituição. De sorte que, mesmo quando não auto-aplicáveis, tais normas operam "na qualidade de limites materiais negativos, dos poderes públicos, justificando a eventual censura, sob a forma de inconstitucionalidade (...)". [54]

Portanto, ainda que não auto-aplicável, o artigo 192, § 3º da Constituição da República traça limite negativo ao legislador infraconstitucional, que deverá se conformar com sua pequenez e acatar os parêntesis postos na Carta Magna.

A norma é inconstitucional, porque possibilita a imposição de juros acima de 12% ao ano. Isso sem contar com a inaplicabilidade da taxa Selic que, pela redação atual, seria o parâmetro então vigente para os juros. Contudo, por se tratar de ponto secundário, não cabe abordar neste trabalho os contornos da taxa Selic.

Art. 408- A culpa no inadimplemento é pressuposto para a aplicação da cláusula penal, como para a constituição em mora (art. 396 do NCC). Ou seja, depende a incidência da cláusula penal da ocorrência de fato imputável única e exclusivamente ao devedor, não sendo exigível, por exemplo, nos casos de culpa concorrente.

Art. 413- A novidade aqui reside na possibilidade de redução da cláusula penal quando ela se apresentar manifestamente excessiva. Cuida-se de mais uma exceção ao princípio da imutabilidade da cláusula penal. O conceito de montante manifestamente excessivo, pela própria letra da lei, dependerá da natureza e da finalidade do negócio.

No que diz respeito ao Código de Defesa do Consumidor, a possibilidade de redução da cláusula penal já se apresentava plenamente possível, em virtude do reconhecimento da nulidade da obrigação excessiva (Art. 51, IV, § 1º, II e III), e também pela vedação do artigo 39, V da mesma Lei, que proíbe a imposição de vantagens manifestamente abusivas. Também nas relações de consumo deverá ser efetuada uma análise da natureza e da finalidade do negócio, para fins de reconhecimento da excessividade, caso a caso. O critério criado, portanto, será de grande utilidade para o CDC.

A redução positivada neste artigo também deverá ser aplicada no caso das arras, como se verá adiante.

Art. 416, parágrafo único- Quando estipulada a cláusula penal, não poderá o juiz arbitrar indenização suplementar, possibilidade essa prevista no artigo 404, parágrafo único do NCC. Essa regra será afastada, por exceção, quando a indenização suplementar for estipulada entre as partes. Para fazer valer essa prerrogativa, o credor deverá provar o prejuízo excedente.

Art. 417- O instituto das arras também sofreu consideráveis alterações. No artigo 417, o legislador determinou as chamadas arras confirmatórias. Assim serão consideradas quando do mesmo gênero da obrigação principal ou quando não puderem ser qualificadas como arras penitenciais (art. 420, infra).

Em sendo confirmatórias, as arras serão restituídas quando da execução do contrato. Ou, se a coisa dada a título de arras for do mesmo gênero da prestação principal, será imputada no pagamento.

Art. 418- Especificando os efeitos das arras confirmatórias, nos casos de inadimplemento, o legislador supriu as omissões do 1.097 do Código Civil de 1916. Assim sendo, se o descumprimento for imputável a quem deu as arras, este as perderá em benefício do que recebeu. Por outro lado, se a inexecução for imputável a quem recebeu as arras, deverá devolvê-las em dobro, acrescidas de juros, correção e honorários de advogado. O dispositivo, referindo-se à devolução em dobro, empregou a expressão "devolução mais o equivalente", com prejuízo da clareza. [55] É de se perguntar como que uma Comissão encarregada de reformar um Código, por tanto tempo, ainda assim consegue piorar a redação anterior.

Art. 419- Muito significativas são as alterações deste artigo, que demonstram o novo intuito do Código Civil de traçar regras generalizantes, cujos contornos serão determinados no caso concreto. A regra atual aponta para as arras como taxa mínima, possibilitando sempre a indenização suplementar quando provado o prejuízo superior. Na verdade, a norma vai além. Ao positivar essa prerrogativa, o Novo Código Civil destacou a importância de fazer a correspondência das arras com o prejuízo efetivamente sofrido pela parte inocente. Dessa forma, se é dado ao beneficiado pelas arras exigir a indenização suplementar, poderá também o devedor requerer sua redução, se provar que o montante prefixado é manifestamente excessivo. Essa é a interpretação que deve ser dada a este princípio da correspondência das arras ao prejuízo efetivo’, até para garantir tratamento isonômico às partes contratantes. Aplicável ao caso, outrossim, o princípio da operabilidade e o da função social dos contratos. De fato, não há como transformar o instituto das arras em palco para o enriquecimento sem causa. Incide, por aplicação teleológica e sistemática do Novo Código, o disposto em seu artigo 413, in fine.

Se existe alguma controvérsia acerca dessa redução das arras excessivas, tal como exposto, dúvidas não pode existir no que concerne às relações de consumo. Isso por aplicação conjunta do artigo 51, IV, § 1º, II e III e do artigo 39, V do Código do Consumidor. Neste particular, não poderá o fornecedor receber, a título de arras, nada além daquilo que realmente gastou. Igualmente, a pretexto de cobrar do consumidor aquilo que deixou de receber, não poderá o fornecedor transformar as arras como salvo-conduto para encetar abusos no mercado de consumo.

Há quem defenda a própria nulidade da estipulação de arras no sistema do Código de Defesa do Consumidor. Na esteira deste entendimento, e seguindo reiteradas decisões judiciais e administrativas dos PROCONs, a Secretaria de Direito econômico também firmou o entendimento de que é abusiva a cláusula que "vede, nos serviços educacionais, em face da desistência pelo consumidor, a restituição de valor pago a título de pagamento antecipado de mensalidade" (Item 16 da Portaria nº 3, de 15 de março de 2001, do Secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça. Note-se que a referida Portaria leva em conta o fato de que o rol presente no artigo 51 do CDC é meramente exemplificativo, e o mesmo documento tem como fundamento legal expresso os artigos 22, IV e 56 do Decreto nº 2.181/97).

Nessa visão as arras, seguindo a clássica doutrina do Direito Civil, somente se justificariam em contratos de vulto, onde há enorme dispêndio de gastos por parte de ambos os contratantes na fase pré-contratual. Já nos contratos de consumo modernos, marcados pela volatilidade e pela dinâmica na formação dos vínculos, não fariam o menor sentido.

Ainda, o dispositivo em tela também incorporou o espírito da tutela específica, presente no artigo 461 do Código de Processo Civil e no artigo 84 do Código do Consumidor, ao prever expressamente a opção pela execução do contrato, mesmo diante do inadimplemento. Mas, cumpre observar, o artigo 419 do Novo Código Civil foi além dessas aludidas normas processuais, pois permitiu a cumulação da execução do pactuado com a indenização por perdas e danos. Na lógica da tutela específica, que busca o adimplemento ou o seu resultado prático equivalente, a indenização por perdas e danos seria secundária e subsidiária, último recurso buscado pelo credor. O § 1º do artigo 461 do CPC, nesse sentido, é claro ao afirmar que a obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente. O artigo 84, § 1º do Código do Consumidor é no mesmo sentido.

As perdas e danos referidas no artigo 419 do Novo Código Civil não se confundem com aquelas previstas no artigo 461, § 1º do CPC e no artigo 84, § 1º do CDC. Afinal, na ótica da tutela específica, está-se tratando de indenização supletória, sucedânea, que será devida no lugar do adimplemento ou de seu resultado prático equivalente. Já no artigo 419 do Novo Código Civil a indenização será concomitante ao adimplemento. Nesse último caso, avulta que o credor não poderá receber duas vezes, senão estaria configurada absurda hipótese de bis in idem. Conclui-se, então, que as perdas e danos referidas no artigo 419 do Novo Código Civil não correspondem à indenização substitutiva integral, mas apenas àqueles danos emergentes e lucros cessantes decorrentes do atraso no pagamento, até o momento em que executado o contrato. Portanto, as arras serão devidas, cabendo sempre acréscimo suplementar se não forem suficientes para cobrirem as perdas e danos ora apontadas.

Art. 420- As arras penitenciais foram estabelecidas no artigo 420 do NCC. Serão classificadas como tais quando estipulado no contrato conjuntamente com o direito de arrependimento. Também poderá haver estipulação expressa determinando esta natureza penitencial, mesmo quando não previsto o direito de arrependimento. Conforme o magistério de CAIO MÁRIO:

"Dado o sinal, está firmado o negócio. Se o objeto dado em arras for dinheiro (Código Civil, art. 1.096) ou, como mais precisamente enuncia Saleilles, se guardar relação de fungibilidade com o objeto do contrato, consideram-se princípio de pagamento (...). Para que se lhe atribua o efeito penitencial- arrha quae ad ius popenitendi pertinet- é necessária a estipulação expressa". [56]

Se aquele deu as arras fizer uso do direito de arrependimento, perdê-las-á em benefício do que recebeu. Lado outro, se o que recebeu desistir unilateralmente do contrato, devolvê-las-á em dobro. Neste último caso, apesar da omissão na redação, não há razões para tecer tratamento diferenciado do artigo 418, de forma que na devolução será computada a correção monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, juros e honorários do advogado.

Nas arras penitenciais a Lei veda a possibilidade de indenização suplementar. Contudo, tal proibição não prejudica a aplicação analógica do artigo 413 do Novo Código Civil, para reduzir as arras estipuladas em montante excessivo. Observe-se que no caso das arras penitenciais, as mesmas operam como prefixação de perdas e danos. A cláusula penal ou pena convencional também consiste em pré-estabelecimento de perdas e danos. Portanto, deve ser estendido o tratamento previsto no artigo 413, segunda parte, para alcançar o artigo 420.

Valem aqui as mesmas observações efetuadas nos casos envolvendo relação de consumo, expendidas nos comentários ao artigo 419.

Por fim, se o contrato não for executado em virtude de caso fortuito ou força maior, as arras deverão ser restituídas, vez que não se trata de opção pelo direito de arrependimento.

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Sobre o autor
Marco Paulo Denucci Di Spirito

assessor jurídico do Conselho Regional de Economia da 10ª Região

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DI SPIRITO, Marco Paulo Denucci. Breves comentários acerca do novo direito das obrigações - Singelo paralelo entre os processos de reforma do BGB e do Código Civil brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3389. Acesso em: 28 mar. 2024.

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