A Impossibilidade da Aplicação da Transação Penal aos Crimes Definidos No Estatuto do Idoso com Pena Privativa de Liberdade de até Quatro Anos

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20/11/2014 às 16:41
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2 TRANSAÇÃO PENAL

2.1 CONCEITUAÇÃO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA

A transação penal é um instituto criado em 1.995 pela Lei n. 9.099/1.995, sem precedentes na história processual brasileira, que consiste na permissão para que o Ministério Público e o autor do fato celebrem acordo pelo qual este último aceita submeter-se a uma pena alternativa (de multa ou restritiva de direito), como forma de evitar-se o processo e seus efeitos deletérios.

Trata-se de instituto despenalizante e não discriminante, por meio do qual oferece-se ao autuado a oportunidade de transacionar acerca da pena recebida, possibilitando um deslinde rápido ao procedimento, sem reconhecimento de culpa e sem processo.

Expõe Rangel (2.004, p. 267):

A transação penal é uma fase posterior à composição civil dos danos e (mais importante) anterior e impeditiva da ação penal. O artigo 77 [...] diz claramente: Na ação penal de iniciativa pública, quando não houver aplicação de pena, pela ausência do autor do fato, ou pela não-ocorrência da hipótese prevista no artigo 76 desta Lei (ou seja, da transação penal), o Ministério Público oferecerá ao juiz, de imediato, denúncia oral, se não houver necessidade de diligências imprescindíveis. Assim, claro nos parece que só haverá ação penal se não houver transação, e só haverá transação se não houver acordo civil homologado pelo juiz. É intuitivo.

No tocante ao poder inerente ao Ministério Público, questiona-se se a transação penal seria uma faculdade deste ou um direito subjetivo do autuado. Na mesma linha de pensamento, surge, ainda, a indagação quanto à possibilidade da aplicação da transação penal na ação penal privada, já sendo consolidado o entendimento de se tratar de um direito subjetivo, em analogia ao enunciado da Súmula n. 696 do Supremo Tribunal Federal[2] e da doutrina do Enunciado n. 86 do FONAJE (Fórum Nacional de Juizados Especiais)[3], e a consolidação do entendimento de seu cabimento também na ação penal privada, após forte embate da doutrina e jurisprudência.

No que concerne à evolução histórica da transação penal no direito brasileiro, trata-se de um instituto de direito material despenalizante, amparado constitucionalmente[4], sendo inserida no âmbito infraconstitucional pela Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1.995, em seu artigo 76. Esta lei, além da transação penal, trouxe outros institutos despenalizantes, como a suspensão condicional do processo (artigo 89), a composição civil extintiva da punibilidade (artigo 74, parágrafo único) e a representação nos delitos de lesões corporais culposas ou dolosas de natureza leve (artigos 88 e 91), os quais estão excluídos de análise no presente artigo, o qual pugna-se apenas ao estudo da transação penal.

A Lei n. 10.259, de 16 de julho de 2.001, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, pouco inovou no direito penal. A única mudança substancial foi a “derrogação tácita” do artigo 61 da Lei n. 9.099/1.995, ampliando o conceito de delitos de menor potencial ofensivo àqueles cuja pena não exceda a dois anos, e multa, independentemente se prevejam ou não procedimentos especiais, o que também será estudado posteriormente e de maneira mais aprofundada neste trabalho, forçando o legislador a editar a Lei n. 11.313, de 28 de junho de 2.006, alterando o art. 61 da Lei n. 9.099/1.995, e a consequente definição de delitos de menor potencial ofensivo para aqueles cuja pena não exceda a dois anos, cumulada ou não com multa, independente se são de procedimento especial ou não[5].

Por fim, historicamente, o Estatuto do Idoso prevê em seu artigo 94[6] a possibilidade da aplicação do procedimento da Lei n. 9.099/1.995 (sumaríssimo) aos delitos nele previstos, cujas penas privativas de liberdade não excedam a quatro anos. Sobre o assunto, discutiu-se quanto à possibilidade de aplicação da transação penal aos delitos cuja pena não exceda a quatro anos, havendo uma nova derrogação tácita do artigo 61 da Lei n. 9.099/1.995, entretanto, o assunto será comentado oportunamente neste presente trabalho.

Esses são, em resumo, a evolução histórica no direito brasileiro do instituto da transação penal, a qual, no início, englobava as contravenções penais e poucos delitos, alcançando hoje uma gama muito superior de crimes.

Ainda, mister se faz comparar brevemente a transação penal no direito brasileiro com outros institutos estrangeiros norteados pelo princípio da oportunidade da ação penal, dos quais o plea bargaining norte-americano, o guilty plea e o nolo contendere.

O plea bargaining, conforme os dizeres de Gomes (1.997, p. 52) “é o ato pelo qual o imputado manifesta sua decisão de declarar-se culpado, aceitando as imputações ‘acordadas’, assim, como a pena ‘pactuada’, ao mesmo tempo em que renuncia a certas garantias processuais”.

O mais conhecido modelo de plea bargaining é o que consiste no seguinte: uma vez que se dá o conhecimento da acusação, qualquer que seja o crime, para o imputado, pede-se o pleading, isto é, para se pronunciar sobre a culpabilidade; declarando-se culpado (pleads guilty), ou seja, pode o juiz, uma vez comprovado a voluntariedade da declaração, fixar a data da sentença, ocasião em que se abrangerá menos crimes, em razão do acordo entre as partes, sem necessidade de processo ou veredito; em caso contrário, abre-se ou continua o processo e entra em ação o jurado.

Difere o plea bargaining da transação penal nos seguintes pontos, resumindo-se os dizeres de Jesus (1.996, p. 75): 1) No plea bargaining vigora inteiramente o princípio da oportunidade da ação penal pública, enquanto na transação penal o Ministério Público não pode exercê-lo integralmente; 2) Havendo concurso de crimes no plea bargaining, o Ministério Público pode excluir da acusação algum ou alguns delitos, o que não ocorre na transação criminal; 3) No plea bargaining o Ministério Público e a defesa podem transacionar amplamente sobre a conduta, fatos, adequação típica e pena (acordo penal amplo), como, por exemplo, concordar sobre o tipo penal, se simples ou qualificado, o que não é permitido na proposta de aplicação de pena mais leve; 4) O plea bargaining é aplicável a qualquer delito, ao contrário do que ocorre com a nossa transação; 5) No plea bargaining o acordo pode ser feito fora da audiência, já a transação deve ser realizada em audiência (artigo 72).

Quanto ao guilty plea, ensina Jesus (1.996, p. 75) que “neste não há transação, concordando o réu com a acusação. Admitindo a defesa a imputação, há julgamento imediato, sem processo”.

Complementa Gomes (1.997, p. 53) que “o plea guilty é a conformidade simples do acusado com a pena solicitada pelo acusador, porém sem bargain”.

Ademais, considera o supramenciondo autor (GOMES, 1.997, p. 53) que a transação no Juizado Criminal possui a mesma natureza do guilty plea anglo-saxônico, isto é, o autor do fato, no instante em que aceita a aplicação imediata de pena alternativa, está assumindo culpa, mesmo nulla poena sine culpa.

Já o nolo contendere consiste numa forma de defesa em que o acusado não contesta a imputação, mas não admite culpa nem proclama sua inocência.

Ensina Gomes (1.997, p. 130) que a distinção fundamental que existe no direito norte-americano entre o guilty plea e o nolo contendere reside nos efeitos civil da resposta do acusado: daquele, onde o acusado admite culpa, deriva efeito civil, já deste, não decorre semelhante consequência, ou seja, a indenização será discutida. Além disso, o autor assevera que a natureza jurídica do nolo contendere se assemelha à suspensão condicional do processo, haja vista o posicionamento referente à assunção de culpa.

Posicionamento diverso apresenta Souza Netto (1.999, p. 104-141), que não considera a culpa como pressuposto para a transação penal, motivo pelo qual afirma que a natureza jurídica na transação penal possui maior afinidade com o nolo contendere.

2.2 PRESSUPOSTOS E REQUISITOS PARA A OBTENÇÃO DO BENEFÍCIO

Para que seja viável o benefício da transação penal é necessário o preenchimento dos seguintes pressupostos, elencados no artigo 76 da Lei n. 9.099/1.995, in verbis:

Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.

§ 1º Nas hipóteses de ser a pena de multa a única aplicável, o Juiz poderá reduzi-la até a metade.

§ 2º Não se admitirá a proposta se ficar comprovado:

I - ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva;

II - ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo;

III - não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida.

§ 3º Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida à apreciação do Juiz.

§ 4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos.

§ 5º Da sentença prevista no parágrafo anterior caberá a apelação referida no art. 82 desta Lei.

§ 6º A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível. (BRASIL, 2.014b).

Em resumo, os pressupostos de admissibilidade para a concessão do benefício, de acordo com o supracitado artigo, são:

  1. Trata-se de infração de menor potencial ofensivo, que se apure mediante ação pública incondicionada ou mesmo condicionada, desde que haja a representação;
  2. Não se tratar de arquivamento do termo circunstanciado;
  3. A contrário senso do §2º acima, não ter sido o autor condenado por crime, com sentença transitada em julgado, à pena privativa de liberdade;
  4. A contrário senso do §2º acima, não ter sido o agente beneficiado com a transação penal nos últimos cinco anos;
  5. A contrário senso do §2º acima, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, indicarem serem necessárias e suficiente;
  6. Formulação de proposta por parte do Ministério Público;
  7. Aceitação da proposta formulada por parte do agente e do seu defensor.

Malgrado a previsão legal acima, mister se faz a alusão das seguintes modificações sociais, legais, doutrinárias e jurisprudenciais recentes.

Primeiramente, no que concerne às infrações penais de menor potencial ofensivo, o artigo 61 da Lei n. 9.099/1.995, previa em sua redação original que eram as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima privativa de liberdade não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial. Contudo, com a advinda da Lei n. 10.259/2.001, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, mais precisamente em seu artigo 2º, houve a aplicação da analogia in bonam partem e ampliação dos delitos de menor potencial ofensivo aos crimes em que a lei comine pena máxima privativa de liberdade não superior a dois anos, independentemente se prevejam ou não procedimento especial.

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Destarte, visando pacificar o tema, conforme já dito neste trabalho, o legislador infraconstitucional editou a Lei n. 11.313, de 28 de junho de 2.006, alterando o artigo 61 da Lei n. 9.099/1.995 e redefininindo o conceito de delitos de menor potencial ofensivo para aqueles cuja pena não exceda a dois anos, cumulada ou não com multa, independente se são de procedimento especial ou não, conciliando com a situação criada pela Lei n. 10.259/2.001 dos Juizados Especiais Criminais Federais.

Quanto ao pressuposto de ser cabível a transação penal quando não for o caso de arquivamento do termo circunstanciado, está de amparo com a Constituição da República, por uma visão extensiva dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, como a possibilidade do habeas corpus, o relaxamento da prisão ilegal, a inexistência de pena sem prévia cominação legal, entre outros, bem como corroborado com os direitos estabelecidos no Pacto de São José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil pelo Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1.992.

Neste sentido, preceitua Rangel (2.004, p. 209):

[...] o Ministério Público deve propor ação penal pública sempre que estiver com um fato típico, ilícito e culpável nas mãos, devidamente comprovado ou com elementos que autorizem a iniciar a persecução penal. Pois a obrigatoriedade da ação penal é uma exigência lógica do aforismo de os delitos não podem ficar impunes (nec delicta maneant impunita).

A Lei Maior de 1.988 ao atribuir ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (artigo 127, caput), não autoriza que o Parquet promova uma ação penal, por exemplo, sem justa causa, neste caso, deverá o juiz rejeitá-la, acionando assim, a medida de freios e contrapesos.

O §2º, inciso I, do artigo 76 da Lei n. 9.099/95 emerge uma dúvida ao estabelecer que não se admitirá a proposta de transação penal se ficar comprovado ter sido o autor da infração penal condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva.

Quanto à exigência da não condenação por sentença definitiva, não se insere nenhuma dúvida sobre a constitucionalidade da lei em exigir que o réu não deve ter sido condenado por sentença transitada em julgado, até mesmo para tornar-se consútil com o art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República[7].

Entretanto, o fato controvertido segue-se que, pela simples leitura e interpretação literal da norma legal, certifica-se que uma condenação transitada em julgado culmina com a impossibilidade, para sempre, do condenado vier a se beneficiar futuramente com a transação penal, tanto é que se o legislador quisesse estabelecer prazo, teria feito como no inciso II do referido §2º (cinco anos).

Contudo, o aplicador do direito deve analisar a norma em consonância com o ordenamento jurídico.

O artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1.942) prevê que, “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigência do bem comum”.

Além do mais, o legislador, no artigo 92 da Lei n. 9.099/1.995 assevera que “aplicam-se subsidiariamente as disposições dos Códigos Penal e de Processo Penal, no que não forem incompatíveis com esta lei”.

Neste caso, a solução mais coerente seria a integração do §2º, inciso I, do artigo 76, da Lei n. 9.099/1.995, com o artigo 64, inciso I, do Código Penal, em que,

para o efeito de reincidência, não prevalece a condenação anterior, se entre a data o cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação. (BRASIL, 2.014f).

Concluindo, pelo exposto, é perfeitamente viável, desde que atendido os demais requisitos, a aplicação do benefício da transação penal a uma pessoa que já tenha sido condenada e já tenha extinta a sua pena há mais de cinco anos.

O legislador, ao estabelecer no §2º, inciso II, do artigo 76 da Lei n. 9.099/1.995 que não se admitirá a proposta se ficar comprovado ter o agente feito uso deste benefício anteriormente, pelo prazo de cinco anos, colocou, a contrário senso, mais de um pressuposto para a obtenção do referido instituto, fazendo de modo outorgado pela Lei Maior, portanto, em tal dispositivo legal não há em que se falar em inconstitucionalidade, nos termos do artigo 98, inciso I, da Constituição da República.

Quanto à não admissão da transação penal quando os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem com o os motivos e as circunstâncias não forem suficientes e necessárias à obtenção da medida (artigo 76, §2º, inciso III, da Lei n. 9.099/1.995), o representante do Ministério Público deve redobrar a cautela e estar totalmente convencido de que tal benefício não será eficaz àquele agente, pois, segundo Rangel (2.004, p. 270):

[...] a proposta de transação penal é direito subjetivo do autor do fato e, uma vez preenchidas as formalidades legais para a obtenção da medida despenalizadora, surge para o Ministério Público o poder-dever de fazê-la. Caso contrário, deixando de fazer o que a lei manda, o juiz aplica o art. 28 do CPP, analogicamente.

O artigo 76 da Lei n. 9.099/1.995 descreve tacitamente, também, que a formulação da proposta deve partir por parte do representante do Ministério Público, do mesmo modo que descreve que a transação penal só é cabível na ação penal pública incondicionada e na ação penal pública condicionada à representação, neste último caso, desde que haja a representação do ofendido ou de seu representante legal. Deixa-se para analisar melhor esta questão quanto tratarmos da transação penal na ação penal privada, adiante.

E, finalmente, o último pressuposto elencado no §3º do art. 76 da Lei n. 9.099/1.995, assevera que a proposta deve ser aceita pelo autor da infração e seu defensor.

A norma legal, ao estabelecer a dupla aceitação, coloca um encalço ao Poder Judiciário e ao Ministério Público quando a proposta é aceita apenas pelo infrator, ou apenas pelo seu defensor.

Neste caso, deverá o juiz rejeitar a homologação da transação por expressa disposição legal? Deverá se valer da manifestação do infrator, pois, será ele quem cumprirá ou não a medida e ainda, se este pode desconstituir o seu defensor a qualquer momento, também poderá ir contra a assistência técnica? Ou o juiz deverá sempre ir aos anseios do defensor, por ser este dotado de capacidade técnica e saber o que é mais favorável ao seu cliente?

Sobre o assunto, Grinover e outros (2.002, p. 153):

Se houver conflito entre a vontade do autor do fato e de seu advogado, o juiz deverá, antes de mais nada, usando de bom senso e equilíbrio, tentar solucioná-lo. Mas, se não houver mesmo consenso, pensamos que deve prevalecer a vontade do envolvido, desde que devidamente esclarecido das consequências da aceitação. Só a ele cabe a última palavra quanto à preferência pelo processo ou pela imediata submissão à pena, que evita as agruras de responder em juízo à acusação para lograr um resultado que é sempre incerto.

Portanto, a solução mais adequada, data venia aos que assim não entendem, parece-nos que é a vinculação da homologação da proposta corroborada com a anuência ou não do infrator, independente de seu advogado, consoante posicionamento acima, pois, se ele pode o mais, desconstituir o seu defensor, também poderá o menos, aceitar a proposta, uma vez que, por exemplo, se ele aceitar a proposta e seu defensor não, e o juiz a homologar, caberá ao beneficiado a faculdade do cumprimento ou não da medida.

2.3 A TRANSAÇÃO PENAL NA AÇÃO PENAL PRIVADA

Conforme já abordado anteriormente, por uma interpretação literal do artigo 76, caput, da Lei n. 9.099/1.995, conclui-se pela impossibilidade da transação penal na ação penal privada, in verbis:

Art. 76. Havendo representação, ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, a ser especificada na proposta.

Contudo, o instituto vem sofrendo modificações doutrinárias e jurisprudenciais, conforme descrito neste trabalho.

O artigo 76 acima descrito, ao asseverar que o Ministério Público “poderá propor”, não condiz em sua faculdade, mas sim um dever, pois, conforme ensina Maximiliano (1.998, 270-271):

Em geral o vocábulo “pode” [...] dá ideia de ser o preceito em que se encontra, meramente permissivo, ou diretório, como se diz no Estados Unidos; e “deve” [...] indica uma regra imperativa.

Entretanto, estas palavras, sobretudo as primeiras, nem sempre se entendem na acepção ordinária. Se, ao invés do processo, filosófico de exegese, alguém recorrer ao sistemático e ao teleológico, atinge, às vezes, resultado diferente: desaparece a antinomia verbal, pode assume as proporções e o efeito de dever. Assim acontece quando um dispositivo, embora redigido de modo que traduz, na aparência, o intuito de permitir, autorizar, possibilitar, envolve a defesa contra males irreparáveis, a prevenção relativa a violações de direitos adquiridos, ou a outorga de atribuições importantes para proteger o interesse público ou a franquia individual. Pouco importa que a competência ou autoridade seja conferida, direta, ou indiretamente; em forma positiva, ou negativa: o efeito é o mesmo; os valores jurídico-sociais conduzem a fazer o poder redundar em dever, sem embargo do elemento gramatical em contrário.

Assim, caso o representante do Ministério Público se oponha ao oferecimento da transação penal, o juiz deverá aplicar analogicamente o artigo 28 do Código de Processo Penal[8] e remeter o feito ao Procurador-Geral de Justiça, para que este ofereça a proposta, delegue atribuição a outro promotor para oferecê-la em seu nome ou insista no não oferecimento de proposta.

Sobre o assunto, o Supremo Tribunal Federal publicou a Súmula n. 696, em que:

Súmula n. 696 do STF: Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o artigo 28 do Código de Processo Penal. (BRASIL, 2.014c).

Neste sentido, apesar da referida súmula se referir à suspensão condicional do processo, o artigo 89, caput, da Lei n. 9.099/1.995 também dá a ideia de faculdade do Ministério Público em propor tal medida, pois, traz a palavra “poderá”, in verbis:

Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a 1 (um) ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão condicional do processo, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do CP). (BRASIL, 2.014b).

Destarte, como ocorre no sursis processual, semelhantemente acontece na transação penal, ou seja, ambos os institutos são direitos subjetivos do infrator, devendo ser propostos ao beneficiário, desde que preenchidos os demais requisitos legais (artigo 76, §2º, da Lei n. 9.099/1.995 para a transação penal e artigo 89 e parágrafos para a suspensão condicional do processo).

É essa a doutrina esculpida no Enunciado n. 86 do XXI Encontro do FONAJE (Fórum Nacional de Juizados Especiais) realizado na cidade de Vitória, Estado do Espírito Santo, no qual, “em caso de não oferecimento de proposta de transação penal ou de suspensão condicional do processo pelo Ministério Público, aplica-se, por analogia, o disposto no art. 28 do CPP” (BRASIL, 2.014d).

Mais, voltando ao estudo do tópico em questão, a circunstância de a lei mencionar unicamente a ação penal pública impõe a conclusão que o legislador quis, com isso, afastar a ação penal privada.

A exegese literal da norma é bastante clara e tentadora, mas não nos parecer coadunar-se com os princípios e objetivos esculpidos no artigo 62 do mesmo diploma legal e, tão pouco, se amolda à lógica que rege a atuação do particular como substituto processual do Estado.

Art. 62. O processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade. (BRASIL, 2.014b).

Se o ofendido ou seu representante legal pode o mais, como optar pelo oferecimento ou não da queixa, ou ainda, quando já instaurada a ação penal, poderá desistir dela, ou deixá-la perempta, ou perdoar o réu, também poderá o menos, ou seja, coadunar com a oferta por parte do Parquet da transação penal ao seu ofensor, logicamente, desde que presentes os demais requisitos concernentes à espécie.

Utilizando-se do já citado artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, é perfeitamente viável a analogia in bonam partem.

Grinover e outros (2.002, p. 141), ao abordarem o tema, aludem que:

A vítima, que viu frustrado o acordo civil do art. 74, quase certamente oferecerá a queixa, se nenhuma outra alternativa lhe for oferecida. Mas, se pode o mais, por que não poderia o menos? Talvez sua satisfação, no âmbito penal se reduza à imposição imediata de uma pena restritiva de direitos ou multa, e não se veem razões válidas para obstar-se-lhe a via da transação que, se aceita pelo autuado, será mais benéfica também para este. Dentro dessa postura, é possível ao juiz aplicar por analogia o disposto na primeira parte do artigo 76, para que também incida nos casos de queixa, valendo lembrar que se trata de norma prevalentemente penal e mais benéfica.

Uma medida correta que deveria ser tomada nos Juizados Especiais Criminais, em se tratando de ação penal privada de menor potencial ofensivo, é conceder a faculdade à vítima, ou seu representante legal, para ela oferecer a proposta de transação penal ao seu agressor, atuando ela (vítima) como substituto processual do Ministério Público.

A vítima negando ao oferecimento, e tendo em vista a medida ser um direito subjetivo do ofensor, faz extinguir a substituição processual e passa-se ao Ministério Público, mesmo na ação penal privada, o direito subjetivo ao oferecimento da proposta. Frisa-se que esta é uma posição particular do autor deste artigo e que não é majoritária.

A posição que se segue é pela possibilidade do cabimento da transação penal na ação penal privada, entretanto, cabendo a sua propositura ao Parquet. Sobre o assunto, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu o seguinte:

RHC. JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS. COMPETÊNCIA. CRIME DE DIFAMAÇÃO. AÇÃO PENAL DE INICIATIVA PRIVADA. PROPOSTA DE TRANSAÇÃO. MINISTÉRIO PÚBLICO. POSSIBILIDADE. 1 – A teor do disposto nos artigos 519 usque 523, do Código de Processo Penal, o crime de difamação, do art. 139 do Código Penal, para o qual não está previsto procedimento especial, submete-se à competência dos Juizados Especiais Criminais. 2 – Na ação penal de iniciativa privada, desde que não haja formal oposição do querelante, o Ministério Público poderá, validamente, formular proposta de transação que, uma vez aceita pelo querelado e homologada pelo Juiz, é definitiva e irretratável. 3 – Recurso improvido. (BRASIL, 1.999a).

Cabe ressaltar que no supracitado julgado, por ser anterior à Lei n. 10.259/2.001, há correlata aplicação no teor do artigo 61 da Lei n. 9.099/1.995, antes da modificação trazida pela Lei n. 11.313/2.006, ou seja, cabe a transação penal para as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.

E ainda, o julgado coloca que não deve haver oposição do querelante para a aplicação do benefício, entretanto, com a devida vênia, esse não deve ser o entendimento a prosperar, por se tratar de um direito subjetivo do réu, conforme sustentado acima.

Por fim, sobre o tema, é importante citar a doutrina do Enunciado n. 112 do XXVII Encontro do FONAJE (Fórum Nacional de Juizados Especiais) realizado na cidade de Palmas, Estado do Tocantins, em que “na ação penal de iniciativa privada, cabem transação penal e a suspensão condicional do processo, mediante proposta do Ministério Público” (BRASIL, 2.014d).

2.4 CONSEQUÊNCIAS DO DESCUMPRIMENTO DA MEDIDA

Proposta a medida, aceita e homologada pelo juiz, caberá ao beneficiário cumprir o acordo realizado. Mas, e se ele não cumprir?

Como não é diferente do que já exposto, aqui também há divergências doutrinárias e jurisprudenciais, desta vez, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, no que concerne à natureza jurídica da decisão homologatória da transação penal.

Há julgados que consideram a natureza jurídica desta decisão como condenatória, contudo, sem produzir os efeitos de inserir o nome do réu no rol dos culpados e nos registros criminais, bem como de gerar reincidência e perda dos objetos[9].

Em resumo esses julgados asseveram que a transação penal se trata, na verdade, de uma conciliação, sendo que, de acordo com a tradição do direito brasileiro, sempre que as partes transigirem, pondo fim à relação processual, a decisão judicial legitima jurisdicionalmente essa convergência de vontades, tendo, portanto, caráter homologatório, jamais condenatório, de tal sorte que se estaria diante de uma sentença declaratória constitutiva.

O Supremo Tribunal Federal entendia que a transação penal é anterior à ação penal e, por consequência, não pode ser uma ação penal. Trata-se de uma hipótese de conciliação pré-processual, que fica preclusa com o oferecimento da denúncia (BRASIL, 1.998).

Nesse mesmo sentido, passamos a citação de outro julgado do Supremo Tribunal Federal: “Transação penal descumprida – Conversão de pena restritiva de direitos em privativa de liberdade – Ofensa aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório – Precedentes: RE n. 268.320 e HC n. 79.572” (BRASIL, 2.001b).

Já o Superior Tribunal de Justiça asseverava que a sentença homologatória da transação penal gera a eficácia de coisa julgada formal e material, impedindo, mesmo no caso de descumprimento do acordo pelo autor do fato, a instauração da ação penal. Havendo transação penal homologada e aplicada pena de multa, não sendo paga esta, impõe-se aplicação conjugada do artigo 85 da Lei n. 9.099/1.995 com o artigo 51 do Código Penal, com a consequente inscrição como dívida ativa da Fazenda Pública, a fim de ser executada pelas vias próprias (BRASIL, 1.999b).

Portanto, o Superior Tribunal de Justiça entendia que a decisão homologatória da transação penal é de natureza condenatória.

Rangel (2.004, p. 272-273) ao comentar a antiga contradição existente entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça discorria, em crítica negativa a este último que:

Por quê contradição? Simplesmente porque diz ser condenatória a decisão proferida onde não existe ação penal. Até porque, diz expressamente, que, se houve transação penal, impedido está o oferecimento de denúncia. Ora, e se não houve denúncia, não há ação penal. E, em não havendo ação penal, não pode haver sentença condenatória gerando eficácia de coisa julgada formal e material. Ou seja, surge na voz do Superior Tribunal de Justiça uma nova decisão: aquela proferida no termo circunstanciado (procedimento administrativo) onde não há partes, pedido e causa de pedir, porém que gera coisa julgada formal e material. [...] Ora, como fazer coisa julgada material a decisão proferida em um procedimento administrativo? Como fazer coisa julgada material a decisão proferida onde não há ação penal? Parece-nos que a decisão está em desacordo com as regras básicas da teoria geral do processo.

Já o entendimento da doutrina do Fórum Nacional de Juizados Especiais consolidada no Enunciado n. 79, realizado no XIX Encontro de Aracaju, Estado do Sergipe, assevera que depende do termo da transação. Se houver previsão expressa de cláusula resolutiva em caso de descumprimento o Parquet poderá dar prosseguimento ao feito, com a denúncia do acusado, entretanto, se não houver essa cláusula o oferecimento da denúncia é incabível.

Enunciado n. 79 (Substitui o Enunciado 14), FONAJE. É incabível o oferecimento de denúncia após sentença homologatória de transação penal em que não haja cláusula resolutiva expressa, podendo constar da proposta que a sua homologação fica condicionada ao prévio cumprimento do avençado. O descumprimento, no caso de não homologação, poderá ensejar o prosseguimento do feito (XIX Encontro – Aracaju/SE). (BRASIL, 2.014d).

Destarte, parece-nos mais condizente afirmar que descumprida a medida acordada entre o Ministério Público e o beneficiário não resta alternativa ao Parquet senão dar prosseguimento à ação penal pelo rito sumaríssimo da Lei n. 9.099/1.995, com a consequente denúncia do ofensor até decisão final, data venia, independentemente da previsão de cláusula resolutiva ou não.

Sobre o assunto, recentemente, o Supremo Tribunal Federal, nos autos de Recurso Extraordinário de Repercussão Geral, tentando pôr fim a essa calorosa divergência, entendeu pela possibilidade de oferecimento da denúncia por parte do Ministério Público em caso de descumprimento da medida de transação penal, in verbis:

AÇÃO PENAL. Juizados Especiais Criminais. Transação penal. Art. 76 da Lei n. 9.099/1.995. Condições não cumpridas. Propositura de ação penal. Possibilidade. Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida. Recurso extraordinário improvido. Aplicação do art. 543-B, § 3º, do CPC. Não fere os preceitos constitucionais a propositura de ação penal em decorrência do não cumprimento das condições estabelecidas em transação penal. (BRASIL, 2.009).

Coligado a esta decisão, o Superior Tribunal de Justiça tem firmado jurisprudência nesse sentido, visando a uniformização do entendimento nos tribunais superiores, conforme se extrai do seguinte julgado:

habeas corpus SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. DESCABIMENTO. TRANSAÇÃO PENAL. SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA. DESCUMPRIMENTO DAS CONDIÇÕES. PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO PENAL. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. - Este Superior Tribunal de Justiça, na esteira do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, tem amoldado o cabimento do remédio heroico, adotando orientação no sentido de não mais admitir habeas corpus substitutivo de recurso ordinário/especial. Contudo, a luz dos princípios constitucionais, sobretudo o do devido processo legal e da ampla defesa, tem-se analisado as questões suscitadas na exordial a fim de se verificar a existência de constrangimento ilegal para, se for o caso, deferir-se a ordem de ofício. - O plenário do Supremo Tribunal Federal, reconhecendo a repercussão geral do tema, decidiu, no RE n. 602.072/RS, que “não fere os preceitos constitucionais a propositura de ação penal em decorrência do não cumprimento das condições estabelecidas em transação penal”. - Esta Corte Superior, por sua vez, cumprindo sua função de uniformização da jurisprudência, passou a adotar tal posicionamento, entendendo que o descumprimento as condições impostas na transação penal prevista no art. 76 da Lei n. 9.099/1.995 acarreta o prosseguimento da ação penal, vez que a sentença homologatória da referida transação não faz coisa julgada material. Habeas corpus não conhecido. (BRASIL, 2.013).

Ressalta-se, por fim, que a decisão que homologa a transação penal não possui o condão de suspender ou interromper a prescrição, ante a falta de previsão legal a respeito, portanto, não se admitindo a analogia em desfavor do réu, além do que, se realmente fosse a intenção do legislador a interrupção ou suspensão da prescrição, haveria um parágrafo no artigo 76 da Lei n. 9.099/1.995 asseverando textualmente a respeito, como fez em relação à suspensão condicional do processo (artigo 89, §6º), sendo esta a orientação do Enunciado n. 44 do FONAJE (Fórum Nacional de Juizados Especiais), o qual assevera que “no caso de transação penal homologada e não cumprida, o decurso do prazo prescricional provoca a declaração de extinção de punibilidade pela prescrição da pretensão executória” (BRASIL, 2.014d).

Sobre o autor
Fábio Henrique Curan

Advogado e servidor público municipal, ocupante do cargo de advogado da Prefeitura do Município de Jaboti/PR. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR, graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e mestrando em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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