Breves apontamentos sobre o sistema processual como instrumento de implementação do direito fundamental à tutela jurisdicional adequada e efetiva

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18/11/2014 às 15:29
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Serão delineados os traços gerais de uma concepção do sistema processual como instrumento para implementação do direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva, revisitando os institutos fundamentais do direito processual.

1. Introdução

No presente trabalho buscar-se-ão apontar, em esboço bastante sucinto, os traços gerais de uma concepção do sistema processual como instrumento para implementação do direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva, revisitando os institutos fundamentais do direito processual, tendo em vista elucidar a função que aqueles ritos cumprem no sistema processual civil brasileiro.

Para tanto, inicialmente far-se-ão algumas observações prévias, necessárias à indicação dos critérios terminológicos acolhidos e os conceitos adotados. Em seguida, tentar-se-á tecer algumas considerações sobre os pressupostos metodológicos e fundamentos teóricos do processo enquanto mecanismos para se conferir eficácia ao direito fundamental à tutela jurisdicional adequada.

2. Os institutos fundamentais do processo – esclarecimentos terminológicos

Antes de tudo, convém fazer algumas observações que dizem com o uso dos conceitos básicos da ciência do direito processual civil, pelo menos lançando algumas reflexões sobre o uso dos termos ação, processo e procedimento. (Sobre a jurisdição se reservará tópico específico, mencionando-se a questão em torno de seu escopo jurídico).

Primeiramente, veja-se o termo “ação”. Ele tem sido empregado em uma variedade de acepções tal que hostiliza a precisão terminológica. É importante apurar o emprego do termo, porque no Título I do Livro IV do Código de Processo Civil, os diversos procedimentos especiais são designados pelo epíteto “ação”.

Como bem lembrado por Adroaldo Furtado Fabrício[1], já se pretendeu que o termo pudesse assumir validamente quatro acepções, cada uma delas empregada sob uma perspectiva própria. Segundo os cânones lógicos da escolástica, se poderia abordar um conceito por quatro ângulos: objetivo, subjetivo, material e formal.

Assim, aplicando-se à ação, se diria que o conceito teve seu aspecto subjetivo valorizado quando aparece no contexto como direito subjetivo abstrato. Porém, na perspectiva de causa final, se “ação” aparece como meio ou remédio com que se busca um provimento jurisdicional, então se tem o termo sob o ângulo objetivo. O aspecto formal seria ressaltado com o emprego da palavra “ação” como sinônimo de “demanda” ou de “pleito”. E, finalmente, o prisma formal do termo é visualizado quando ele é empregado como sinônimo de processo (conjunto coordenado de atos conectados pela teleológica da solução do conflito).

Importa distinguir as acepções em que se emprega o termo “ação” para lembrar que a terminologia processualista mais rigorosa reserva a palavra para designar “o direito autônomo de agir em face do Estado-juiz a fim de pôr em movimento o aparelho judiciário relativamente a determinada situação jurídica concreta”[2]. Contudo, porque acolhida ao longo do Título I do Livro IV do Código de Processo Civil[3], é aceitável o uso do termo “ação” significando causa final (enfoque objetivo), no sentido de meio ou remédio pelo qual se procura a proteção, pelo Estado, de um direito. Porém, o conceito de ação como remédio não deve ser confundido com o de pretensão de direito material. Vista sob esta perspectiva objetiva, é pela ação que se intenta alcançar o bem da vida pretendido.

Se não é perfeita neste ponto, a terminologia do Código é impecável quando anuncia na epígrafe do livro referido que ali se disciplinará “procedimentos”. Efetivamente, processo é o nome que se dá ao complexo de atos que se interligam sob a orientação de um vetor comum que os conduz no sentido da solução do litígio. Processo é, sim, uma relação jurídica, na qual se praticam atos encadeados sucessivamente e em contraditório, tendo em vista a prestação, pelo Estado, de uma tutela jurisdicional efetiva. Dinamarco, em fórmula singela, porém precisa, diz que processo é igual a procedimento + relação jurídica + tutela jurisdicional.

De outro lado, “procedimento”[4] se refere à forma, ordem, disposição relativa, quantidade e substância (ou natureza) de tais atos. Em conjunto, estas variáveis resultam em uma feição que pode ser mais ou menos adequada à obtenção de um certo provimento jurisdicional que se deseje. Assim, de acordo com suas necessidades particulares, cada gênero de situações jurisdicizadas da vida exige um diferenciado procedimento. (E se fala em “situação jurisdicizada da vida” porque as pesquisas recentes de direito processual já assentaram que não só os conflitos são passíveis de serem submetidos à jurisdição ou outra manifestação de poder jurídico).[5]

Bem ao contrário do que possam dizer alguns, tal distinção não é mera formalidade. Até porque foi adotada pelo Código, o qual, o Título II do Livro IV disciplina o que se tem denominado “jurisdição voluntária”, fazendo-o sem referir a processo, usando apenas o termo “procedimento”. Realmente, sem partes nem contraditório, na jurisdição voluntária não há processo, rigorosamente. Deve-se, pois, ter em mente que, quando o Código disciplina a forma de proceder não está necessariamente regendo processo, porquanto este pressupõe procedimento em contraditório. Trata-se, também no caso da jurisdição voluntária, de procedimento.[6]

3. O procedimento – mais especificamente

A técnica legislativa processual manda que se elabore um modelo básico ou tido padrão de procedimento, a ser aplicado à generalidade das situações. É com base nele que se compõem outros procedimentos, promovendo variações (que podem ser por supressão, acréscimo ou modificação) nos atos, para que se obtenha uma ritualística mais adequada à discussão das pretensões deduzidas, bem como ao provimento da tutela jurisdicional.

Este procedimento modelo ou padrão cumpre, pois, pelo menos quatro funções:

  • atende às pretensões jurisdicionais mais freqüentes ;
  • serve de “matéria-prima” sobre a qual se vai lapidando procedimentos particulares;
  • pode acolher, a partir de certo momento, um processo que outrora se desenvolvia segundo um procedimento especial;
  • serve de referencial para a disciplina dos procedimentos especiais naquilo em que o regramento destes for omisso.

Fica claro, portanto, que, do atual procedimento ordinário, podem derivar vários ritos, com diversos graus de sumariedade (aqui o termo não assume a acepção utilizada pelo Código). Neste sentido, preleciona Adroaldo Fabrício Furtado:

“Ao lado do procedimento ordinário ou comum (desconsiderada, neste passo, a terminologia do CPC, para tratamento do tema de lege ferenda), pode-se construir um sumário, ou mais de um, com diferentes graus de sumariedade. Busca-se atender, por essa via, a que, de um lado, em determinadas situações, a própria cognição é sumária, limitada ou provisória, podendo-se por isso dispensar solenidades, abreviar prazos e restringir atuações das partes (sumário substancial); ou, em outra vertente, a que a urgência da prestação jurisdicional em certas causas, a simplicidade real ou presumida de algumas ou a modesta expressão econômica e jurídica de outras apresentam-nas ao espírito do legislador como incompatíveis com a lenta, solene e onerosa tramitação ordinária (sumário formal)”.[7]

Sob esta perspectiva, é possível concluir que, a rigor, no seu sentido mais amplo, a expressão “procedimentos especiais” abarca todo procedimento construído por derivação a partir do rito ordinário básico. Porém, o mais freqüente é que se empregue a locução para designar procedimentos construídos específica e individualizadamente para a discussão de certas pretensões. Seria a feição diferenciada de certos direitos que requereria um procedimento adaptado para sua eficiente dedução frente ao poder estatal.[8]

4. Pressupostos metodológicos de um direito processual provedor de tutela adequada[9]

Até metade do século XIX, vigorava uma perspectiva metodológica sincrética que tinha uma visão plana do Ordenamento Jurídico, ignorando a existência de dois planos deste: um material e outro processual. Como conseqüência, tinha-se a seguinte concepção dos institutos do chamado “direito judiciário civil” (mera procédure):

  • Ação – direito subjetivo lesado, incluído no sistema de exercício dos direitos;
  • Jurisdição – simples sistema de tutela aos direitos;
  • Processo – mera sucessão de atos (procedimento), conjunto de formas para o exercício dos direitos; dada a força do liberalismo, prevalecia o princípio dispositivo.

Porém, como já foi dito, a partir de meados do século XIX, as alterações políticas e sociais ocorridas no século anterior começaram a provocar mudanças na relação entre o Estado e o indivíduo, iniciando-se um fenômeno de acréscimo de novos encargos às velhas responsabilidades daquele perante este. Isto repercutiu no direito com o início da ruína do sincretismo jurídico.

Os primeiros questionamentos se dirigiram à ação. Bernhard Windscheid, em obra clássica, contestou o paralelo entre a ação moderna e a actio romana. Segundo ele, enquanto a ação moderna é um direito à tutela jurídica, a actio seria análoga ao que hoje se denomina pretensão (faculdade de impor a própria vontade por via judiciária). Ademais, enquanto a actio teria por objeto o próprio bem litigioso, a ação atual tem por objeto a prestação jurisdicional. Assim, enquanto a actio se dirigia à parte contrária, a ação de hoje se dirige ao juiz.

Embora Theodor Muter haja contradito agressivamente tais idéias de Windscheid, afirmando que também em Roma o direito tinha prioridade frente à actio, tal polêmica é tida como o marco inicial do inconformismo do jurista moderno com as colocações do sincretismo. Desde então, iniciou-se todo um movimento de conformação do direito processual ao novo arranjo político-social, na tentativa de contextualizá-lo adequadamente às novas concepções filosóficas. Era a fase autonomista ou conceptualista.

Pode-se considerar que a primeira repercussão haja sido a tomada de consciência da autonomia da relação jurídica processual, diversa da relação de direito material, por apresentar configuração tríplice, bem como pelos seus sujeitos, seus pressuposto, seu objeto. Esta idéia da configuração tríplice da relação jurídica processual foi desenvolvida e racionalizada por Von Büllow. Embora ele não tenha sido propriamente o criador da idéia, posto que tal fato já havia sido constatado anteriormente, atribui-se a ele o mérito de haver destacado pioneiramente os dois planos do Ordenamento Jurídico (o processual do material), baseando-se na idéia de que as relações jurídicas de direito privado e as relações de direito processual são realidades distintas.

Com a aceitação da autonomia da ação e do processo, se propôs a distinção de uma ciência processual, com métodos próprios. Intensificaram-se, então, as pesquisas em torno dos institutos do direito processual (antes tidos como de direito privado – ação – ou de direito constitucional – a jurisdição), desenvolvendo-os como autônomos, elaborando sofisticadas construções conceituais, chegando ao extremo de afirmar o caráter abstrato da ação, radicalizando a proclamação de sua autonomia. A dogmática processual e sua técnica atingiram níveis elevados, revelando os institutos e as relações entre eles.

Com o tempo, a estrutura sistemática do direito processual foi sendo edificada até o ponto de maturidade satisfatório a partir do qual os diversos sistemas e famílias do direito ocidental passaram a compartilhar idéias comuns, tais como: a autonomia do direito processual e seus institutos, a necessidade de se assegurar o due processo of law, o juiz natural, o contraditório e a ampla defesa, bem como a maior participação do juiz no processo, a efetividade deste e a ampliação do acesso à justiça. Isto tudo sem falar no reconhecimento de “princípios formativos” (ou informativos) e na necessidade de aplicá-los. Todos são fatores significativos que indicam a universalização da ciência do direito processual.

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Pela relevância do tema, cabe aqui breve esclarecimento sobre os princípios formativos (ou informativos) do direito processual. Seriam “normas ideais que representam uma aspiração de melhoria do aparelho processual”, distintas dos princípios gerais, a eles influenciando indiretamente. São eles:

  • Princípio Lógico – seleção dos meios mais eficazes e rápidos de procurar e descobrir a verdade e de evitar o erro;
  • Princípio Jurídico – igualdade no processo e justiça na decisão;
  • Princípio Político – o máximo de garantia social, com o mínimo de sacrifício individual da liberdade;
  • Princípio Econômico – processo acessível a todos, com os menores custos e a menor duração possíveis.

Tais normas ideais imprimem uma ideologia comum mesmo a ordenamentos de diferentes sistemas e famílias jurídicas, determinando uma tendência centrípeta de unificação. Segundo Dinamarco, “eles constituem em cada sistema, instrumento técnico de imposição das opções sócio-políticas consubstanciadas nos princípios gerais, ou fundamentais adotados”.

Foi a partir da percepção de tal maturidade conceitual que se passou a propor uma nova “virada metodológica” nas grandes premissas fundamentais da ciência processual. Rejeita-se a postura de investigação metafísica dos conceitos, sob uma perspectiva meramente interna, indiferente às circunstâncias sócio-políticas do contexto histórico. O novo momento caracteriza-se por uma pesquisa orientada teleologicamente à resolução dos problemas do sistema processual, visto este agora de um ãngulo também externo (e não mais apenas interno), tendo a sua instrumentalidade[10] como importantíssimo pólo de irradiação de idéias e coordenador dos [seus] institutos, princípios e soluções”. Estas novas premissas metodológicas dão ênfase toda especial à conotação deontológica do direito processual, abrindo-o ao sistema axiológico consagrado constitucionalmente, considerando o universo dos valores que a nação (enquanto sociedade políticamente organizada) pretende realizar. Assim, a natureza e o objetivo puramente técnicos do processo são relativizados em nome de maior permeabilidade do sistema aos valores tutelados político-constitucionalmente e jurídico-materialmente. Passa-se, portanto, a reconhecer que o direito processual não existe isolado do contexto social, mas está inserido no universo axiológico da sociedade a que se destina, devendo efetivar tais valores. Esta postura instrumentalista seria “a porta mestra, através da qual a ideologia penetra no processo” (Mauro Cappelletti). Constitui mesmo a premissa de defesa da concretização dos princípios processuais, tendo sido adotada pelo Constituinte e pelo legislador (nos últimos anos), devendo ser também adotada pelo intérprete do direito (advogados, juízes, etc...).

5. Jurisdição no Estado contemporâneo e direito fundamental à tutela jurisdicional adequada

Uma vez assentadas as premissas metodológicas do moderno processo civil, cabe tentar demonstrar as bases do direito fundamental à tutela jurisdicional. No intuito de impregnar a dogmática processualista de todas as elaborações expostas no tópico anterior, Marinoni renova o convite que Dinamarco já fazia em 1987, ao apresentar sua tese de Livre-Docência: reformular cada um dos institutos fundamentais do direito processual para emprestar ao sistema uma configuração mais consentânea com as exigências do mundo contemporâneo. É, portanto, neste sentido que, em arroubo de ousadia, Marinoni declara a audaciosa proposta:

“Se as teorias da jurisdição constituem espelhos dos valores e das idéias das épocas e, assim, não podem ser ditas equivocadas – uma vez que isso seria um erro derivado de uma falsa compreensão de história –, certamente devem ser deixadas de lado quando não mais revelam a função exercida pelo juiz. Isso significa que as teorias de Chiovenda e Carnelutti, se não podem ser contestadas em sua lógica, certamente não têm – nem poderiam ter – mais relação alguma com a realidade do Estado contemporâneo[11]. Por isso, são importantes apenas quando se faz uma abordagem crítica do direito atual a partir da sua análise histórica, isto é, da abordagem da sua relação com os valores e concepções do instante em que foram construídas”.[12]

Nesse contexto, Marinoni faz relevantes apontamentos críticos acerca da jurisdição no Estado contemporâneo, sob os influxos do movimento que alguns têm denominado de neoconstitucionalismo[13]. Como se sabe, os processualistas divergem no que tange à opção do instituto fundamental de direito processual que deve ocupar o eixo da Teoria Geral do Processo, pelo menos tendo em vista questões metodológicas. Pois bem, Marinoni elege a jurisdição como o instituto central de sua Teoria Geral do Processo. Assim, cabe trazer as conclusões que extrai de seus estudos.

Para Marinoni, as teorias que tocavam ao juiz a função de declarar o direito ou de criar a norma individual (pelo menos em suas versões puras), foram formuladas a partir de uma submissão ao princípio da supremacia da lei (e não da Constituição) e a um positivismo acrítico[14]. Para o referido autor, elas não se adequam a um positivismo inclusivo.

Ora, no Estado constitucional contemporâneo o juiz tem até mesmo o dever de exercer o controle de constitucionalidade da lei e demais atos normativos. Deve inclusive, se possível, atribuir-lhes um sentido adequado à Carta Magna, de modo a evitar o afastamento de sua aplicação ou a sua exclusão do ordenamento. Além disso, pode também suprir a omissão legislativa que obste o exercício de um direito fundamental. (Exemplo disto é a nova postura do STF, o qual, em sede de mandado de injunção, determinou a aplicação analógica da legislação de greve no setor privado ao setor público, em razão de falta de lei regulamentadora do dispositivo constitucional que institui tal direito social).

Então, o juiz não apenas declara a lei ou cria a norma individual. Porém, também não se pode chegar à afirmação de que o juiz cria o direito, entendido como conjunto de normas. Nada obstante, é correto afirmar que o juiz cria pelo menos a norma jurídica mesma (e não apenas a norma do caso concreto, a sentença), na medida em que a juízo lógico imperativo propriamente dito só nasce após a interpretação/aplicação do texto (que, até então, não é norma, mas mera moldura hermenêutica). Isso fica ressaltado quando se pensa na regra da interpretação conforme a Constituição.

Não é o caso de se afirmar (como diriam alguns) que, no Estado constitucional, à jurisdição caberia apenas “declarar” os valores constitucionais, porque deve fazer bem mais do que isto. É preciso que o aplicador saiba conferir sentido ao caso concreto, para então prover-lhe tutela jurídica adequada e efetiva. Na dogmática processual, isso se reflete na orientação de que o magistrado deve tutelar concretamente o direito material, e se necessário até mediante meios de execução (desde que tais medidas observem os princípios da razoabilidade e proporcionalidade). Neste sentido, afirma Marinoni:

“[...] o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva incide sobre a atuação do juiz como 'diretor do processo', outorgando-lhe o dever de extrair das regras processuais a potencialidade necessária para dar efetividade a qualquer direito material (e não apenas aos direitos fundamentais) e, ainda, a obrigação de suprir as lacunas que impedem que a tutela jurisdicional seja prestada de modo efetivo a qualquer espécie de direito”.[15]

Contudo, diante de tamanha margem de discricionariedade judicial, adquire especial relevo a necessidade de fundamentação das decisões judiciais, as quais, obrigatoriamente, têm de se pautar em critérios rigorosamente racionais. Para que uma decisão possa ser tida como legítima, é preciso que o juiz, como membro de um dos Poderes da República, seja capaz de convencer discursivamente que a decisão tomada é a melhor possível, pelo menos em vista das peculiaridades do caso concreto. Tal exigência surge como um meio para possibilitar o controle democrático da atividade jurisdicional por parte da sociedade civil, através da esfera pública. (É preciso entender, contudo, que o parâmetro de correção racional-argumentativo do direito reveste-se de particularidades, não se enquadrando nos padrões mecanicistas da lógica cartesiana).

     Perceba-se, então, que não se quer dar ao aplicador a liberdade de decidir conforme sua vontade individual, sem o respeito às garantias da ampla defesa e do contraditório, por exemplo. “O que se deseja evidenciar é que a função jurisdicional é uma conseqüência natural do dever estatal de proteger os direitos, o qual constitui a essência do Estado contemporâneo” e, portanto, tal função pode e deve ser exercida por todos os meios que se façam necessários para implementar uma tutela efetiva[16]. Evidente, porém, que a técnica processual deverá observar garantias do processo e os princípios constitucionais, como o da proporcionalidade e razoabilidade.

     Uma vez mencionada a “essência do Estado contemporâneo”, cabe refletir sobre em que ela consistiria, no tocante à jurisdição. Sob tal perspectiva, mostra-se de valia a observação do jurista alemão Robert Alexy:

“A renúncia ampla a direitos a uma efetiva autoproteção, condicionada pela transição (construída) da situação pré-estatal à situação estatal, pode ser justificada racionalmente somente se o indivíduo, em troca dessa renúncia, obtém uma efetiva proteção estatal”.[17]

Efetiva proteção estatal - aqui se encontra o fundamento de legitimidade da jurisdição, em razão do qual se incluiu entre suas atribuições a função de possibilitar a imprescindível participação dos cidadãos e das instituições representantes da sociedade civil na reivindicação dos direitos transindividuais e no controle dos desvios na administração pública.

     Em outras palavras, se o Estado toma em suas mãos o monopólio do uso da força organizada, deve cumprir sua promessa de prestação da tutela jurisdicional efetiva, fazendo valer não somente os direitos subjetivos individuais clássicos, como igualmente os direitos sociais e políticos. E não importa que estes sejam titularizados por indivíduos concretamente identificáveis, ou por coletividades determinadas, ou por grupos determináveis, ou até mesmo pela sociedade como um todo. Independentemente de quem os titularize, “a jurisdição tem o dever de prestar ao cidadão a tutela que decorre da sua posição jurídica”[18]. É nisto que consiste o direito fundamental à tutela jurisdicional.

Neste ponto, cabe lembrar que este direito fundamental à tutela jurisdicional, além de autônomo, constitui-se numa pluralidade de posições jurídicas (poder, liberdades, imunidades), pelo que adquire uma característica eminentemente complexa (Wesley N. Hohfeld). Não se pode, portanto, compreender o direito de demandar sob perspectivas puristas como as de Windscheid (teoria da vontade) e de Jhering (teoria do interesse). Aliás, tais concepções privatistas se distanciam muito da idéia de um direito fundamental à tutela jurisdicional, porque viam na jurisdição mera função estatal pela qual um sujeito com direito violado poderia impor ao violador sua vontade (Windscheid) ou seu interesse (Jhering).

Tais concepções diferem da noção de um direito fundamental à tutela jurisdicional, porquanto este é oponível contra o Estado. A tutela jurisdicional no Estado contemporâneo não deve ser encarada como a reparação de uma violação e, por isso, ela não se coloca a serviço exclusivo do demandante (o que configuraria o chamado processo civil de autor, tão combatido por Dinamarco). Na verdade, o direito fundamental à tutela jurisdicional se consubstancia no direito a que, mediante um processo équo, seja proferida decisão útil que resolva o conflito ou, pelo menos, reduza consideravelmente a margem de incertezas.

Por isso mesmo se diz que a tutela jurisdicional é prestada mesmo quando a pretensão não é provida. É que até no indeferimento do pedido, se conferiu ao autor o direito de ter o seu pleito ouvido através de devido processo, bem como se prestou ao réu o direito de resistir à pretensão do demandante. Enfim, a jurisdição presta sua tutela a ambas as partes, independentemente do resultado do processo.

E mesmo considerado que a teoria de Chiovenda também reconhece a autonomia do direito de ação, não se pode negar que suas elaborações estavam impregnadas de um individualismo inflexível. Isto porque o referido autor atrelava o direito de ação à lei, restringindo as possibilidades de tutela das posições jurídicas à técnica processual prevista expressamente. Tanto que abria exceção apenas para os direitos derivados de inadimplemento ou lesão (maiores exemplos de direitos pessoais patrimoniais). Na concepção daquele autor, a tutela tem que derivar do processo.

Já Marinoni, ao contrário, chama atenção justamente para o fato de que o direito à tutela jurisdicional deriva diretamente das posições jurídicas, cabendo ao processo tão somente o dever de viabilizar a tutela advinda o direito material. Com efeito, propugna Marinoni:

“Na ausência de técnica processual adequada, o juiz deve suprir a omissão da legislação processual com base no direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. De outra forma, teria que se aceitar, conforme fez Chiovenda, que uma tutela prometida pelo direito material pode não ser 'conseguível no processo' pela circunstância de a técnica processual idônea não estar 'autorizada na lei'. E aí seria necessário concluir que a falta de lei pode negar ao Estado a técnica processual capaz de lhe permitir o exercício da jurisdição e, além disso, desconsiderar o direito fundamental de ação ou a tutela jurisdicional efetiva, o qual é um direito essencial para a proteção de todos os demais direitos, inclusive os fundamentais”[19].

BIBLIOGRAFIA

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, Vol. III. 13ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008.

DINAMARCO. Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

____________, Instituições de Direito Processual Civil, vol. I, 2005.

FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Justificação Teórica dos Procedimentos Especiais. Disponível no sítio da Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Acessado em 2 de junho de 2009, através do seguinte endereço eletrônico: http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Adroaldo%20Furtado%20Fabr%C3%ADcio(3)formatado.pdf.

GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro, Vol. 3. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Código de Processo Civil Interpretado. 3ª ed. São Paulo: Manole, 2008.

MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

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Elaborado para subsidiar os trabalhos da elaboração do anteprojeto de Novo CPC pela Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal.

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