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O poder popular como afirmação do Estado democrático

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01/11/2002 às 00:00
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3.A constituição da liberdade

Enfim, como vimos, nossa alegação se baseou no suposto de que a liberdade é constituída a partir da igualdade – ou do advento da maior margem de igualdade possível. Primeiro porque não há liberdade se um é escravo; não há liberdade se uns poucos são livres e libertos de quase toda responsabilidade social e muitos outros são servos dessa mesma condição/imposição social e histórica; não há liberdade se alguns são havidos em tão elevada superioridade (simplesmente, são tão melhores) que, aos demais, restam somente condições de extrema desigualdade. Segundo, porque a desigualdade é crime, e seja ela tratada do ponto de vista individual (racismo), seja social: o desvio de verbas públicas acarreta miséria social. Por isso, mesmo que o objetivo seja debater a liberdade, temos de ter como referência histórica e teórica que só se alcançará com a plena realização da igualdade.

Como exemplo histórico e curioso, se confrontado à análise generalista que viemos tecendo, é o da liberdade norte-americana, provinda da história da Revolução, da Independência e da própria Constituição Americana, pois será uma liberdade expansiva, que agregou e se agregou a novos valores, direitos e práticas sociais. É uma liberdade expansiva porque cresceu tanto quanto seu próprio território permitiu (bem como conjugado ao de seus vizinhos, no caso do México e da seção do Estado do Texas). Essa liberdade expansiva, no entanto, não será paradoxal ao princípio liberal (indicado como liberdade negativa), uma vez que território para a fase da colonização do oeste americano significa apego, agregação e expansão da propriedade como um todo – novos territórios, novas propriedades, novos direitos, nova liberdade. Uma emancipação, portanto, advinda da propriedade ou, melhor dizendo, a emancipação política que se completa pela anexação: quanto maior a propriedade, maior a emancipação política. Em Negri (2002):

O espaço é o lugar das massas americanas, elas próprias renovadas por uma liberdade garantida pela propriedade, pela apropriação e pelo direito novo (...) O espaço é o horizonte constitutivo da liberdade americana, da liberdade dos proprietários (...) Os sujeitos da política são agora as massas de livres apropriadores. O problema não será então organizar suas relações com os expropriados, mas as relações entre os apropriadores (...) Uma república será então expansiva se souber deslocar os conflitos em direção à fronteira, uma fronteira sempre aberta à apropriação (p. 215).

Nessa experiência, ou nessa sociedade, em que se conjugam fortemente liberdade e propriedade, também a constituição da nova sociedade civil seguirá um caminho diferenciado, onde não se oponham sociedade e Estado (na verdade, Estado independente e sociedade civil organizam-se ao mesmo tempo, ao tempo da independência e da colonização), nem sociedade (regramento) e indivíduo, ou ainda entre sociabilidade e emancipação individual de cada sujeito. Vejamos em Negri (2002):

Assim, o conceito de emancipação política e o de sociedade política se constituem conjuntamente. É a sociedade política que emancipa os indivíduos, fazendo deles cidadãos que se apropriam de um espaço indefinido (...) Trata-se de uma hipótese operativa: na fronteira tártara da liberdade americana, será possível constituir uma nova e rica socialidade. É uma hipótese real, é a inovação do poder constituinte americano: algo que percorre a revolução política e aponta, na borda do espaço nacional, o lugar do possível alargamento do poder e das liberdades sociais (grifos nossos, p. 226-7).

Em suma, se cabe uma súmula dessa liberdade irrefreável que se expande aos limites do imaginário - e depois reflui para enfim se constituir em emancipação política, porque delega ao sujeito histórico toda tarefa de sua constituição -, seguindo Negri (2002), ainda poderíamos dizer que:

     As relações americanas consistem nisto, e nisto consiste a vigorosa inovação que elas imprimem à história do homem. A emancipação política compreende em si as relações sociais e desenvolve o tema da liberação no quadro destas relações: lá onde a liberdade tem sempre uma fronteira a ultrapassar, um espaço a percorrer (p. 229).

E com isso retornamos ao ponto de origem em que a liberdade surge atrelada à propriedade (e se mantém como tal), o que limita e condiciona tanto a experiência política (liberdade) quanto o desenvolvimento da sociedade civil (emancipação política) e a afirmação de direitos sociais, sobretudo a igualdade - e não a desigualdade diante do poder e interposta entre proprietários e não-proprietários. Da experiência norte-americana, portanto, podemos reter a confirmação de que a expansão da liberdade depende da retração da propriedade - ao contrário do que possa parecer -, pois não haverá liberdade se um, apenas um, for colonizado em seu próprio território.

A liberdade americana, portanto, será expansiva em relação à liberdade do outro, à propriedade do outro – vai expandir-se para além de si mesma, para cima e para dentro da sociedade vizinha. Vai de encontro, em direção e contra a Sociedade Sem Estado de que nos falava Pierre Clastres, pois a liberdade americana advém da expropriação da propriedade e da liberdade do índio americano. Para que sua liberdade prosperasse, uma outra foi colonizada – daquele que perdeu a posse ou propriedade, uma vez que os dois não repartiram e não coabitaram os espaços de origem. Sem dúvida, sua liberdade será expansiva, mas também será colonizadora, expropriadora, apropriadora do território, dos símbolos e da ação do outro – quando, enfim, desapareceu a liberdade sem fronteiras do índio americano, pois que não será páreo para a liberdade além da fronteira do colono americano.

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Em síntese, a sociedade civil americana será construída a partir (de dentro) dessa Sociedade Sem Estado: seu movimento interno de institucionalização, dessa forma, iria ou da Sociedade Sem Estado, mas com liberdade, rumo à sociedade com Estado, mas sem liberdade (ou com liberdade reduzida, vigiada pela política e conduzida pela própria expansão da propriedade), das sociedades da felicidade, ilimitadas diante da natureza (ou de natureza ilimitada), sedentas de liberdade, em direção às sociedades fronteiriças, mas agora domesticadas, tornadas domésticas, caseiras, sedentarizadas para satisfazer sua ânsia de liberdade. Novamente em Negri (2002), tem-se aí uma espécie de liberdade insaciável:

Assim, o poder constituinte está fadado a constituir uma "segunda natureza" no sentido próprio do termo: uma nação – a americana no caso – que se estende entre dois oceanos, um imenso território a construir (...) E põe a fronteira histórica dos Estados americanos como obstáculo a ser continuamente superado para dar aos seus cidadãos uma liberdade cada vez maior (p. 230).

Em uma expressão, sua liberdade negativa (política e jurídica) será construída, transformada em direito positivo, sobre a simples negação das liberdades dos demais sujeitos (de direito natural). Ainda vale realçar que essa relação não está traçada por algum tipo de desvio quanto à natureza da democracia que era nascente pela história norte-americana, mas sim uma demonstração de que a liberdade limitada pela condição da propriedade. Como vimos na assertiva de Marx, não há que se falar sobre a maior extensividade da emancipação humana, se esta vem a reboque de uma determinada imposição política que não a mais abrangente possível – e pelo viés liberal, vimos que não será possível falar de liberdade ou do direito de forma ampla, se a liberdade ou o direito é condicionado e limitado por outro.


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Notas

1. Entendamos o conceito como a concepção jurídica que procura juridicizar (tornar direito positivo, regrado) o poder constituinte (força política renovadora, revolucionária).

2. Pois, poder constituinte implica em revolução, em transformação radical e profunda da estrutura e da dinâmica social e política. E assim se refere ao que virá, ao futuro, ou ao presente transformado pela força popular revolucionária. É evidente como está atrelado ao direito à revolução.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. O poder popular como afirmação do Estado democrático. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3399. Acesso em: 3 dez. 2024.

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