3.1 Antecedentes Históricos e Discussão Conceitual da Eutanásia Consentida:
O vocábulo “euthanasia” deve sua origem a estudo semântico empreendido pelo filósofo inglês Sir Francis Bacon, consignado em sua obra Historia Vitae y Mortis, datada de 1623, compreendendo etimologicamente o prefixo eu (adjetivo: bom, boa) e o substantivo thanatos (morte). Outrossim, firmou para o termo um conceito, segundo o qual há obrigação de o “médico evitar as dores não somente procurando a cura do enfermo, senão provocando inclusive a morte, quando aquelas se façam insuportáveis e careçam de tratamento[56]” (NUÑEZ PAZ, 1999, p. 31).
Originariamente, o então neologismo já punha em relevo que o dever do facultativo não se cingiria a proceder a tratamentos curativos, subsistindo, ademais, uma obrigação de cuidar do enfermo, de paliar-lhe os padecimentos.
Apesar da relativa recentidade do termo, antiqüíssima é a prática da eutanásia.
Sucintamente e a título de ilustração, cabe gizar que, entre os antigos povos eslavos e escandinavos, os filhos precipitavam a morte de seus pais, quando estes estivessem em extremo estado de ancianidade; entre os Karens na Birmânia, quando alguém padecia uma enfermidade penosa e incurável, o pedido do afetado para que fosse enforcado era autorizado instantaneamente (NUÑEZ PAZ, 1999, p. 37); os espartanos davam morte às criaturas desprovidas de vigor ou defeituosas, por serem consideradas um inútil encargo para o Estado (ASÚA, 2003, tomo 1, p. 20); na idade média, “chamou-se ‘misericórdia’ ao curto punhal afiadíssimo, que servia para rematar os que caíam nas lutas multitudinárias ou nos chamados Juízos de Deus.[57]”
Pode-se ainda haurir referências a este respeito em pensadores clássicos, asseverando Lorenzo Morillas Cueva ser “conhecida a dura afirmação de Platão, em sua obra A República” de que “estabelecerá no Estado uma disciplina e uma jurisprudência que se limite a atender aos cidadãos sãos de corpo e alma; aos que não estejam sãos de corpo, deixe-los morrer;” Sêneca, por seu turno, afirma ser “preferível quitar-se a vida, a uma vida sem sentido e com sofrimento.[58]”
Historicamente, acolheu-se uma multitude de significados sob a denominação “eutanásia,” envolvendo-se as mais diversas perspectivas e motivações, albergando desde o ritual de extrema unção como forma de suporte psicológico na proximidade do trânsito final (tratando-se de eutanásia pura) até uma visão utilitarista-coletivista explicitada por Platão, perpetrada pelos espartanos e revivida, no século XX, com a eliminação de seres humanos realizada pelo denominado Projeto de Eutanásia.
O Nacional-Socialismo implantado na Alemanha, à conseqüência da subida de Adolf Hitler ao poder, parece configurar um caso histórico de uma tirania da maioria, sob a égide do qual se implantou um sistema de eliminação com motivações políticas e eugênicas (de purificação da “raça” ariana) de minorias e daqueles etiquetados de seres desprovidos de valor vital ou cujas vidas seriam indignas. Deve observar-se que a utilização pelo Nazismo do termo em apreço, ainda que pudesse se referir à provocação de mortes indolores, não legitima a inserção de propósitos genocidas tampouco que transcendam à pessoa[59].
Ante a necessidade de firmar um conceito atinente à eutanásia, cumpre notar primeiramente que o seu conteúdo semântico construído historicamente parece opor-se diametralmente às motivações alheias ao indivíduo, assimilando-se aqui a lição de Claus Roxin:[60]
A assim chamada eliminação de vidas indignas de viver está completamente fora de qualquer forma considerável de eutanásia. Trata-se, aqui, de matar, no interesse da coletividade, pessoas capazes e com vontade de viver, mas que sofram de doenças mentais incuráveis. A discussão a respeito foi impulsionada pelo inglório e até hoje conhecido escrito de Binding/Hoche, do ano de 1920: “a permissão da eliminação das vidas indignas de viver”. Estas propostas, até 1933, encontraram preponderantemente repúdio e foram retomadas posteriormente pelos nacional-socialistas. (...) O chamado programa de eutanásia do Estado nacional-socialista, que na prática foi além de tudo que já fora proposto por qualquer autor, reportava-se a um decreto confidencial de Hitler, datado de 1º de setembro de 1939.
Para fixar-se um conceito colimando proporcionar um adequado tratamento jurídico às modalidades de eutanásia a serem analisadas, cumpre vincar que a idéia básica a informar esta prática é a do respeito à pessoa. “Falar de eutanásia implica sempre e em todo caso falar de morte digna”(VALLE MUÑIZ, 1989, p. 156), devendo servir de instrumento para resolver um extremo conflito experimentado por alguém e no interesse deste.
A motivação da conduta, pois, há de revestir-se de caráter humanitário, piedoso e solidário (sempre em prol do afetado), de sorte a restarem excluídas desta conceituação as que forem impulsionadas por motivações racistas, eugênicas, seletivas (v.g., eliminação de determinadas minorias, de pessoas consideradas perigosas, com tendências criminais); as egoísticas (com interesse em proveito econômico, v.g., por causa de herança); as solidárias[61], porém em benefício de outrem. Por conseguinte, interrompe-se ou sequer se inicia a aplicação dos recursos que poderiam prolongar a vida de um dos necessitados, porquanto se vislumbra um prognóstico mais favorável ao outro.
A par de dissentir-se da inserção do caso retro-referido no rol das espécies de eutanásia (solidarística ou passiva[62]), uma vez que não se tem como escopo possibilitar um morrer misericordioso no interesse de quem sofre de forma insuportável, discorda-se também da solução jurídica advogada por um setor doutrinário, segundo o qual se estaria diante de estado de necessidade exculpante[63] ou justificante (GIMBERNAT ORDEIG, 2004, p. 8).
Para afirmar a tipicidade por homicídio omissivo impróprio haveria de se pressupor, além da existência do dever de evitar a superveniência do óbito, a possibilidade concreta de ação, o que não se afigura nesta situação. In casu, seja pela insuficiência de órgãos destinados a transplante, seja pela limitação de aparatos técnicos, o facultativo, sabendo impossível a salvação de todos os desamparados, administra recursos escassos. Omite-se por não poder agir, sendo esta inação penalmente irrelevante.
Outrossim, constitui elemento configurador da hipótese eutanásica a existência de uma situação de profundo sofrimento psíquico ou físico de difícil suportabilidade (equiparável a uma espécie de tortura), que pode se materializar em uma enfermidade incurável com previsão próxima de óbito (estado terminal) ou em caso de invalidez, não necessariamente letal.
Há de considerar-se, consoante leciona Díez Ripollés, a morte como um componente imprescindível,[64] mormente em razão de a relevância penal da eutanásia dizer com a intersubjetividade[65], com a repercussão no Direito de como alguém se posiciona em relação ao término do processo vital alheio. Isto é, não se podendo elidir ou amenizar satisfatoriamente o sofrimento por outro modo e nem sem interferência alheia, a conduta (omissiva ou comissiva) do agente eutanasista poderá antecipar, não adiar, causar ou possibilitar a causação da morte do afetado. Cabe, enfim, conceituar com arrimo em Díez Ripollés[66]:
Por eutanásia, em termos genéricos, deve entender-se aquele comportamento que, de acordo com a vontade ou interesse de outra pessoa que padece uma lesão ou enfermidade incurável, geralmente mortal, que lhe causa graves sofrimentos e/ou afeta - lhe consideravelmente a sua qualidade de vida, dá lugar à produção, antecipação ou não adiamento da morte do afetado.
O consentimento - por exteriorizar o projeto existencial traçado pela pessoa, a partir de uma ponderação subjetiva de valores e metas que a norteiam, por refletir sua personalidade e ser manifestação do direito fundamental à autodeterminação – goza de extrema relevância na análise do tema, tendo normalmente repercussão diferenciada em relação às hipóteses de eutanásia não consentida (v.g., de menores, inconscientes em estado comatoso, incapazes)[67].
Decerto, a caracterização do consentimento válido em casos deste jaez há de observar alguns requisitos mínimos, em razão da transcendência da eleição.
Deve ser pessoal, por não se admitir disponibilidade da vida alheia e por se tratar, neste ensaio, de disposição da própria vida; há de ser emanado de sujeito capaz e que tenha capacidade específica diante da situação que se lhe apresenta (excetuados, pois, casos de alguém que, ainda que sujeito capaz, esteja com a capacidade de exercer a autodeterminação diminuída, v.g., por ter ingerido bebidas alcoólicas); ocorrendo no bojo de uma relação entre médico e paciente, há de ser amplamente informado. Deve, ainda, ser inequívoco, sério, refletido, livre (v.g., não decorrente de uma coação), expresso (não presumido nem tácito)[68].
Sobre o consentimento na hipótese de eutanásia passiva consensual, Ferrando Mantovani enuncia, em síntese, seguintes requisitos:
No que tange à eutanásia passiva consensual, ou voluntária, na verdade se trata de recusa da cura por parte do paciente, de modo que deva ser considerada lícita, não com base em um poder do médico de deixar morrer, mas com base em um poder do sujeito de não se curar ou de deixar-se morrer. (...) Deve, pois, tratar-se de ato de vontade: a) pessoal, porque a ninguém é dado autorizar o sacrifício de outrem; não pode fazê-lo seu representante legal, em face de certos perigosos equívocos, conceituais e operativos, porque o consentimento está adstrito às intervenções favoráveis, e, portanto, jamais envolvendo prejuízo à saúde do representado (...); b) real, vale dizer, deve o ato ser manifestado de forma expressa, não podendo, por isso, ser presumido ainda que diante de impossibilidade material; em outras palavras: não se pode presumir, jamais, o consentimento do doente em face de sua situação pessoal (angústia e incurabilidade da enfermidade, iminência de morte etc.); c) informado, isto é, o ato há de estar fundado na clara e indiscutida conscientização do doente quanto a seu próprio e verdadeiro estado, não podendo, em consequência, se desinformado, praticar um ato de vontade. (...); d) autênticos, deve tratar-se de uma resistência ou oposição à cura, de modo não “aparente” ou fruto de motivações irracionais (p. ex. : medo); o ato há de ser consciente, ponderado, firme, de convicção, livre dos tradicionais vícios, e derriscar as formas de coação ou sugestão, direta ou indireta, do médico ou de terceiros. Não se olvide, ademais, a hipótese de ocorrência do delito de induzimento ou instigação a suicídio; e) válido, isto é, o ato de vontade pressupõe sujeito capaz, não só em razão da idade, mas, outrossim, com condições psíquicas para, na situação específica, poder exprimir validamente a própria vontade; f) atual, vale dizer, não basta uma vontade expressa em período anterior, dada a mutabilidade de pareceres quanto ao mérito, bem assim sob impulso do imperioso instinto de conservação e as conseguintes ambiguidades do médico quanto à persistência da vontade precedentemente manifestada, porquanto subsiste uma certa diversidade de valor entre uma opção, expressa pelo paciente ainda no senhoria de seu intelecto e de sua vontade (quando completamente consciente de suas condições adversas) e aqueloutra opção, em que, confiante em um momento distanciado de qualquer bem-estar, descrê na iminência do evento letal e se permite, já agora, uma valoração abstrata, destacada das reais angústias da vida que lhe foge[69].
A eutanásia consentida, portanto, constitui uma conduta omissiva ou comissiva de alguém (médico ou não)[70] que, consoante uma válida manifestação de vontade emanada de um sujeito que padece sofrimentos físicos ou psíquicos insuportáveis decorrentes de uma enfermidade ou invalidez de difícil reversibilidade, propicia uma morte condizente com a condição humana, em não se podendo amenizar o martírio ou fazê-lo cessar por outro modo.
Consignada esta conceituação geral, é possível destacar quatro espécies básicas do instituto ora sob comento, a saber:
a) eutanásia pura ou genuína: consiste em proporcionar ao enfermo os meios paliativos, lenitivos para apaziguar o sofrer, sem engendrar encurtamento do processo vital;
b) eutanásia passiva ou por omissão: trata-se da não-iniciação ou da interrupção de tratamento que possibilitaria prolongar a vida do afetado;
c) eutanásia ativa indireta: consiste na subministração de meios lenitivos (v.g. substâncias analgésicas) com o fito de paliar o sofrimento humano, entretanto, como efeito colateral, culmina por repercutir no curso vital do paciente, antecipando-lhe ou causando-lhe a morte;
d) eutanásia ativa direta: consubstancia-se em um ato diretamente direcionado a ajudar alguém que esteja sob uma situação eutanásica a morrer, seja disponibilizando os meios necessários ao suicídio (eutanásico), seja em casos ainda mais excepcionais, executando a morte.
3.2 Eutanásia Pura ou Genuína:
Usualmente se destaca que esta modalidade se circunscreve a uma ação de ajudar no morrer, diversamente, pois, daquel’outras em que a intervenção tem repercussão no curso vital. Pode materializar-se sob a forma de subministração de fármacos com efeitos meramente lenitivos, analgésicos, sem implicar diminuição da vida e em assistência básica (suporte/acompanhamento psicológico, cuidado corporal, alimentação adequada), viabilizando-se um mais tranqüilo trânsito final.
Por ser inócua (não ofensiva) em relação a bens protegidos pelo Direito, reputa-se penalmente irrelevante, merecendo referência em razão de duas situações a ela correlatas, quais sejam: a ministração de paliativos ou a sua não-aplicação contra a vontade do enfermo.
O significado originário de euthanasia cunhado por Bacon já afirmava ser obrigação do médico buscar a cura do doente e, não sendo esta mais possível, franquear uma morte tranqüila. No bojo de uma relação médico-paciente, podem subsistir duas obrigações de natureza terapêutica: encaminhar um tratamento de finalidade curativa ou cujo objetivo seja mitigar dores. Assim, estando sob compromisso de garante e devendo, consequentemente, zelar pela saúde do enfermo, se o facultativo omitir os remédios (substâncias e recursos) capazes de elidir padecimentos desnecessários, esta conduta caracterizará lesão corporal por omissão[71].
Por sua vez, a negativa a submeter-se à subministração de paliativos desautoriza a atuação médica. Se, a despeito desta oposição, são forçosamente aplicados, constitui-se um tratamento arbitrário, configurando também lesões corporais. A propósito, afirma Roxin (2000, p. 12):
Pode o doente ter razões teológicas ou filosóficas para tanto, ou ser simplesmente uma pessoa sobremaneira corajosa, que deseje comunicar -se com os que lhe são íntimos, ou regular problemas sucessórios. De qualquer maneira, seu desejo deve ser respeitado. Se for ministrada ao doente uma injeção, talvez porque o médico considere a recusa algo irracional, ter-se-á uma intervenção não permitida na integridade física alheia.
Cabe assinalar, então, a atipicidade legal da simples ajuda no morrer, contrariamente ao que sucede nas duas outras hipóteses supra-analisadas (a ministração de lenitivo ou a sua não-aplicação contra a vontade do paciente). Estas, a rigor, sequer configuram eutanásia pura, haja vista que desprezam a liberdade de alguém em decidir sobre submeter -se ou não a determinada terapia médica.
3.3. Eutanásia Consentida por Omissão:
Se o cotejo da modalidade pura de eutanásia (ajuda no morrer) não faz aportar marcadas controvérsias jurídico-penais, decerto não se poderá declinar a mesma assertiva derredor da espécie sub examine, de sorte que uma conclusão acerca da (a)tipicidade penal desta demanda um mais profundo perscrutar.
É cediço que a eutanásia consentida por omissão se consubstancia em a conduta de terceiro de, sempre em consonância com a vontade emanada por sujeito responsável que se encontra sob hipótese eutanásica, não iniciar ou de interromper um tratamento vital ou, ainda, de não prestar auxílio (socorro) desta natureza, que, se prestado fosse, teria o condão de elidir ou postergar o advento do óbito alheio.
Se a ratio da proteção normativa à vida basear-se em uma sua (da vida) pertinência coletiva; se for concebida em razão da função a ser desempenhada pelo indivíduo para satisfação de interesses da sociedade e do Estado, por conseguinte, admitir-se-á a indisponibilidade do bem jurídico, a antijuridicidade do suicídio e a legitimidade de tutelar a vida contra a pessoa (e a dignidade dela), notadamente para impor-lhe ou facultar que se lhe imponham procedimentos terapêuticos vitais ainda quando exista válida negativa ao tratamento.
Segundo este tradicional posicionamento, a conduta eutanásica em apreço configuraria delito de homicídio, quando se estivesse sob posição de garante, ou omissão de socorro.
Em conformidade com as premissas fixadas ao longo deste trabalho, cabe reiterar que o direito a viver tem função de garantia ante hetero-lesões; da inviolabilidade deste direito fundamental per si não se dessume a indisponibilidade da vida mesma tampouco o contrário, sendo que a afirmação (fundamentação) do direito constitucional de dispor da própria vida há de derivar da autodeterminação individual.
Na condução do próprio destino vital com fito de atingir metas firmadas para si, pode-se, expressando uma responsável eleição pessoal, cometer diretamente suicídio; pode-se, nas situações de iminente perigo de morte ou naquel’outras em que a manutenção de uma função vital depende de um aparato, rechaçar o tratamento, exercendo o direito de deixar-se morrer; isto é, o término da existência biológica se apresenta como conseqüência necessária ou eventual de determinada opção posta à escolha do indivíduo, que, apesar das consequências possíveis, ainda assim este assume o risco, consoante pensamento externado por Günther Jakobs[72]:
Em um intento sério de suicídio, a concludente negativa a deixar-se ajudar deve ser respeitada enquanto durar esse intento. Isto não tem nada a ver com a eutanásia por omissão de um tratamento,[73] senão que é o desenvolvimento do direito do que não quer viver mais, a decidir sobre si mesmo,quer se trate de um suicídio direto ou – em caso da negativa a deixar-se tratar de uma enfermidade – de um suicídio indireto[74].
Substancialmente, a eutanásia consentida por omissão é expressão da faculdade de decidir-se sobre a própria vida, o corpo, a saúde; enfim, é decidir sobre o se e o até quando (em quais circunstâncias e condições) submeter-se a determinados procedimentos terapêuticos e possibilitar deixar-se ajudar.
Trata-se, afinal, do direito a não ser submetido a tratamento contra a vontade, ainda que a morte seja efeito da oposição, já que, para dizer com Roxana Cardoso Brasileiro Borges, “o paciente tem o direito de não se submeter a tratamento, ou de interrompê-lo, se esta for sua decisão, após um esclarecimento completo, compreensível, dado pelo médico sobre seu estado e as perspectivas do tratamento cabível.[75]”
Em uma sociedade constitucionalmente preconizada como pluralista, múltiplas podem ser as razões (de matriz religiosa, ideológica, simplesmente pessoal) para opor-se a uma intervenção vital.
O exercício de um direito albergado na Constituição Federal faz erigir um limite à atuação alheia. Por conseguinte, desfaz-se o compromisso do garante de evitar especificamente um resultado (a morte)[76] e, sem embargo, descaracteriza-se a situação de desamparo, obstando a tipificação da conduta também como delito de omissão de socorro.
Neste contexto, reputa-se necessário proceder uma interpretação conforme a constituição do § 3º do art. 146 do Código Penal, excluindo-se do alcance deste dispositivo as hipóteses de suicídio (e de deixar-se morrer) responsável. Devendo partir-se de que do direito à vida “não se deriva em nenhum caso o direito à intervenção contra a vontade de seu titular” (NUÑEZ PAZ, 1999, p. 23) e que o “ato de suicídio é expressão do exercício de um direito constitucionalmente amparado” (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 167), somente há de ser considerado lícito (legalmente atípico) o constrangimento exercido para obstar suicídio não-responsável.
Nos casos de iminente perigo de morte (C.P. art. 146, § 3º, inciso I), a licitude da intervenção médica ou cirúrgica há de ser restrita aos casos de ausência de consentimento válido, seja por tratar-se de sujeito incapaz (v.g. menor); seja por tratar-se de pessoa inconsciente, seja ainda porque, diante da urgência e da irreversibilidade do dano (do periculum in mora), não se faz possível prestar as devidas informações para que o paciente possa eleger uma opção.
Entretanto, se houver contrariedade válida (séria, informada e emanada de sujeito capaz) ao procedimento terapêutico, intervir significará a imposição de tratamento arbitrário, constitutivo dos delitos de lesões corporais e/ou constrangimento ilegal.
3.3.1 Rechaço de Tratamento Vital por Motivos Religiosos:
É de casuística recorrente a problemática envolvendo a negativa de tratamento salvador lastreada em motivação religiosa. Já clássico é o caso de oposição à transfusão de sangue por parte de Testemunha de Jeová[77], sabendo-se esta eleição individual conduzirá muito possivelmente a seu falecimento.
É de rigor notar que parece não se tratar de hipótese de eutanásia, especialmente por inexistir um sofrimento atual. Mais se assemelha a uma simples situação de disponibilidade da vida.
Quase despiciendo é gizar que a realidade constitucional propugna por uma sociedade pluralista, livre, respeitosa das diferenças. In casu, trata-se de uma escolha pessoal de cunho religioso e em razão da qual se guia a própria existência em direção às metas firmadas e em acordo com os valores que informam seu existir e manifestam sua personalidade.
Se o fundamento da ordem normativa é a dignidade da pessoa humana, ora se ressaltando o direito à autodeterminação, ora se salientando a não submissão à degradação, a reificação e se o objetivo desta ordem é constituir uma sociedade livre, há de inferir-se que o indivíduo, no âmbito somente a si concernente, é livre para decidir o que é melhor para si. Uma vida digna é uma vida livre – assevera Francisco Bueno Arús – e “livre é quem pode autodeterminar-se e decidir sobre sua própria vida, sem outros limites essenciais que a liberdade e os direitos dos demais”(ARÚS, 1991, p. 395).
A negação de um sujeito responsável – capaz de autodeterminar-se – a submeter-se a determinado tratamento faz emergir um limite à atuação alheia, quaisquer que sejam os motivos. O que se pode fazer é analisar as preliminares, os pressupostos do exercício da autonomia (consentimento sério, informado, expresso, emanado de pessoa capaz), mas não o mérito de uma escolha pessoal, ou seja, se a interpretação de alguém sobre um texto religioso é razoável ou não.
Intervir, por entender-se irracional uma determinada doutrina religiosa, é expressão de uma ingerência arbitrária na personalidade de outrem, uma inconcebível ofensa no âmago de uma sociedade que se pauta (pelo menos se pretende) na tolerância das diferenças; enfim, constitui tratamento degradante, além de delito de lesões corporais e/ou constrangimento ilegal.
Sobre a recusa de tratamento vital por Testemunhas de Jeová, Miguel Bajo Fernández[78] legou escólio preciso:
Se sostiene en ésta ya constante jurisprudencia, que ni el juez que autoriza ni el médico que realiza la transfusión cometen delito alguno por estar amparados en el estado de necesidad o cumplimiento de un deber. Pues bien, yo sostengo que la transfusión de sangre realizada contra la voluntad del paciente constituye un trato inhumano y degradante que, salvo excepciones, no queda amparado por causa de justificación alguma.
En la medida que la transfusión de sangre 1) implica una agresión física, aunque sea mínima; 2) provoca riesgos, por leves que sean, para la salud; 3) no procede de quién se encuentra en estado de necesidad, sino de un tercero, y 4) se realiza contra la voluntad del agredido, no puede quedar exenta de responsabilidad criminal por aplicación del número 7 del artículo 8, aunque se realice para evitar otro mal, incluso la muerte. La razón estriba en la falta de adecuación con valores elementales indispensables para la convivencia social, como es la necesidad de respeto a la voluntad ajena, la necesidad de no otorgar a nadie poderes excepcionales de intervención en los intereses ajenos y la necesidad de no practicar tratos inhumanos y degradantes. De ahí que quien, contra la voluntad del paciente, realiza una transfusión de sangre para salvar su vida, comete, al menos, un atentado contra la liberdad (si no una lesión o, al menos, un maltrato de obra) no amparado por la eximente del estado de necesidad.
E prossegue o autor espanhol, reconduzindo a discussão às razões que presidem a imposição – ilegítima – de transfusão de sangue neste contexto:
Entonces ¿por qué se puede agredir al Testigo de Jehová en sus convicciones religiosas, incluso físicamente, para salvar su vida? Qué duda cabe que juega aqui un papel importante el ‘hecho diferencial’, la marginalidad religiosa, el ser distinto de la mayoría.
3.3.2. Eutanásia omissiva por ação (comissão):
Oportuno é referir que a observância do direito de não se submeter a tratamento médico para se realizar pode exigir (geralmente se exige) a prática de condutas comissivas, a exemplo da retirada de aparatos que conferem suporte vital.
Do ponto de vista naturalístico, efetivamente se evidencia uma ação neste caso.
Entrementes, o referido ato é instrumentalmente necessário ao cumprimento do interrupção da terapia médica, donde – sob a perspectiva de valoração jurídica da conduta – deve ser considerada como omissiva (por ação) a conduta em referência.
Sobre o tema, elucidativas mais uma vez as lições de Miguel Bajo Fernandez:
Disiento de esta tesis dominante, porque entiendo que no prolongar artificialmente la vida del enfermo equivale a un supuesto de omisión (eutanasia pasiva) que debe considerarse impune conforme al artículo 409 del Código Penal. Entiendo que la desconexión de medios artificiales que mantienen con vida al sujeto han de considerarse como supuestos de omisión (101) en cuanto que el aparato artificial que mantiene con vida es una ‘longa manus’ del médico, quien al interrumpir el funcionamiento del mismo está realizando un comportamiento omisivo. El derecho del enfermo a la muerte natural, a no sufrir tratos inhumanos y degradantes, y el derecho a que sea respetada su voluntad, son argumentos suficientes como para entender que los supuestos de eutanásia pasiva no están incluídos en el artículo 409 del Código Penal[79]. (BAJO FERNANDES, 1993, p. 736)
O dever de abstenção (conduta omissiva, pois) do médico pode consistir em não instaurar um procedimento terapêutico ou em suspendê-lo, caso iniciado, o que pode exigir (como sói ocorrer) uma conduta ativa imprescindível para viabilizar a omissão do tratamento. Claus Roxin, sobre este aspecto, expõe:
Deve admitirse que toda voluntad responsable del paciente se corresponde con la eutanásia pasiva. Um caso de esta naturaleza también existe, y com ello entro em um problema amplia y extensamente discutido, cuando um comportamiento dirigido a la omisión de la continuidad de um tratamiento está conectado com um hacer positivo. El supuesto clásico es aquel em el que por deseo del paciente es desconectado um aparato de respiración artificial, donde la presión sobre el interruptor es um hacer positivo. A pesar de ello, no se trata de uma eutanásia activa punible generalmente como homicio a petición (§ 216 StGB). Y es que de acuerdo com su significado social el suceso se muestra como la interrupción del tratamiento y, por tanto, como la omisión de uma actividad adicional. La frontera entre uma eutanásia activa punible y la pasiva impune no debe extraerse del critério naturalístico consistente em el desarrollo o no de movimientos corporales. Más bien depende de si normativamente es interpretable como um cese del tratamiento, pues entonces existe uma omisión em sentido jurídico que, al apoyarse em la voluntad del paciente, resulta ser impune. La opinión de enjuiciar como uma omisión la denominada interrupción técnica del tratamiento es em la actualidad dominante[80].
3.4 Eutanásia Ativa Indireta:
Eutanásia indireta é a conduta de subministração de recursos, fármacos, visando a mitigar os insuportáveis padecimentos alheios, singularizando-se por ser dotada de duplo-efeito, ou seja, a par de amenizar as dores, traz consigo, reflexamente, o abreviar da existência humana; na prática – aponta Hans Hirsch - incluem-se, sobretudo, casos em que, durante uma medicação analgésica, produz-se um círculo vicioso entre tolerância e aumento contínuo de dose, assim que tampouco se exclui, como efeito secundário, um dano vital tóxico. Ainda mais, também é imaginável um caso mais extremo, quando, na fase terminal, pode causar-se a morte com uma única injeção (HIRSCH, 2000, p. 348).
Conquanto antecipasse o fim da vida, a mencionada ação é avaliada, em regra, pelos doutrinadores como penalmente atípica, pairando uma notória divergência em relação à fundamentação deste ponto de vista. Sobre tal aspecto, explicita Roxin:
A fundamentação traz dificuldades, porque a diminuição da vida provocada comissiva e dolosamente (ou seja, ao menos com dolo eventual) em todos os demais casos configura um homicídio (§212 do StGB) ou um homicídio a pedido da vitima (§ 216 do StGB). Por que aqui deve ocorrer algo diverso? Segundo uma opinião, a eutanásia indireta permitida exclui já o tipo dos §§ 212 e 216 do StGB (logo, qualquer caso de homicídio), por ser socialmente adequada e não estar compreendida pelo sentido destes dispositivos. De acordo com a outra opinião, hoje dominante, haverá, sim, um homicídio, que, porém, é impunível em virtude do consentimento ou do consentimento presumido.
Criticando decisão proferida pelo BGH[81] a este respeito, conclui o autor alemão:
O BGH deixou a questão em aberto. Ela deveria, porém, ser respondida. Pois só quando uma das duas soluções for reconhecida como correta, poderá excluir-se com segurança a terceira – e antes defendida – opinião de que haveria um homicídio punível. Considero correto o posicionamento hoje dominante. Pois a adequação social, o sentido ou fim de uma norma são critérios demasiado vagos para fundamentar a impunidade de homicídios[82]. (ROXIN, 2000, p. 15)
Outros argumentos são suscitados em favor da atipicidade, a saber: a inexistência de dolo; estrito cumprimento de dever legal e ausência de imputação objetiva da conduta.
Por definição, a ação eutanásica indireta colima paliar um atroz sofrer humano, representando-se, porém, o morrer do paciente como efeito necessário (dolo direto de segundo grau[83]) ou possível (dolo eventual), o que se pode inferir da elucidativa explanação de Gómez Sancho:
Que pode passar nos casos muito concretos e em situações muito avançadas, muitas vezes pré-agônicas ? Sim, é verdade que, em casos de dor muito intensa, na melhor das hipóteses, ao final, tem-se que fazer uma escalada de doses de morfina que, provavelmente, como efeito secundário, estará reduzindo a vida deste enfermo. (...) O que define a categoria moral de um ato é a intenção de quem o aplica e, se ponho doses muito altas de morfina a um enfermo para controlar-lhe a dor, esse é o meu único objetivo: quitar-lhe a dor. Se, com independência disto, se está encurtando a vida, esse é um efeito indesejável do que estou fazendo com toda a melhor vontade do mundo, como médico e como ser humano, que é tentar abreviar-lhe a dor. Isto aceita até Pio XI (apud RIVAS, 2001, p. 162).
Salvo melhor juízo, a dificuldade em proceder-se a uma mais firme fundamentação do ponto de vista jurídico parece dever-se, em alguma medida, à sua ampla aceitação moral[84], daí porque é suscitada a adequação social como supedâneo para afastar a tipicidade, posicionamento este rechaçado por Roxin, por considerar esta teoria demasiadamente vaga.
De outra parte, embora se tenha por inequívoca a intenção do médico de apaziguar o sofrimento, patente resta a presença de, no mínimo dolo eventual,[85] o que representa um obstáculo ao intento de basear a atipicidade na inexistência do dolo de matar.
Imperioso é ressaltar que – como já fora percebido por Francis Bacon – há obrigação do facultativo não somente em perseguir a cura do enfermo, senão também em amenizar-lhe os sofrimentos, dando-se concreção, inclusive, ao direito que cada um tem de rechaçar uma condição desumana, penosa. Deste modo, o dever do médico e a finalidade terapêutica de seu interceder compreendem “a conservação ou o restabelecimento da saúde, ou então a prevenção de um dano maior ou, em alguns casos, a simples atenuação ou desaparecimento da dor” (ZAFFARONI, 2004, p. 529).
A intervenção médica consentida que busca o alívio do sofrimento humano, mediante a necessária e adequada (conforme a lex artis) ministração de remédios, embora possa implicar uma redução ou supressão do tempo de vida do paciente, implementa estritamente um dever legal[86]. Não se poderia aqui, entretanto, olvidar uma imprescindível análise lógico-sistêmica, um cotejo da globalidade.
Poder-se-á indicar como supedâneo da atipicidade penal da eutanásia indireta a teoria da (a)tipicidade conglobante, haja vista que, por ser lógico o sistema normativo, não se poderia considerar proibida uma conduta que é imposta ou, quando menos, fomentada pelo Direito.
Sob outro prisma, afirmar-se-á, ainda cotejando a subsidiariedade lógico – sistemática do Direito penal, a ausência de criação de um risco proibido, fazendo alicerçar na teoria da imputação objetiva a atipicidade da eutanásia indireta[87]. Por todos, cabe transcrever uma vez mais o lapidar magistério de Valle Muñiz, verbum ad verbum:
Não entendo justo afirmar a tipicidade de comportamentos que, dentro do mais excelente respeito à lex artis, não fazem mais que cumprir com o mandato constitucional de não infligir tratos desumanos, de respeitar a dignidade da pessoa, de, enfim, fazer possível o direito de todo ser humano a uma morte sem sofrimento, a uma morte digna. (...) A meu juízo, a conduta do médico não será típica. Pois a administração de analgésicos nas situações descritas não supõe a criação de um risco não permitido. Isto é, a conduta será atípica por ausência de imputação objetiva. (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 183)
A permissividade do tratamento médico consentido que enseja risco de morte do paciente pode ser haurida no Direito brasileiro a partir do art. 15 do novel Código Civil, segundo o qual: “ninguém poderá ser constrangido a submeter-se, com risco de morte, a tratamento ou intervenção cirúrgica.” Procedendo um raciocínio contrariu sensu, tem-se por lícita a ação médica voluntária (de acordo com a vontade do enfermo) que tem finalidade terapêutico – paliativa, em que pese trazer ínsito o perigo de provocar a morte daquele (paciente).
Sucintamente, a eutanásia consentida indireta, por consistir em uma obrigação do facultativo em prestar os recursos necessários para mitigação dos padecimentos do enfermo (dever de cuidar, finalidade terapêutico-paliativa), apesar de resultar um risco de morte, representa um perigo albergado (permitido) pelo Direito pátrio. Consectariamente, como a conduta não produziu situação que exorbitasse os lindes do risco permitido ao bem jurídico tutelado, não se lhe poderia imputar a responsabilidade penal pelo resultado lesivo (morte), não exsurgindo um juízo positivo de tipicidade penal derredor de si (do ato).
Quiçá, tecidas todas estas ponderações, se tenha conseguido alcançar um objetivo fundamental: suscitar uma mais profunda reflexão sobre o tema do que a que comumente tem tido lugar na doutrina nacional.