INTRODUÇÃO
A temática em torno da eficácia dos direitos fundamentais nas relações particulares mostra-se de extrema relevância na literatura jurídica especializada, porquanto já ultrapassada a ideia de que somente o Estado poderia interferir nos direitos fundamentais dos indivíduos, imolando-os ou protegendo-os. A sociedade atual, diante da globalização econômica e das mutações sociais, também pode interferir na liberdade e na dignidade das pessoas.
Diante disso, a doutrina comparada e a nacional se desdobram procurando as melhores fórmulas para que o desejo constitucional de respeito à dignidade da pessoa humana e de uma sociedade justa e solidária saíam do papel, de simples promessas irresponsáveis para a arena da efetividade.
O objetivo deste estudo, nesses termos, consiste na compreensão desse tema no Brasil, posições doutrinárias e jurisprudenciais, e percepção da atividade que o aplicador do direito exerce, ao se debruçar em torno da problemática disputa pela prevalência dos direitos fundamentais e da autonomia privada no caso concreto.
I. LEITURA CONSTITUCIONAL DO DIREITO PRIVADO
A relação entre o Direito Constitucional e o Direito Privado é muito antiga na história do Direito, sendo que, por muito tempo, o direito público e o privado foram vistos como dois universos diferentes, equidistantes entre si.
Contudo, a partir da implantação do modelo do Welfare State - em que o Estado age como agente de promoção, protetor e defensor social -, e do constitucionalismo social, verificou-se a presença de novas acepções na forma de encarar o direito privado.
A primeira delas, que é a publicização do direito privado, decorreu do modelo alemão de Estado, em que esse ente saiu da posição de isolamento e inércia, para promover, na lição de Sarmento (2006, p. 74) uma investida legislativa robusta, impregnada de políticas públicas e de diretrizes e valores diferenciados da antiga ideologia codicista. Determinavam-se assim condições mínimas para as relações privadas.
A segunda acepção correspondeu à fragmentação ou descodificação do direito privado, que basicamente transferiu a disciplina do direito privado do código para as leis esparsas. Ao ensejo, calha a lembrança o magistério de Carlos Roberto Gonçalves:
A complexidade e o dinamismo das relações sociais determinaram a criação, no país, de verdadeiros microssistemas jurídicos, decorrentes da edição de leis especiais de elevado alcance social e alargada abrangência, como a Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/77), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90), a Lei dos registros públicos (Lei nº 6.015/73) e outras, que fixam verdadeiro arcabouço normativo para setores inteiros retirados do Código Civil, provocando insinuações no sentido de que o Código Civil não estaria mais no centro do sistema legal, passando desempenhar, muitas vezes, um papel subsidiário, como no caso do Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90) e da Lei do Inquilinato (Lei n° 8.245/91), por exemplo (GONÇALVES, 2008, P. 18).
Cabe notar que esses microssistemas, ao contrário da legislação codicista e ainda que padeçam de incompletude normativa, trouxeram à baila o reconhecimento dos desníveis dos sujeitos das relações jurídicas, propondo-se a regulá-las da forma mais equânime possível.
Noutro prumo, há ainda a corrente da constitucionalização de certos princípios e institutos fundamentais do direito privado, que introduziu uma verdadeira migração desses institutos para o texto e disciplina constitucionais, dando novos efeitos hermenêuticos às normas privadas, que agora devem pautar-se na proteção e promoção de valores constitucionais, centrados na dignidade da pessoa humana. É o que alguns autores denominam de repersonalização do direito civil ou despatrimonialização do direito civil, em que se desloca o viés patrimonialista da seara cível para a consideração do ser humano.
II. A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA
A autonomia privada é, antes de qualquer outro comentário, um reflexo da liberdade tão desejada durante o período Absolutista e Iluminista, época marcada pela não-intervenção do Estado na esfera privada. A burguesia ditava as regras negociais à época, sendo a autonomia da vontade o referencial jurídico do sistema; assim as pessoas eram “livres”, na condição que tinham de total desigualdade social, para acertar as formas e modo que mais satisfizessem seus interesses.
No entanto, essa antiga noção de autonomia privada experimenta um processo de reformulação com a nova Constituição, eis que abandona os antigos contornos estritamente contratuais e ganha dimensões mais consentâneas com o princípio da dignidade da pessoa humana. Diga-se de passagem, por exemplo, que os valores constitucionais da função social, da supremacia do bem comum e do interesse social arrimaram as legislações vindouras de um novo ingrediente hermenêutico, cujo desiderato principal é a igualdade material entre as partes.
No tocante à fundamentação dessa tutela constitucional da autonomia privada, Daniel Sarmento pronuncia que:
(...) a ordem constitucional brasileira confere ampla proteção aos excluídos das condições necessária ao seu gozo. Ela protege a autonomia pública do cidadão, fortalecendo a democracia, mas também a autonomia privada. Em relação a esta, a tutela constitucional abrange tanto a dimensão existencial, como a econômica, mas, no primeiro caso, a faz-se mais intensa. Esta diferença se deve ao fato de que, pela concepção de pessoa e de sociedade adotada pelo constituinte, as liberdades existenciais são consideradas mais relevantes para o desenvolvimento da personalidade humana do que as econômicas. Já a autonomia negocial, que tem lastro no princípio da livre iniciativa, foi não apenas relativizada pelo texto magno, em razão da preocupação constitucional com a igualdade material e a solidariedade, como também instrumentalizada, em favor da proteção da dignidade da pessoa humana e da justiça social. (SARMENTO, 2006, p. 182)
III. TEORIAS QUE EXPLICAM A EFICÁCA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PARTICULARES
a) A corrente teórica que nega eficácia aos direitos fundamentais
Essa teoria, contrária à eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações particulares, baseia-se na visão do liberalismo clássico de supervalorização da liberdade/autonomia privadas. Para essa corrente, o único sujeito a quem seriam oponíveis os direitos fundamentais seria o Estado.
Nascida na Alemanha, foi mesmo nos Estados Unidos que acabou ganhando espaço, principalmente em função da própria literalidade do texto constitucional ianque, segundo o qual os direitos fundamentais.
Impõem limitações apenas para os Poderes Públicos e não atribuem aos particulares direitos frente a outros particulares, com exceção apenas da 13ª Emenda, que proibiu a escravidão. (SARMENTO, 2006, p. 189).
Sucede que, na própria Alemanha, essa teoria acabou perdendo espaço a partir da década de 50, em função das diversas decisões da Corte Constitucional que passaram a validar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Até mesmo nos Estados Unidos essa teoria sofreu reformulações, em particular, a partir do momento em que a Suprema Corte Americana passou a enxergar a possibilidade de os particulares, investidos de atividades tipicamente estatais, interferirem na esfera jurídica de outros particulares. Nascia assim, uma forma diferenciada dessa corrente teórica negativista (state action), ou seja, a public function theory.
Com efeito, Thiago Sombra (2007, p. 194-195) explica que nos Estados Unidos a questão da eficácia dos direitos fundamentais resolve-se a partir da constatação das atividades praticadas pelo agressor. O problema é que distinguir com exatidão se a natureza de determinado ato é pública ou privada, não é uma tarefa muito fácil, diante da multiplicidade de interações sociais.
Esboçando as premissas de solução, leciona Sombra que
Na primeira fase de análise, a corte buscará identificar inicialmente se o particular que causou o dano a um outro estava atuando em conformidade com a lei de sua jurisdição. O segundo aspecto a ser apreciado pela corte combina a função pública típica e o exame dos complexos precedentes de state action. Na segunda etapa da análise, a corte determinará se as ações dos particulares podem ser definidas como equivalentes às ações desempenhadas por um ente público. Realizada essa determinação, a Suprema Corte entendeu que as cortes devem sempre averiguar três fatores: 1) a proporção em que o particular agressor conta com o apoio e os benefícios governamentais; 2) se o ator está realizando uma função pública típica; 3) e se o dano causado é agravado em razão da presença da autoridade estatal (SOMBRA, 2007, p. 195)
A principal crítica à teoria da state action repousa no seu próprio fundamento, isto é, na proteção excessiva à liberdade individual.
b) Teoria da aplicação indireta ou mediata dos direitos fundamentais
A teoria da eficácia mediata ou indireta dos direitos fundamentais, por sua vez, é uma corrente intermediária entre a não-vinculação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares e a incidência direta dessa vinculação na esfera privada. Seu principal enfoque está na defesa de que os direitos fundamentais não ingressam nas relações privadas como direitos subjetivos, havendo inclusive a possibilidade de sua renúncia pelos particulares, o que demonstra sua forte tendência de proteção à autonomia privada.
Um ponto importante de discussão da teoria indireta, lembrado por Sombra (2007, p. 163), gira em torno do papel desempenhado, no primeiro momento, pelo legislador e, posteriormente, pelos magistrados, ao suprir o espaço normativo das cláusulas e conceitos abertos. Caberia ao Legislativo, nesse primeiro contato, determinar como será a efetivação e a extensão do alcance dos direitos fundamentais na esfera privada. Como infelizmente a atuação do legislador não conseguirá regular todas as situações tensas entre os direitos fundamentais, caberá aos juízes, diante dessa insuficiência, atuar para que haja a conformação no âmbito privado. A propósito, leciona Sarmento que
(...) as cláusulas indeterminadas criadas pelo legislador, levando em consideração os direitos fundamentais, bem como rejeitar, por inconstitucionalidade, a aplicação das normas privadas incompatíveis com tais direitos. (SARMENTO, 2006, p. 200)
Dentre as decisões que firmaram entendimento acerca da teoria mediata dos direitos fundamentais, a mais conhecida e mais utilizada na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão é o Caso Lüth, datado de 1958, quando o então crítico de cinema Erich Lüth decide clamar a todos, público e distribuidores de filmes cinematográficos, para que boicotem o filme “UnsterblicheGeliebte”, lançado pelo diretor anti-semita Veit Harlan. Diante desse fato, o diretor propõe uma ação cominatória, com base no § 826 do Código Civil Alemão – BGB, requerendo que seja cessado o boicote, assim como pleiteia uma indenização, tendo sido julgado o pleito procedente pelo Tribunal Estadual de Hamburgo.
Contra ela, ele interpôs um recurso de apelação junto ao Tribunal superior de Hamburgo e, ao mesmo tempo, uma Reclamação Constitucional, alegando violação do seu direito constitucional fundamental à liberdade de expressão do pensamento, garantida pelo art. 5, I, 1, GG. O Tribunal Constitucional Federal julgou a Reclamação procedente e revogou a decisão do Tribunal Estadual (DIMOULIS, 2007, p. 264)
A teoria da eficácia indireta é criticada em diversos aspectos, dentre eles, merece registro a crítica de Sarmento (2006, p. 204), segundo a qual o influxo de valores constitucionais na seara privada pode causar instabilidade jurídica, em particular, pelo enfraquecimento do princípio da legalidade.
c) Teoria da aplicação imediata e direta dos direitos fundamentais
Por outro lado, a teoria da eficácia imediata dos diretos fundamentais na esfera privada, articulada também na Alemanha da década de 50, destaca o reconhecimento da eficácia dos direitos fundamentais no âmbito privado, sem desconsiderar a liberdade individual e a necessidade de ponderar o direito fundamental em jogo com a autonomia privada dos particulares envolvidos no caso.
No direito português, lembra Sarmento (2006, p. 208) que a questão da vinculação dos direitos fundamentais envolvendo particulares encontra-se esposada no próprio texto constitucional, através do art. 18.1: os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. Com base nele, grande parte da doutrina é adepta da teoria imediata, cada uma com suas peculiaridades.
Entre os doutrinadores há os que, conforme Sarmento (2006, p. 211), aderiram à teoria de forma incondicional, como a autora Ana Prata (1982), que propala o necessário respeito que as entidades privadas devem ter para com os direitos constitucionais, partindo também da crença que a teoria imediata é capaz de corrigir os abismos sociais.
Jorge Miranda (1988), por sua vez, como salienta Sarmento (2006, p. 211), não se posiciona entre as teorias de eficácia de direitos fundamentais nas relações privadas, se imediata ou indireta. Seu entendimento cinge-se
A destacar as diversas dificuldades que cercam a extensão dos direitos fundamentais para o âmbito das relações privadas, concernentes sobretudo à necessidade de conciliação entre tais direitos e a proteção da autonomia privada. (…) (e a propor) a adoção de soluções tópicas, que busquem a concordância prática entre os direitos fundamentais e a autonomia privada, mas que não permitam o sacrifício do núcleo essencial destes direitos, nem mesmo caso de auto-restrições (SARMENTO, 2006, p. 211 e 212)
Sombra (2007, p. 186) adverte que as críticas à teoria imediata ou direta partem principalmente do medo que ela possa descaracterizar o Direito Privado, eis que a aplicação de um direito fundamental nas relações particulares, em especial, a contratual, poderia sugerir supressão da autonomia da vontade.
III. COMO O TEMA É ABORDADO NO BRASIL
A literatura jurídica nacional acerca da vinculação dos direitos fundamentais às relações privadas, em sua maioria, prefere a corrente doutrinária que advoga a eficácia imediata.
Ingo Wolfang Sarlet (2007, p. 289) é um importante defensor da eficácia imediata, e prega a plena aplicabilidade do art. 5°, §1°, da CRFB/88, embora reconheça a necessidade de soluções diferenciadas reclamadas pelas peculiaridades e especificidades de cada caso concreto.
Daniel Sarmento também é favorável à teoria imediata e entende que
A tutela dos direitos individuais nas relações privadas não se esgota na garantia de uma obrigação geral de abstenção, nem na reparação dos danos pelas lesões perpetradas, através da responsabilidade civil. A proteção conferida pela ordem constitucional é mais ampla, e envolve tanto uma tutela preventiva dos direitos como uma atuação repressiva e corretiva. Ademais, ela pode abranger tanto obrigações negativas do particular, como deveres positivos, dependendo das circunstancias de cada caso e da concreta configuração dos interesses em jogo (SARMENTO, 2006, p. 259).
Na jurisprudência, a abordagem do tema é atual. O STF, por exemplo, só começou a enfrentar a questão na década de 90, com o Recurso Extraordinário nº 158.215/RS (onde ficou assentado que as entidades privadas devem obediência aos princípios do devido processo legal) e o RE 161.243/DF da Air France (que declarou a eficácia do direito fundamental à igualdade na relação entre particulares, entre trabalhadores franceses ou não). Mas foi mesmo o caso emblemático da UBC que se tornou o marco jurisprudencial sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. O mencionado precedente restou assim redigido:
"SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa" (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. (STF - RE: 201819 RJ , Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 11/10/2005, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577)
CONCLUSÃO
No presente trabalho foi ressaltado que com a nova ordem constitucional abandonou-se de vez o individualismo do Estado liberal, para a necessidade do olhar coletivo, perspectiva em que vicejou o processo de constitucionalização do Direito Privado, que decorre não apenas do fato de a Constituição passar a tratar de alguns princípios e institutos privados no seu texto, mas também da dimensão objetiva assumida pelos direitos fundamentais, a chamada eficácia irradiante.
Diante disso, abordamos as teorias que foram formuladas acerca da vinculação ou não dos direitos fundamentais nas relações privadas. A primeira comentada foi a state action, que nega a eficácia desses direitos no campo privado, por entender que o único sujeito passivo desses direitos é o Estado. Com a public function theory, a teoria ganha novas feições, pois passa a admitir a possibilidade de vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, quando estiverem os particulares no exercício de atividades de natureza tipicamente estatal.
Por outro lado, ressaltamos também as teorias alemãs da eficácia imediata/direta dos direitos fundamentais nas relações privadas e a teoria mediata/indireta. Ambas, a seu modo, acreditam nessa vinculação. A primeira, afirma que os direitos fundamentais incidem diretamente nas relações inter-particulares, sem necessidade de mediação por parte do legislador. Já para a teoria mediata/indireta, a incidência dos direitos fundamentais na esfera privada ocorre através da mediação estatal, no primeiro momento pelo legislador (que ao criar as normas deve-se atentar aos direitos fundamentais, por ele considerado como valores interpretativos), e num segundo momento, em caso de insuficiência do legislativo, pelo Judiciário (que aplicará as “cláusulas gerais” e os “conceitos jurídicos indeterminados”), delimitando até que ponto incidirão os direitos fundamentais nas relações privadas.
Abordamos, ainda, o posicionamento majoritário nacional pela existência de vinculação direta e imediata dos direitos fundamentais.
Por derradeiro, conclui-se pela inexistência de respostas prontas quando o assunto é a eficácia dos direitos fundamentais nas relações particulares. O que se sabe, com certeza, é que o aplicador do direito sempre deve pautar a sua atividade nos valores constitucionais e no restabelecimento da justiça nos casos de conflito entre particulares.
REFERÊNCIAS
DIMOLIUS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva 2008, v. 1.
SARLET, Ingo Wolfang. A Eficácia dos direitos fundamentais. 7.ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007.
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
SOMBRA, Thiago Luís Santos. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas: a identificação do contrato como ponto de encontro dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fábris Ed., 2004.