O Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil

28/11/2014 às 14:58
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Uma análise sobre as características em comum do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil de 2003, citando seus princípios mais importantes e diferenciando-os nos casos em que são aplicados.

Código Civil é a lei que regulamenta a ordem jurídica privada no âmbito infraconstitucional. O Código Civil de 1916 estava defasado, haja vista que foi editado na vigência na Constituição de 1891 e continuou vigorando sob égide das Constituições de 1930, de 1937, de 1946, de 1967, de 1969 até a de 1988. Portanto, pode-se concluir que era uma legislação que possuía conotação política diferente da que norteia o Direito atual.

  Assim, a finalidade do Código Civil é tratar dos sujeitos de direitos, dos bens, dos negócios jurídicos etc, tudo isso através de livros diferentes que tratam das obrigações, dos contratos, dos direitos das coisas, da família e sucessões. Ou seja, o Código Civil estabelece a disciplina de cada instituto de Direito Privado.

  Já o Código de Defesa do Consumidor tem outra finalidade, sendo esta estabelecida pela Constituição de 1988 no art. 5°, XXXII, que determina ao Estado promover a defesa do consumidor, pressupondo-se que há desigualdade entre o fornecedor e o consumidor, em desfavor deste. O Código de Defesa de Consumidor trata o consumidor como ocupante de uma posição de vulnerabilidade e fragilidade, devendo, por isso, ser protegido. Ademais, busca também estabelecer uma política nacional de consumo, uniformizando o direito aplicável nas relações consumeiristas e promover a igualdade substancial nessas relações.

  O Código de Defesa do Consumidor é uma lei principiológica, estruturada em princípios e cláusulas gerais do Direito Civil. Já o Código Civil é uma norma de disciplina social, com regras tipificadoras de condutas e disciplinantes de várias espécies de contratos. O Código do Consumidor não disciplina nenhum contrato, apenas estabelece uma estrutura jurídica a ser aplicada em todas as relações de consumo, é como um minissistema aplicado às relações de consumo.

  Desta forma, um contrato de seguro será sempre um contrato de seguro, com a sua regulamentação e proibições previstas no Código Civil, contudo, se este contrato gerar uma relação de consumo, incidirá os princípios e regras do Código do Consumidor. Portanto, cada código tem a sua razão de existir não havendo, em princípio, antinomias entre suas normas.

  O novo Código Civil adotou a mesma técnica legislativa do Código da Lei n° 8.078/1990, utilizando-se de princípios, cláusulas gerais e conceitos abertos, ao contrário do que ocorria com o Código de 1916.

 A utilização de cláusulas gerais é um fenômeno moderno, haja vista que a sociedade moderna tornou-se mais complexa, não sendo possível legislar prevendo todas as situações em concreto que irão ocorrer na vida social. Assim, as cláusulas gerais formam uma “moldura” dentro da qual deverá o intérprete da lei adequar o caso concreto.

  Há quem defenda que o Código Civil de 2002 adotou os mesmos princípios do Código do Consumidor, alinhando a ordem jurídica civilista, causando uma maior aceitação dos princípios consumeiristas. Como exemplo, podemos citar o princípio da boa-fé, previsto expressamente no artigo 6°, inciso VIII e artigo 51, inciso IV, mas ressaltado várias vezes pelo Código do Consumidor. O novo Código Civil também prevê, como antes visto, o princípio da boa-fé como instrumento básico para interpretação dos contratos (mesmo aqueles que não estipulam relações de consumo), só que de modo mais veemente do que na Lei n° 8.078/1990. É por isso que a eticidade passou a ser uma das principais características do novo Código. Toda essa mudança legislativa que ocorreu com a publicação do Código do Consumidor e do novo Código Civil deve-se a uma reação ao liberalismo desenfreado, onde se pregava a igualdade de tratamento das partes, apesar de não o serem, e a busca do lucro que muitas vezes usava de métodos que ludibriavam as pessoas e lesavam os mais fracos.

  Portanto, a nova ordem jurídica tenta resgatar valores éticos e morais também para o mundo negocial através do princípio da boa-fé. A boa-fé, além de medida de decisão judicial é também medida objetiva de conduta, paradigma não só para os contratantes como também para qualquer pessoa titular de direitos, segundo interpretação do artigo 187 do Código Civil.

    Não há incompatibilidade entre a boa-fé do novo Código Civil e do Código do Consumidor, pois além de ser necessária a boa-fé nas relações de consumo, também é nas relações empresariais, mesmo quando as partes ocupam posição de igualdade substancial e material.

  Outra consequência da boa-fé é o dever de informar, que nas relações de consumo se aplicam ao fornecedor do produto ou serviço, que tem a obrigação de não esconder nada, enquanto no Código Civil todas as partes terão o dever de informar, ampliando a abrangência do princípio trazido para defender os consumidores.

  Também pode-se constatar influência do Código do Consumidor sobre o Código Civil na redação do artigo 423 que dispõe:

  “Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-à adotar a interpretação mais favorável ao aderente.”

  Vê-se que esse artigo nada mais é do que a regra contida no art. 47 do CDC, só que em outros termos, pois este assim coloca:

  “Art.47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”.

  Portanto, pode-se afirmar que o princípio da boa-fé incide a todo momento nas disposições tanto do Código Civil como do Código do Consumidor.

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  Ademais, outros princípios previstos no Código do Consumidor foram também repetidos no Código Civil, tal como a equidade, também chamada de “equivalência material das obrigações”. No CDC há previsão no artigo 6°, inciso III, que permite a revisão do contrato se houver desequilíbrio acentuado contra o consumidor. È a cláusula específica das relações de consumo porque pressupõe que o consumidor é a parte mais vulnerável da relação. Entre iguais, tal disposição não haveria de existir. No entanto, a prática demonstra que não é bem assim, pois mesmo entre pessoas iguais poderão advir razões externas que acarretem o desequilíbrio nas prestações contratuais. Assim, o Código Civil nos artigos 317 e 478 traz disposição com a mesma ratio do Código do Consumidor.

  Outro princípio que está previsto, ainda que implicitamente, no Código do Consumidor e foi repetido no Código Civil de 2002 é o da função social do contrato, previsto expressamente no artigo 421. A autonomia da vontade de contratar o que se quer e com quem se quer está, agora, limitada à função social do contrato. Importante lembrar que a própria Constituição Federal de 1988 já previa a função social da propriedade como limite à sua exploração, não sendo mais um direito absoluto, tal como o era na Idade Média. Desta forma, não se pode utilizar da propriedade de forma a contrariar sua função social. Do mesmo modo, a função social dos contratos limita a sua utilização, ou seja, nenhuma convenção particular poderá ir de encontro à função social do contrato.

  Ainda, em termos de responsabilidade civil os dois códigos também adotaram entendimentos semelhantes. O novo Código Civil traz, em seu artigo 927, parágrafo único, disposição que consagra a responsabilidade objetiva do ofensor quando a lei (especial) assim prever. Esta é a responsabilidade também prevista nos artigos 12 e 14 do Código do Consumidor, só que neste é mais bem especificado o que é serviço defeituoso e quando ele é defeituoso, pois o Código Civil nada diz a respeito.

  Da análise exposta, pode-se concluir que o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor seguem a mesma linha jurídica. Para o Código do Consumidor foi mais difícil enfrentar a mudança de paradigma, pois encontrou uma ordem jurídica baseada em princípios liberais e muitas vezes, antiética, o que gerou muita resistência à sua aplicação.

  Mas hoje, com a sincronia da legislação, os princípios do CDC e do CC estão sedimentando-se, mas é importante frisar que aquele continuará a ser aplicado apenas quando houver relação de consumo.

  

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Sobre a autora
Maira Cauhi Wanderley

Procuradora Federal, membro da AGU.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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