O trabalho humano, sua contextualização histórica e (des)valoração como instrumento de equilíbrio social

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23/12/2014 às 15:05
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O trabalho humano de há muito perdeu seu status de elemento de cooperação para assumir caráter meramente obrigacional. Perdeu transcendência ao longo do caminho, tornou-se banalizado e não mais afigura como instrumento de equilíbrio das relações sociais.

  1. INTRODUÇÃO

Certo é que o homem sempre trabalhou[2], servindo aos mais variados e antagônicos propósitos, de forma livre ou subjugada, para si ou para outrem.

Lançando um olhar sobre a história do trabalho humano, percebe-se que este, em seus primórdios, emergiu como elemento de cooperação[3] entre os homens, seja para a consecução de objetivos comuns ou para satisfação própria. Tanto assim, que os homens aliaram seus esforços em prol da subsistência e da resistência, na busca ou produção de alimentos ou no feitio de armas e instrumentos de defesa[4].

Subsistência e defesa, necessidades mínimas que compeliram os homens a conjugar forças. Instintos outros, porém, suplantaram essas duas necessidades e transmudaram o labor humano em objeto de disputa e de subordinação.

E assim o trabalho humano abandonou seu status de elemento de cooperação para assumir um caráter de mera obrigação, perpassando diversas fases. E o sentido social dessa relação jurídica[5] perdeu-se ao longo do caminho. Perdeu-se a ponto de restar banalizado e passar incógnito à análise pouco acurada de sua expressiva significação como forte instrumento de equilíbrio das relações humanas.

2   HISTÓRIA DO TRABALHO HUMANO

Segundo FERRARI[6], o estudo do trabalho humano se confunde com a própria antropologia, envolvendo toda a personalidade, sentimental, intelectual e volitiva.

Tanto assim que, retratado em suas diversas fases de maturação e encarado pelos mais variados ângulos, o trabalho humano já foi tido como maldição, castigo ou até mesmo como dor, como relata BRITO FILHO[7]. “Na antiguidade”, continua, “era visto como atividade menor, sendo tarefa reservada aos escravos e àqueles que não pertenciam às classes mais favorecias, dentro das sociedades[8].

Na Grécia antiga cabia aos escravos o trabalho servil, ficando o cidadão liberado do esforço físico para se dedicar ao pensamento (filosofia) e governo da Polis (política), como resume MARTINS FILHO[9].

Essa noção de inferioridade relacionada ao trabalho talvez possa ser explicada pelo fato de que, por natural, o trabalho causa fadiga ao corpo e entorpece o espírito[10], argumento aliás rebatido pelo fato de que, se por um lado o trabalho tem seus aspectos penosos, por outro lado produz satisfação ao espírito do homem, “tanto que há uma certa alegria no trabalho”, como adverte BATTAGLIA[11].

A propósito, SOUTO MAIOR, citando CHAUÍ[12], relata que o fato de não haver na língua grega qualquer palavra que signifique “trabalho” revela um claro sintoma de seu desprezo, uma vez que é utilizada a palavra grega “ergon” (obra) ou “ponos” (esforço penoso, doloroso), sendo esta última a correspondente do latim “labor” (pena, fadiga, cansaço, dor).

A própria análise etimológica explica essa contextualização, uma vez que a palavra trabalho aparece como oriunda do Latim tripaliare (martirizar com o tripalium[13]). Os homens livres dispunham de “otium” (lazer) e os não livres estavam no “negotium” (negação de ócio, trabalho), arremata CHAUÍ[14].

E assim foi durante longos anos, desde a sua origem etimológica, que o trabalho encerrou valores ora penosos, ora desprezíveis, passando a desfrutar de um sentido mais digno com o cristianismo, como concluem BARROS[15] e MARTINS FILHO[16], ao reforçar ter vindo o cristianismo fazer recordar “a dignidade original do homem, como pessoa, que não se compatibiliza com o regime da escravidão”.

De acordo com o pensamento maniqueísta (séc. III), o trabalho vai além da cooperação e da subsistência, serve em seus propósitos como essência para eliminar os perigos do ócio, sem que para tanto tenha que se fazer uma distinção entre o trabalho manual e o trabalho intelectual[17].

Pela narrativa de SOUTO MAIOR extraída de Battaglia[18], no transcorrer do século XIII, São Francisco de Assis fundou uma Ordem pela qual o trabalho adquire a feição de proporcionar felicidade na medida em que favorece a alegria do espírito. Já Santo Agostinho oferece sua visão ao distinguir trabalho de trabalho: “É lícito o artesanato, o pequeno comércio, a agricultura; não o é, pelo contrário, a usura”. São Tomás de Aquino distingue a natureza e o uso (os bens são concedidos ao homem, que apenas as administra portanto são de uso comum), ensejando duas ilações: a um, a propriedade privada deve cumprir uma função social e a dois, quem deseja possuir mais do que o necessário peca por alimentar o espírito de ambição, turba a ordem social, prejudicando as necessidades alheias[19].

No século XIV, caminhando a história para a baixa Idade Média e com o feudalismo prestes a ruir, emerge o pensamento dos humanistas, rompendo com os padrões de estudo tradicionais das universidades medievais, por conseguinte enaltecendo o trabalho e colocando o homem como artífice de seu destino. Segue-se, então, o reconhecimento que o trabalho, outrora considerado como pena pelo pecado original[20] e uma indignação para o homem livre, reafirma sua condição de essência da valorização do homem, enquanto ser racional[21].

Naturalmente, as mudanças de pensamento na baixa Idade Média enfraqueceram os poderes da Igreja e dos senhores feudais, inclusive os utopistas, que idealizavam uma sociedade na qual “os homens vivem e trabalham com fartura, paz e mantendo relações fraternais”, sendo necessário um poder centralizado, “justo racional e inspirado” – portanto legítimo e incontestável[22].

Com o advento do protestantismo, pelas concepções inspiradas por Lutero e Calvino, o trabalho passa a adquirir novos contornos, formando mesmo uma base para a consciência capitalista. O primeiro apregoando que o trabalho deve ser visto como uma vocação divina e, portanto, todo trabalho é santo e digno. Para o calvinismo, o trabalho não eleva, não possui qualquer fim; trabalha-se porque assim foi predestinado a uma classe de homens, devendo ser conduzido à realização de boas obras. E assim, conclui SOUTO MAIOR[23], a finalidade econômica do trabalho (o trabalho pelo trabalho), sem uma preocupação transcendente, impulsiona o pensamento da humanidade moderna em direção ao capitalismo.

O liberalismo econômico, resultado de uma reação contra o absolutismo monárquico e a origem divina sobrenatural do poder, surgiu o pensamento de que a riqueza das nações só é possível mediante a espontaneidade e o interesse de quem trabalha e, para tal, a pessoa deve ser livre[24].

Foi, contudo, com a revolução industrial que as mudanças no setor produtivo deram origem à chama da “classe operária”, com profundas e indeléveis transformações nas relações sociais. Salários ínfimos, exaustivas jornadas, condições de higiene e segurança precárias eram as características desse período.

O trabalho passou a ser considerado mercadoria, com seu preço fixado e estabilizado próximo ao nível da sobrevivência (Lei de Bronze), o que levou Karl Marx a tecer duras críticas ao sistema, alertando para o empobrecimento do proletariado vinculado à acumulação de capital pelos burgueses e despertando a consciência coletiva do trabalhador, que passou então a exigir soluções para a questão social[25].

3   A MERCANTILIZAÇÃO DO TRABALHO HUMANO

O trabalho humano, como relatado, em seus primórdios destinado apenas a sobrevivência e proteção – como a caça de alimentos produção de roupas, armas e habitação segura – desdobrou-se em tantas e numerosas tarefas, a ponto de se tornar inevitável sua divisão entre os componentes do grupo ou tribo[26].

Uma vez vencida a necessidade própria, ou do grupo, essa divisão de tarefas passou a servir também a outros interesses como a disputa de espaços, caças e territórios entre as tribos e outros agrupamentos. Como decorrência de tal disputa, os vencedores matavam os vencidos até que passaram à percepção de que seria mais “útil” escravizá-los e se servirem de seu trabalho[27] do que eliminá-los.

Os mais valentes e que faziam o maior número de prisioneiros passaram a vender, alugar ou trocar os excedentes à sua necessidade. Iniciada estava a mercantilização do homem pelo homem[28].

Essa mercantilização, por arrendamento, da mão de obra de escravos de um senhor por outro (séc. VII e VI a.C.)[29] chamou a atenção dos homens livres, que também passaram a oferecer seus serviços sob tal modalidade contratual e nas mesmas condições. Tal contrato, denominado genericamente no Direito Romano antigo de “locatio conductio”, formava-se por um ajuste consensual por meio do qual um se obrigava a fornecer algo, entregar uma obra ou prestar um serviço, em troca de um preço (“merces” ou “pensio”)[30].

A “locatio conductio”, sob um prisma jurídico, nas lições de BARROS[31], dividia-se em três espécies: a) “locatio conductio rei”, uso e gozo de uma coisa; b) “locatio operis faciendi” ou empreitada e, por fim, c) “locatio conductio operarum“ como antecessor do contrato de trabalho, cuja remuneração era fixada tendo em vista o tempo gasto, não o resultado do trabalho e o “conductor” assumia os riscos, com poder diretivo sobre o “locator”.

4   ESCRAVIDÃO E FEUDALISMO

A escravidão constituiu-se, na antiguidade, como base de relações sociais e também econômicas dos povos que a exploravam, fomentada pelas guerras que se incumbia de trazer consigo o domínio dos perdedores e seu subjugo[32].

O escravo, por sua vez, despossuído de personalidade jurídica como sujeito de direito, era tido como “coisa” pertencente ao seu senhor, sem se cogitar de qualquer espécie de contrato ou de consentimento.

Com o passar do tempo (séc. III, d. C.), registram os historiadores[33], a mão de obra escrava tornou-se escassa por três motivos determinantes: a) militar: os romanos passaram a estender o direito de cidadania a povos conquistados; b) religioso: expansão do cristianismo que conferia à liberdade um dom natural e c) econômico: os latifúndios começaram a se dividir e a escravidão tornou-se por demais onerosa aos proprietários.

Somando a esses fatores, iniciou-se um processo de “ruralização” do Império Romano – com sua descentralização política e administrativa, o que serviu de base para o sistema feudal – seguido do arrendamento das terras divididas para os camponeses (colonos), constituídos de agricultores livres, escravos libertados e plebeus. Esse arrendamento, em verdade, submetia os camponeses aos proprietários “por laços pessoais e jurídicos muito rígidos”[34], inclusive com a obrigação de trabalharem para estes alguns dias por semana.

O temor das invasões bárbaras levou alguns pequenos proprietários a se colocarem sob a proteção de grandes proprietários, formando vilas, protegidas por muros e fossos, onde era exercido o comércio de seus excedentes de produção em feiras internas, prenunciando o sistema feudal. A queda do último imperador Romano, Rômulo Augusto, registrou o fim da Antiguidade e início da Idade Média (476, d.C.).

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Durante o sistema feudal, a economia era voltada para o consumo imediato, sem circulação de dinheiro e baseada na posse da terra. Prevalecia a chamada “imobilidade social” ou estamental, segundo a qual a sociedade era dividida em: guerreiros, homens livres inferiores (vilões) e escravos e quem pertencia a uma camada não podia passar a outro “status” [35].

O senhor detinha a posse da terra, do servo, além do poder militar, político e judiciário. O servo detinha a posse útil da terra e o direito de ser protegido pelo senhor. Havia ainda os escravos, pouco numerosos e sem direitos, dedicados aos serviços domésticos e os ministeriais, que eram administradores das propriedades feudais e podiam chegar ascender a cavaleiros, integrados à pequena nobreza[36].

Uma observação feita por SOUTO MAIOR[37] chama a atenção para o fato de que o servo, muito embora não fosse escravo, deste não se diferenciava muito por desfrutar de uma liberdade aparente, tantas eram suas dívidas para com o senhor, a ponto de pagar-lhe, além de produtos ou dinheiro, também com seu trabalho em determinados dias da semana (corveia).

Assim, a servidão pode ser tida como uma característica marcante do feudalismo, voltada para a subsistência mediante produção rudimentar e tendo como vínculo básico a posse da terra e a proteção pelo senhor feudal.

5   AS CORPORAÇÕES DE OFÍCIO

Uma vez terminadas as investidas de conquistas dos povos germânicos, ainda no vigor da Idade Média (séc. XI), inicia-se um período de comercialização dos excedentes dos feudos favorecido pelo crescimento da população e o aumento da circulação de mercadorias, marcando o renascimento do comércio na Europa[38].

O efeito mais evidente desse processo foi o fortalecimento das relações em centros urbanos, a reurbanização, com as atividades comerciais e dos artesãos, voltadas para um mercado consumidor, destacando-se as atividades de carpinteiros, açougueiros, padeiros. As cidades (burgos) cresciam e surgiam outras camadas sociais, dos artesão e comerciantes (burgueses) que se uniam em confrarias.

Os comerciantes formaram as guildas e os artesãos, mais tarde, as corporações de ofício[39], esta última, de grande relevância na história do Direito do Trabalho.

A estrutura das corporações de ofício consistia em três graduações: mestre (artesão), o oficial (jornaleiro ou companheiro) e o aprendiz.

O mestre, que recebia esse título por ter executado uma obra prima ou por suas aptidões profissionais, no entanto, segundo relato de BARROS[40], aos poucos – no seio das corporações de ofício – foram se instalando verdadeiras “oligarquias”.

O mestre exercia o controle do conhecimento, da produção e do comércio dos produtos. Os aprendizes eram entregues por seus pais aos mestres para contratos que durariam de dois a doze anos, dependendo da complexidade do ofício, ficando o mestre com o direito de custódia[41] e o menor com o dever de obediência. Tal fato, historiado por HUBERMAN[42], representava um acordo entre a criança, seus pais e o mestre em troca de pequeno pagamento.

Ao fim do aprendizado, os aprendizes ascendiam à condição de oficiais e podiam exercer suas atividades em locais públicos.

Logo as Corporações de Ofício foram reguladas por estatutos, que passaram a regular o tempo de trabalho, as técnicas de fabricação, a forma de produção bem como a retribuição para os companheiros, esta última não pela necessidade dos trabalhadores, mas com o objetivo de evitar a livre concorrência que poderia surgir caso os mestres detivessem os critérios de fixação dos salários[43]. A essas alturas, o antigo aspecto contratual cedeu lugar às regras da Corporação de Ofício, aplicáveis a todos os seus membros.

Em especial na França do século XII, esses estatutos visavam a assegurar a lealdade da fabricação e a excelência das mercadorias, em especial no setor industrial da tecelagem e da alimentação, com rigorosa fiscalização inclusive na matéria prima[44].

Na Inglaterra, as corporações também monopolizavam a profissão e quem não se lhes pertencesse não poderia exercer as atividades que regulavam, tanto na indústria como no comércio[45]. Esse espírito monopolista alcançou elevados limites, chegando ao ponto de alongar a duração do aprendizado e vedar trabalho aos artesãos estrangeiros[46].

De acordo com MARTINS[47], as características resultantes das Corporações de Ofício podem ser assim descritas: a) estrutura hierárquica; b) regular a capacidade produtiva; c) regulamentar a técnica de produção. Acresce-se a essas características o fato de que havia um aspecto integrativo e, de certa forma, de natureza solidária nas Corporações de Ofício, por cuidarem da assistência aos desempregados e da concessão de aposentadoria[48].

A queda desse regime deu-se, dentre outros fatores, pela dissipação do espírito de fraternidade, pelos abusos praticados pelos mestres, que provocaram frequentes revoltas nos oficiais em virtude da tendência oligárquica de transformar o ofício em um bem de família e ainda por seu apego a formas superadas de produção.

Assim, as Corporações atingiram seu apogeu no século XIII e iniciaram seu declínio já nos séculos XIV e XV. Mas foi no século XVIII, precisamente nos anos de 1776 (Edito de Turgort) e 1791 (Lei Chapelier) que o liberalismo as extinguiu, pelos ideais que se instalaram, retratados na frase mestra do pensamento liberal de Vincent Gournay (1712-1759): “Laissez-faire, laissez-passer, le monde va de lui même”[49].

6   TRABALHO LIVRE

Apartados Estado e Sociedade sob a influência de ideais iluministas, com a justificação da propriedade privada e ainda sob o advento da revolução industrial, instalou-se sem retrocesso a liberdade para o exercício das profissões, artes ou ofícios e, via de consequência, para as livres contratações, o que se constata no Código Civil Francês (ou Napoleônico) de 1804, por seu artigo 1134: “as convenções têm força de lei para os que a celebraram”. Contudo, tratou o trabalho humano no capítulo destinado a locação e em apenas dois artigos, como relata BARROS[50]:

“O primeiro desses artigos dispunha que o trabalhador só poderia se obrigar por certo tempo ou para a execução de determinada obra, e o segundo consubstanciava-se na determinação de que o empregador merece crédito pela sua afirmação no tocante aos salários pagos anualmente.” (grifos da autora)

E segue na explicação: “Ao se instituir o contrato a prazo, proibia-se o trabalho por toda a vida com o objetivo de evitar o reaparecimento da escravidão”, pois que a obrigação de trabalhar por toda a vida para alguém fatalmente implicaria na alienação do direito natural do homem à liberdade. Por outro lado, resta nítida a parcialidade em favor dos interesses do empregador ao creditar-lhe a afirmação de salários pagos, de forma objetiva.

Seguiram a influência napoleônica os códigos elaborados no século XIX e início do século XX, como o Código Civil Argentino, o Espanhol e o brasileiro, de 1916, também imiscuindo o serviço humano à locação de coisas ou de animais; já o Código Civil Alemão (1896) estabelecia a separação entre ambos[51].

Contudo, a virada histórica para o novo modelo (liberal) estabeleceu uma relação de igualdade entre desiguais, vez que permitiu ao empregador usufruir de um poder diretivo em face de uma mão de obra obrigatória e necessariamente subordinada.

DELGADO[52], ao discorrer sobre a história do Direito do Trabalho, realça a “falácia da proposição jurídica individualista liberal enquanto modelo explicativo da relação empregatícia” por enxergar os sujeitos dessa relação como “seres individuais singelos”, quando na verdade o empregador “sempre foi um ser coletivo, (...) cuja vontade era hábil a detonar ações e repercussões de impacto social”, muito além do âmbito da comunidade laboral.

O poder entregue ao empregador foi tamanho que os registros históricos superabundam em relatos de explorações extremas, e até mesmo cruéis, como no Relatório Villermé[53] (Tableau de l'état physique et moral des ouvriers), em 1826, que serviu de base para a criação de um movimento popular que levaria à primeira lei francesa relativa às condições de trabalho em 1841[54]:

“Só 27 dos filhos dos operários empregados chegavam a completar 10 anos de idade e os outros morriam entre sete e dez anos. Eles trabalhavam 16 a 17 horas diárias. “Isso não é trabalho que se impõe a crianças de seis a oito anos, mal alimentadas, obrigadas a percorrer, desde as 5 horas da manhã, grandes distâncias que os separa das fábricas. Em 1871, a autoridade médica inglesa informou ter encontrado uma criança de três anos em uma fábrica de fósforo de Berthnal Green”.

Na Inglaterra uma Comissão chefiada por Michael Saddler em 1832 concluiu em seu relatório, após extensa lista de perguntas dirigidas aos operários:

“Diante desta Comissão desfilou longa procissão de trabalhadores – homens e mulheres, meninos e meninas, abobalhados, doentes, deformados, degradados na sua qualidade humana, cada um deles era clara evidência de uma vida arruinada, um quadro vivo da crueldade humana do homem para o homem, uma impiedosa condenação daqueles legisladores que quando em suas mãos detinham poder imenso, abandonaram os fracos à capacidade dos fortes”.

Criticado, inclusive por ENGELS[55], pela paixão com que conduziu as investigações, foi determinada uma nova comissão pelo Parlamento Inglês, que naturalmente amenizou a condição dos industriais, sem contudo impedir que chegasse a conclusões semelhantes quanto ao novo relatório, como a de Engels:

“Nada é mais revoltante do que ver, nesse relatório, de um lado o largo elenco de doenças e mutilações causadas pelo excesso de trabalho contraposto, de outro lado, ao frio cálculo da economia política do industrial, que tenta demonstrar estatisticamente que ficaria arruinado – e, com ele, toda a Inglaterra – se o impedissem de continuar estropiando, ano após ano, tantas e tantas crianças.”

A Factory Act[56], que, dentre outros, proibiu o trabalho a menores de 9 anos, limitou a jornada a 9 horas diárias às crianças entre 9 e 13 anos e estabeleceu a frequência escolar obrigatória, foi editada em 1833 sob o impacto dessas Comissões.

Chegou a ponto de se afirmar, como no pensamento de Lacordaire, advogado e religioso francês do século XIX citado por BARROS[57]: “Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, é a liberdade que escraviza e é a lei que liberta”.

Uma curiosidade a respeito da tecnologia, que paradoxalmente liberta, mas ao mesmo tempo aprisiona o homem é a invenção do lampião a gás, em 1792 por William Murdock: o trabalho nas indústrias passou desde então a ser exigido também no período noturno[58].

Não tardou a despontarem os marcos trabalhistas na história do trabalho humano, como o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels (1848) bem como o advento da Conferência de Berlim (1890) que, sem resultados aparentes imediatos, trouxe a lume pontos importantes como a duração do trabalho, descanso semanal, férias, reunindo 14 países, como informa MORAES FILHO[59]. Há, também, a voz não menos expressiva do Papa Leão XIII em sua emblemática Encíclica Rerum Novarum, de 15 de maio de 1891[60]:

“O trabalho do corpo, pelo testemunho comum da razão e da filosofia cristã, longe de ser um objeto de vergonha, honra o homem, porque lhe fornece um nobre meio de sustentar a sua vida. O que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços”.

Evidente fica o anseio de liberdade, na acepção literal e como direito básico do cidadão, sequioso de um convívio social pacífico e politicamente isonômico para os quais as relações laborais serviram e ainda servirão como os fios necessários à tecelagem de toda a trama da história do homem.

6   CONCLUSÃO

Sob a ótica atual – aqui resumida nos dizeres de BARROS[61] – o trabalho humano atua como meio de subsistência, de acesso à propriedade e cumpre um conjunto de funções sociais, representando, por assim dizer, um ponto de reflexão singularmente característico pela sua transcendência social. Em razão dessa transcendência social, possui um caráter multidisciplinar, inclusive como objeto de estudo nas mais diversas áreas de conhecimento como a Teologia, a Filosofia, a Economia, a Sociologia e o Direito.

A propósito, se para a Economia, o trabalho humano revela-se nada mais do que a energia humana empregada tendo em vista um escopo produtivo, a Filosofia faz o contraponto e o trata como sendo a atividade consciente e voluntária do homem, dependente de um esforço, ou como a obra moral de um homem moral[62].

Subtrair das relações de trabalho subordinada o valor que lhe deve ser atribuído enquanto instrumento de equilíbrio social seria como que voltar as costas a todos os registros históricos, fatos e adversidades pelos quais perpassou o espírito do homem para alcançar o atual estado.

Será, então, a própria história a revelar e fazer entender que o equilíbrio e a harmonia sociais dependem de se considerar e romper o ciclo perverso produzido pela tendência de domínio e pela subserviência, que fazem do homem mero escravo e prisioneiro de seus próprios instintos, instintos aliás que deveriam cumprir o simples e secundário papel de instrumentos úteis no caminho do aperfeiçoamento do espírito humano.

Considerando que o trabalho humano não apenas permeia como sustenta a estrutura desse convívio social e político, é mais do que imperioso reconhecer que a paz social tem como pedra angular o equilíbrio da relação entre capital e trabalho.

Diante da polarização que se estabeleceu na relação entre capital e trabalho, torna-se imperioso e inarredável conhecer ou rever a história do trabalho humano e compreender como se instalou esse antagonismo de interesses que ensurdece a razão, não apenas para explicar ou justificar a situação das relações sociais, mas principalmente para compreender e materializar o esforço de seus estudiosos no sentido de estreitar os distanciamentos e atingir a conjugação de esforços a fim de que o equilíbrio seja a tônica no convívio pacífico da pluralidade.

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http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html, Item 10, Obrigações dos operários e dos patrões. Consulta em 20/08/2013.

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Sobre a autora
Melyssandra Martins Costa

Advogada, pós-graduada em Direito do Trabalho, Direito Civil e Processual Civil, MBA em Gestão Empresarial, professora de Direito Individual e Coletivo do Trabalho.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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