Serviços públicos essenciais e a possibilidade de corte por inadimplemento

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09/12/2014 às 13:46
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ADMINISTRATIVO. SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS. LEI N. 8.789/95. INADIMPLEMENTO. USUÁRIO. CORTE. POSSIBILIDADE. NECESSIDADE. AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO. NOTIFICAÇÃO PRÉVIA.

1. INTRODUÇÃO

                                O conflito entre a continuidade dos serviços públicos essenciais e o inadimplemento do usuário é o objeto deste breve estudo. Elucidando o conceito de serviços públicos pela doutrina, bem como ressaltando seus princípios, iremos abordar a comum situação de inadimplemento do usuário do serviço público e a possibilidade de interrupção do serviço, o chamado corte, em decorrência deste inadimplemento.

                                                             

2. DESENVOLVIMENTO

                               O tema serviço público é bastante polêmico, estando a divergência instaurada desde a sua conceituação, tanto na doutrina estrangeira, quanto na nacional. Hely Lopes Meireles já alertava que:

O conceito de serviço público não é uniforme na doutrina, que ora nos oferece uma noção orgânica, só considerando como tal o que é prestado por órgãos públicos; ora nos apresenta uma conceituação formal, tendente a identificá-lo por características extrínsecas; ora nos expõe um conceito material, visando a defini-lo por seu objeto. Realmente, o conceito de serviço público é variável e flutua ao sabor das necessidades e contingências políticas, econômicas, sociais e culturais de cada comunidade em cada momento histórico, como acentuam os modernos publicistas. Eis nosso conceito:

Serviço público é todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado[1].

                               Por sua vez, destaca Celso Antônio Bandeira de Mello que “serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído em favor dos interessados definidos como públicos no sistema normativo”[2].

                               Odete Medauar ensina, assim que, “serviço público, como um capítulo do direito administrativo, diz respeito a atividade realizada no âmbito das atribuições da Administração inserida no Executivo. E refere-se a atividade prestacional, em que o poder público propicia algo necessário à vida coletiva, como por exemplo: água, energia elétrica, transporte urbano. As atividades-meio, por exemplo: arrecadação de tributos, serviços de arquivo, limpeza de repartições, vigilância de repartições, não se incluem na acepção técnica de serviço público. Assim, o serviço público apresenta-se como uma dentre as múltiplas atividades desempenhadas pela Administração, que deve utilizar seus poderes, bens e agentes, seus atos e contratos para realizá-lo de modo eficiente”[3].

                               Os serviços públicos, como são atividade desempenhada pela Administração, podem sem classificados como primários ou essenciais e secundários ou não-essenciais. Como esclarece José dos Santos  Carvalho Filho “quando o serviço é essencial, deve o Estado prestá-lo na maior dimensão possível, porque estará atendendo diretamente às demandas principais da coletividade. Inobstante, ainda que seja secundário, a prestação terá resultado de avaliação feita pelo próprio Estado, que, por algum motivo especial, terá interesse em fazê-lo. De uma ou de outra forma, contudo, os serviços públicos hão de vislumbrar o interesse coletivo, seja ele próximo ou remoto”[4].

                               A Constituição Federal estabeleceu expressamente que a prestação de serviços público é atividade incumbe ao Poder Público, que deverá prestá-la na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação (art. 175), tendo este regime sido delineado na Lei n. 8.987/95.

                        Com efeito, como atividade necessária à coletividade, esta pressupõe atendimento pleno daqueles que necessitam do serviço, tendo princípios norteadores, que foram definidos na própria lei ao dispor que serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas (art. 6º, § 1º, da Lei n. 8.987/95).

                        É o princípio da continuidade que alicerça a ilação de que os serviços públicos não devem sofrer interrupções. A garantia de um serviço contínuo resguarda a assistência da coletividade de forma completa.

                        A despeito do princípio da continuidade orientar a prestação dos serviços públicos, a Lei de Concessões e Permissões prevê a interrupção do serviço nas seguintes hipóteses:

                        Art. 6o Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato. (...)

§ 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,

II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.

                               Com efeito, é indiscutível a possibilidade de interromper o serviço por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações, por se tratarem de verdadeiro caso fortuito ou força maior. Esta possibilidade é decorrência lógica de fatos que permeiam nosso sistema jurídico, sendo perfeitamente plausível a previsão legal.

                               Entretanto, é polêmica a possibilidade de interrupção ou corte de serviços públicos essenciais por inadimplemento do usuário, não só com base no citado princípio, mas também no art. 22 da Lei n. 8.078/90 (Código do Consumidor) que prevê que “os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”. Há, ainda, argumentação no sentido de aplicação do art. 42 da Lei n. 8.078/90, afirmando que no caso de corte o consumidor inadimplente estaria sendo submetido a constrangimento.

                               A doutrina tem salientado que se tratando de atividade remunerada por taxa, em que o Estado está investido de sua soberania não é possível a interrupção, como, por exemplo, na taxa de incêndio. Ora, tendo ou não pago o serviço, em caso de incêndio o Estado, por meio do Corpo de Bombeiros, estará obrigado a apagar o fogo, diligenciando para cessá-lo.

                               Por outro lado, nos casos em que a remuneração ocorrer por meio de preço, sendo a tarifa uma de suas modalidades, é possível a interrupção do serviço. Veja a lição de José dos Santos Carvalho Filho:

A despeito da funda(sic) controvérsia que lavra a respeito do tema, a doutrina tem consignado que os serviços públicos específicos e divisíveis podem ser remunerados por taxa ou por preço (do qual tarifa é uma das modalidades). No primeiro caso, os serviços são prestados pelo Estado investido de seu ius imperii, sendo inerentes à sua soberania, de forma que não podem ser transferidos ao particular, pois que, afinal, visam apenas a cobrir os custos da execução (ex.: taxa de incêndio ou taxa judiciária); no segundo, a remuneração tem natureza contratual, e os serviços, que possibilitam a obtenção de lucros, podem ser delegados a particulares, e o próprio Estado, quando os executa, despe-se de sua potestade, atuando como particular (tarifas de transportes, de energia elétrica, de uso de linha telefônica ou, com algumas divergências, de consumo de água)[5].

Logo, apenas nas atividades remuneradas por preço público haverá a possibilidade de suspensão do serviço. Nesta situação, o princípio da continuidade não será afastado pela possibilidade de interrupção, eis que o serviço público permanecerá contínuo, estando apenas suspensa sua prestação, enquanto não houver a quitação do débito, já que para sua manutenção é imperioso o pagamento, que visa à manutenção do sistema.   

Entendemos que com esta mesma compreensão, é possível compatibilizar a previsão do art. 6º, § 2º, II, da Lei n. 8.789/95 com o art. 22 e 42 da Lei n. 8.078/90, como ressaltado no RE 363.943/MG[6] e AGRGnoAG n. 1270130/RJ[7], razão pela qual lícito o corte de energia no caso de inadimplemento do usuário.

                               A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, entretanto, tem avaliado as situações no caso concreto, tendo pontuado de modo diverso algumas situações, como, por exemplo, nos casos em que o inadimplente é pessoa jurídica de direito público. Nesta hipótese, o art. 17 da Lei n. 9.427/96 prevê a possibilidade de suspensão por inadimplência, que ora transcrevemos:

Art. 17. A suspensão, por falta de pagamento, do fornecimento de energia elétrica a consumidor que preste serviço público ou essencial à população e cuja atividade sofra prejuízo será comunicada com antecedência de quinze dias ao Poder Público local ou ao Poder Executivo Estadual.

                               Conquanto exista a previsão legal, nos casos em que a pessoa jurídica de direito público preste serviços públicos essenciais, a Corte Federal não tem admitido a suspensão da atividade, fazendo uma interpretação conformadora, ponderando os princípios em conflito. Confiram-se os seguintes julgados:

ADMINISTRATIVO.  ENERGIA  ELÉTRICA. INTERRUPÇÃO DO FORNECIMENTO. PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO. INTERESSE DA COLETIVIDADE. PRESERVAÇÃO DE SERVIÇOS ESSENCIAIS.

1. Nos termos da jurisprudência do STJ,   nos casos de inadimplência de pessoa jurídica de direito público é inviável a interrupção indiscriminada do fornecimento de energia elétrica. Precedente: AgRg nos EREsp 1003667/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/06/2010, DJe 25/08/2010.

2. O art. 6º, § 3º, inciso II, da Lei n. 8.987/95 estabelece que é possível interromper o fornecimento de serviços públicos essenciais desde que considerado o interesse da coletividade.

3. A suspensão do fornecimento de energia elétrica em escolas públicas contraria o interesse da coletividade.

Agravo regimental improvido.

(AgRg no REsp 1430018/CE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/03/2014, DJe 24/03/2014)

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. INVIABILIDADE DE SUSPENSÃO DO ABASTECIMENTO NA HIPÓTESE DE DÉBITO DE ANTIGO PROPRIETÁRIO. PORTADORA DO VÍRUS HIV. NECESSIDADE DE REFRIGERAÇÃO DOS MEDICAMENTOS. DIREITO À SAÚDE.

1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido da impossibilidade de suspensão de serviços essenciais, tais como o fornecimento de energia elétrica e água, em função da cobrança de débitos de antigo proprietário.

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2. A interrupção da prestação, ainda que decorrente de inadimplemento, só é legítima se não afetar o direito à saúde e à integridade física do usuário. Seria inversão da ordem constitucional conferir maior proteção ao direito de crédito da concessionária que aos direitos fundamentais à saúde e à integridade física do consumidor. Precedente do STJ.

3. Recurso Especial provido.

(REsp 1245812/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/06/2011, DJe 01/09/2011)

ADMINISTRATIVO.  ENERGIA  ELÉTRICA. INTERRUPÇÃO DO FORNECIMENTO. PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO. INTERESSE DA COLETIVIDADE. PRESERVAÇÃO DE SERVIÇOS ESSENCIAIS.

1. Nos termos da jurisprudência do STJ,   nos casos de inadimplência de pessoa jurídica de direito público é inviável a interrupção indiscriminada do fornecimento de energia elétrica. Precedente: AgRg nos EREsp 1003667/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/06/2010, DJe 25/08/2010.

2. O art. 6º, § 3º, inciso II, da Lei n. 8.987/95 estabelece que é possível interromper o fornecimento de serviços públicos essenciais desde que considerado o interesse da coletividade.

3. A suspensão do fornecimento de energia elétrica em escolas públicas contraria o interesse da coletividade.

Agravo regimental improvido.

(AgRg no REsp 1430018/CE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/03/2014, DJe 24/03/2014)

Este entendimento vem sendo mantido pelo Supremo Tribunal Federal, que vem afirmando que a interrupção de um serviço essencial prestado pelo Estado, somente pode ocorrer em casos excepcionalíssimos[8].

                               A celeuma, como se vê, permanece, mormente porquanto o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que a prestadora de serviço pode valer-se de ação de cobrança para obtenção de seu crédito, bem como que a interrupção do serviço não pode ocorrer em caso de dívida pretérita[9].

                               Deve ser destacado, por fim, que a Lei de Concessões e Permissões, ao dispor sobre esta hipótese de interrupção resguarda os princípios do contraditório e ampla defesa, insculpidos no art. 5º, LV, da Constituição[10], exigindo aviso prévio. Por esta razão resta assegurado ao usuário do serviço a possibilidade de demonstrar que quitou o débito ou mesmo discuti-lo antes de ser realizado o corte do serviço, sendo que a ausência de notificação, implica nulidade da interrupção do serviço capaz, inclusive, de gerar direito à indenização.

3.  DA CONCLUSÃO

                               Como se verifica deste breve ensaio, é polêmica a possibilidade de corte de serviço público essencial em razão de inadimplemento, sendo várias as nuances para sua admissibilidade, que vem sendo constantemente tratada pela jurisprudência.

                               A doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que somente é possível a interrupção de serviços públicos essenciais, quando estes são remunerados por meio de preços públicos, sendo a tarifa uma de suas modalidades.

                               Contudo, a interrupção do serviço apenas é permitida, após a devida comunicação do devedor, que é indispensável, sob pena de gerar direito à indenização.

                               A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, contudo, não admite o corte quando o inadimplente for pessoa jurídica de direito público prestadora de serviço essencial, quando estiverem em conflito outros direitos que devem ser priorizados, como o direito à saúde e quando a dívida é antiga, sendo passível, neste caso de ação de cobrança.

BIBLIOGRAFIA

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo administrativo (Comentários à Lei n. 9.784, de 29/1/1999). 2ª ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005.

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: RCS Editora, 2005.

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de direito administrativo. 17ª ed. rev. e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2005.

MEDAUAR, Odete. Direito administrativo. 7ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

MEIRELES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

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Sobre a autora
Carolina Lemos de Faria

Graduada em Direito pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Goiás. Procuradora Federal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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