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Por uma legitimação individual nas ações coletivas

01/12/2000 às 00:00
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Sumário: 1. Introdução 2. Do Ministério Público 3. Entidades estatais, autárquicas, fundacionais, paraestatais e órgãos públicos especificamente destinados à defesa dos consumidores 4. Das Associações 5. Crítica ao sistema adotado


1.Introdução

Os sistemas jurídicos contemporâneos adotam, geralmente, um dos três tipos de modelos para a tutela dos interesses transindividuais:

-a) Legitimação difusa aos particulares que individualmente podem demandar em juízo na qualidade não egoística de ideological plaintiff (v.g., a ação popular brasileira ou a class action norte-americana);

-b) Legitimação restrita a grupos sociais (associações legalmente reconhecidas ou ainda a simples grupos de fato);

-c) Legitimação a órgãos específicos ou "agências governamentais" (1)

A opção brasileira está contida no artigo 82 do CODECON, in verbis:

"Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:

I- o Ministério Público;

II- a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal;

III- as entidades e órgãos da administração pública, direta e indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código;

IV- as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código, dispensado autorização assemblear."

Assim, não resta dúvidas, que o CDC contém um perfeito cadinho entre as opções b (legitimação restrita a certos grupos sociais) e c (legitimação a órgãos específicos).

Desse modo, os entes legitimados podem ajuizar a ação, independentemente das atitudes dos outros co-legitimados, pois trata-se de hipótese de legitimação concorrente e "disjuntiva".(2)

Não fica elidida, porém, a possibilidade de qualquer dos co-legitimados formarem um litisconsórcio ativo para a propositura da demanda coletiva. Cabe aqui ressalvar a peculiaridade do papel do Ministério Público, que mesmo tendo arquivado seu Inquérito Civil (medida preparatória na qual reúnem-se elementos para uma avaliação pré-processual da conveniência da ação coletiva) sempre atuará quer como fiscal da lei, quer como litisconsorte ulterior (art. 92 do CDC).


2. Do Ministério Público

Em sintonia com o artigo 129, parágrafo 1° da Constituição Federal (que reza: "A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nessa Constituição e na lei") o CODECON, como já ressaltado, utilizou-se de uma legitimidade "disjuntiva" e concorrente, portanto não exclusiva ao Ministério Público.

Em que pese a legitimação ser concorrente, é notória a supremacia do órgão ministerial na propositura das ações civis públicas em face dos demais co-legitimados. A título de ilustração da proporção "en el Estado de Rio de Janeiro, v.g., casi 100 acciones de ese tipo [o texto se refere-se às ações civis públicas] resultaron hasta ahora de la iniciativa del Ministério Público, mientras que las ejercitadas por las asociaciones civiles apenas sobrepasan una decena. El panorama es igual en S. Paulo"(3).

Esses dados, ademais, revelam a incipiência de nossa democracia, que se pretende participativa.

Outra questão a enfrentar nessa seara, diz respeito à legitimação do Ministério Público para defender os direitos individuais homogêneos. Aliás, muito já se discutiu da constitucionalidade da legitimação ordinária feita pelo CODECON. Dois foram os argumentos principais para sustentar a inconstitucionalidade: i) a Carta Magna refere-se tão-somente a "interesses difusos e coletivos" quando elenca as funções institucionais do MP, não podendo ampliar o legislador ordinário suas funções; e ii) não pode o Ministério Público atuar para a defesa de direitos individuais disponíveis, pois cabe ao titular do direito material valorar se quer ou não defender tais direitos.

Talvez seria até melhor se o CODECON seguisse os conselhos de uma vertente da doutrina estrangeira que se proclama contrária às tentativas de diferenciação dos termos "interesses difusos" e "interesses coletivos" em sentido estrito e amplo.

Por outro lado, há argumentos bastante sólidos para a tese oposta à inconstitucionalidade.

Consigne-se que por serem as normas do CDC de interesse social (artigo 1º) é indicada a interveniência do Ministério Público nas ações coletivas com base no Código, a fim de exercer sua incumbência institucional e constitucional.

Alia-se a esse posicionamento, o artigo 129 da CF, que em seu inciso IX, diz ser função do MP "exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade".

"Certamente, como bem adverte Andrea Proto Pisani, não se deve restringir a legitimação para agir do Ministério Público apenas aos casos em que esteja presente o interesse geral e indiferenciado de natureza publicística, incumbindo-lhe também a tutela dos interesses coletivos específicos de natureza privatística.

Mas, não se pode ir ao extremo de permitir que o Ministério Público tutele interesses genuinamente privados sem qualquer relevância social (como os de condôminos de um edifício de apartamentos contra o síndico ou contra terceiros, ou os de um grupo de uma sociedade contra outro grupo da mesma sociedade, a menos que esteja inequivocamente presente, por alguma razão específica, o interesse social), sob pena de amesquinhamento do Parquet, que deve estar vocacionado, por definição constitucional, à defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, CF)." (4)

Dessa forma, a compatibilidade entre a finalidade institucional do órgão ministerial e a defesa por este dos interesses individuais homogêneos deve ser aferida em cada caso concreto, e as bases para essa aferição foram dadas, a nosso ver, pelo enunciado da Súmula de entendimento nº 7 do MP paulista, que tem o seguinte teor: "O MP está legitimado à defesa de interesses individuais homogêneos que tenham expressão para a coletividade, como:

a) os que digam respeito à saúde ou à segurança das pessoas, ou ao acesso das crianças e adolescentes à educação;

b) aqueles em que haja extraordinária dispersão dos lesados; e

c) que convenha à coletividade o zelo pelo funcionamento de um sistema econômico, social e jurídico."

Acrescentamos aos argumentos já elencados e propagados à exaustão por diversos artigos jurídicos, o fato de que se houver desistência ou abandono de ação coletiva, têm o órgão ministerial o poder-dever de assumi-las para evitar acordos escusos por esses outros entes legitimados, sobretudo as associaçãoes civis.


3. Entidades estatais, autárquicas, fundacionais, paraestatais e órgãos públicos especificamente destinados à defesa dos consumidores.

O inciso II, do art. 82, legitima as Entidades estatais (União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal) e o inciso III, do mesmo artigo, as entidades autárquicas, fundacionais, paraestatais e órgãos públicos (o termo "órgãos" já traz em si a nota de não possuir personalidade jurídica, tornando pleonástica a referência "ainda que sem personalidade jurídica" do estatuto legal) especificamente destinados para à defesa dos consumidores, v.g., os PROCON´s e DECON´s.

Em princípio, a União poderia ajuizar ação coletiva de interesse apenas da municipalidade, os Estados-membros de assuntos nacionais e os Municípios de interesses que digam respeito tão-somente a uma outra municipalidade, pois não fez o texto legal do consumidor ressalvas a estas hipóteses.

Porém, entendemos que essa legitimação não é absoluta e ocorrendo tal situação pode o juiz considerar inexistente duas condições da ação, quais sejam, a pertinência subjetiva do autor em propor aquela ação e o interesse processual (que tem como fundamento a necessidade-utilidade-adequação da demanda instaurada).

Esses impeditivos, em tal grau, defluem de uma exegese orgânica do ordenamento jurídico como um todo.

Outrossim, os PROCON´s e DECON´s que anteriormente tinham sua legitimidade processual questionadas, agora estão autorizadas a promover a defesa coletiva dos consumidores.


4. Das Associações

Por último, o CODECON legitimou as associações civis para a propositura de ações coletivas em defesa dos consumidores.

Deve-se entender por associação, todas as formas conhecidas de cooperativismos (sociedades, sindicatos etc...) e associativismos, desde que preencham os requisitos legais, atendendo, de tal sorte, o desiderato constitucional contido no artigo 174, § 2°.

Dois são os requisitos exigidos por lei, estar a associação constituída no mínimo há um ano e estar inserido entre suas finalidades institucionais a defesa do defesa do consumidor em juízo.

Excluiu-se do contexto legal, por conseguinte, a aferição pelo juiz em cada caso concreto se estas associações possuem ou não uma "representatividade adequada" para a defesa de interesses meta-individuais sub judice. Vale consignar, porém, que o projeto original adotava o instituto da adequacy representation seguindo a orientação da Federal Rules of civil procedures do direito norte- americano.

Em suma, o Código adotou a aferição objetiva em detrimento da subjetiva, no que, evidentemente, andou mal.


5. Crítica ao sistema adotado

Como se conclui do exposto, o CDC e a LACP não adotaram a tese da legitimação individual para a defesa dos direitos transindividuais das matérias nelas constantes.

A tese da legitimação individual nas ações civis públicas, consagrada na regra 23 da Federal Rules of Civil Procedure norte-americana, permite que uma pessoa promova uma ação em defesa do direito de uma coletividade.

Daí os juristas norte-americanos denominarem esse demandante de ideological plaintiff (autor ideológico).

Ressalte-se: a lógica do estatuto legal dos Estados Unidos não é totalmente estranho à ordem jurídica brasileira, pois a Lei n°4.717/65, que regula a ação popular, legitima qualquer cidadão a pleitear a anulação ou a declaração de atos lesivos ao patrimônio público.

Aceitou-se, destarte, a legitimação individual desde que o autor faça prova de sua cidadania, quer com o título eleitoral quer com outro documento que a ele corresponda (art. 1º, § 3° da LAP).

Na tentativa de explicar a exclusão da figura do autor ideológico do rol dos legitimados da LACP, o jurista Kazuo Watanabe (um dos autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor), asseverou que "algumas experiências vividas no campo da ação popular, que tem sido utilizada, com alguma freqüência, como instrumento político de pressão e até de vindita, serviram também para o perfilhamento da opção legislativa."(5)

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Data venia, ousamos discordar de tal posicionamento.

É verdade que a ação popular freqüentemente é utilizada como instrumento político, mormente porque diz respeito à moralidade administrativa.

Ora, ingênuo seria supor que políticos adversários não utilizariam essa ação constitucional com o intuito de comprovar um desvio de finalidade nos atos administrativos de um inimigo seu. Assim, esse autor "faturaria politicamente" com a procedência da ação.

Mas, aqui vale perguntar, se não haveria uma confluência entre os interesses da sociedade e a do autor que visa provar a desonestidade de seu inimigo político?

Sim, pois é indubitável o interesse público na defesa do princípio da moralidade administrativa.

Outra problemática a ser enfrentada para a aceitação da legitimação individual, aliás, de maior relevância, seria as pressões da ré com o escopo de desestimular ou oferecer vantagens pessoais indevidas ao autor coletivo em troca do abandono ou desistência da ação de natureza coletiva.

Porém, corrigir-se-ia a situação aventada com o Parquet atuando, em ações de natureza coletiva, obrigatoriamente como fiscal da lei (o que, ademais, já está previsto no artigo 5º, § 1° da LACP) e um mecanismo de legitimação ativa subsidiária a qualquer co-legitimado na hipótese de abandono ou desistência pelo autor originário (também já previsto pela LACP no artigo 5°, § 3°).

Consigne-se por derradeiro, que a coerência da ordem legal também reclama por uma legitimação individual nas ações civis públicas.

Senão, vejamos.

A Lei da ação popular (LAP) tutela alguns bens que de igual forma podem ser protegidos pela LACP, ou melhor, há uma zona de cruzamento de alguns bens protegidos em ambos os estatutos (basta para tanto comparar o parágrafo 1°, do artigo 1°, da LAP com o inciso III, do artigo 1°, da LACP). Assim, esses bens descritos, são duplamente tuteláveis.

Daí resulta a importância da introdução legal do instituto da legitimação individual no rol dos legitimados da ação civil pública.

Pense-se na hipótese de um cidadão ajuizar ação popular no escopo de evitar a destruição de um bem de valor histórico. Se o cidadão abandonar a ação não é possível que uma associação civil assuma a titularidade ativa desta ação.

Entretanto, se for uma associação civil que ajuizar uma ação com a mesma finalidade - no caso uma ação civil pública porque é uma das legitimadas - poderia uma outra associação assumir o pólo ativo.

Logo, mesmo que o objeto seja idêntico em ambas, apenas porque de nomen juris diversos, teríamos a absurda impossibilidade do fenômeno da legitimação subsidiária às associações, em caso de desistência ou abandono da ação popular pelo autor originário. O que evidentemente revela-se um contra-senso.

Não param por aí as incoerências advindas da exclusão da legitimação individual pela LACP, pois o mesmo ocorre quando da litispendência, conexão, assistência, litisconsórcio em ralação às ações populares e ações civis públicas nas matérias em que se cruzam.

Em conclusão, mister a adoção do instituto da legitimação individual no rol dos legitimados da LACP e CDC para que se dê unidade e congruência aos estatutos de defesa dos interesses metaindividuais, e para que se responda aos anseios dos cidadãos que se disponham a defender interesses da sociedade.

Em tempo: o instituto da "representação adequada" serviria para conter eventuais excessos tanto por parte das associações como por parte dos autores ideológicos.


NOTAS

1. Rodolfo de Camargo Mancuso, Comentários ao Código de Proteção do Consumidor (arts. 81 a 100). São Paulo: Saraiva, 1991.

2. Nelson Nery Jr., Aspectos do processo civil no CDC, pág. 208: "Isto significa que cada um dos co-legitimados pode, sozinho, promover a ação coletiva, sem que seja necessária anuência ou autorização dos demais co-legitimados. O eventual litisconsórcio que se formar entre eles será facultativo e obedecerá o regime desse tipo de cumulação subjetiva de ações, de acordo com as regrras do CPC".

3. José Carlos Barbosa Moreira, La iniciativa en la defensa judicial de los interesses difusos y coletivos. Revista de Processo. São Paulo: RT , nº 68, pág. 55-58, 1992.

4. Kazuo Watanabe, Demandas Coletivas e os problemas emergentes da práxis forense, Revista de Processo. São Paulo: RT, nº 67, pág. 15-25, 1992.

5.Kazuo Watanabe et al. Código Brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 5ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, página 638.

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Sobre o autor
Rafael Pinheiro Aguilar

advogado em Campinas (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGUILAR, Rafael Pinheiro. Por uma legitimação individual nas ações coletivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 48, 1 dez. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/349. Acesso em: 29 mar. 2024.

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