5.MODERNAS TÉCNICAS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
A moderna interpretação constitucional, como vimos, significa uma reação ao rígido formalismo jurídico em nome da idéia de justiça material e de segurança jurídica. Neste sentido, o que se assiste no segundo pós-guerra, "é uma inclinação da jurisprudência procurando maximizar as formas de interpretação que permitam um alargamento ou restrição do sentido da norma de maneira a torná-la constitucional. Procura-se buscar até mesmo naquelas normas que à primeira vista só parecem comportar interpretação inconstitucional — através da ingerência da Corte Suprema alargando ou restringindo o seu sentido — uma interpretação que se coadune com a Carta Magna."[47]
Dentre as modernas técnicas de interpretação constitucional existentes, destacam-se: a) declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade; b) declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador; c) interpretação conforme à Constituição.
5.1. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE SEM A PRONÚNCIA DE NULIDADE
A declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade encontra suas raízes na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Nessa técnica de interpretação, "o Tribunal rejeita a argüição de inconstitucionalidade, anunciando, todavia, uma possível conversão dessa situação ainda constitucional ("noch verfassungsgemass") num estado de inconstitucionalidade."[48]
Essa técnica de interpretação constitucional pode ser admitida desde que a norma em exame não seja integralmente inconstitucional, isto é, inconstitucional em todas as hipóteses interpretativas que admitir.
A declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade contém um juízo de desvalor em relação à norma questionada, obrigando o legislador a empreender a medida requerida para a supressão do estado de inconstitucionalidade, bastando para tanto apenas alguma alteração fática.
5.2. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE COM APELO AO LEGISLADOR
A declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador também tem origem na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Nessa técnica de interpretação, "busca-se não declarar a inconstitucionalidade da norma sem antes fazer um apelo vinculado a "diretivas" para obter do legislador uma atividade subseqüente que torne a regra inconstitucional harmônica com a Carta Maior. Incumbe-se ao legislador a difícil tarefa de regular determinada matéria, de acordo com o que preceitua a própria Constituição."[49]
Gilmar Ferreira Mendes acentua que podem ser designadas pelo menos três grupos típicos dessa técnica de interpretação na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão: a) "apelo ao legislador" em virtude de mudança das relações fáticas ou jurídicas; b) "apelo ao legislador" em virtude de inadimplemento de dever constitucional de legislar; c) "apelo ao legislador" por falta de evidência da ofensa constitucional. [50]
Com respeito à aplicação da declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador no direito brasileiro, diz-nos Celso Ribeiro Bastos:
"Esta espécie de decisão perde muito de sua importância no sistema jurídico pátrio, na medida em que uma vez reconhecida inconstitucional a norma, caberá à Corte assim pronunciá-la, o que não obsta que indique o caminho que poderia o legislador adotar na posterior regulamentação da matéria.
O tema apresenta certa relevância no caso da ação de inconstitucionalidade por omissão. Nesta, a decisão contém um exortação ao legislador para que, abandonando seu estado de inércia, ultime suas tradicionais funções, regulando determinada matéria, de acordo com o que preceitua a própria Carta Magna. A decisão, no caso, apresenta cunho mandamental, no que é capaz de colocar em mora a ação do legislador. Assim, o Tribunal determina que o legislador proceda às providências requeridas, limitando-se a constatar a inconstitucionalidade da omissão."[51]
5.3. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO
A interpretação conforme à Constituição, na qual o órgão jurisdicional declara qual das possíveis interpretações se mostra compatível com
a Lei Maior, origina-se da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. "Não raro afirma a Corte Constitucional a compatibilidade de uma lei com a Constituição, procedendo à exclusão das possibilidades de interpretação consideradas inconstitucionais." [52]
No direito pátrio, essa técnica de interpretação está presente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Veja-se, a propósito, o seguinte trecho da ementa de decisão da ADIN nº 1.344-1-ES, na qual foi relator o Ministro Moreira Alves:
"Impossibilidade, na espécie, de se dar interpretação conforme à Constituição, pois essa técnica só é utilizável quando a norma impugnada admite, dentre as várias interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna, e não quando o sentido da norma é unívoco, como sucede no caso presente.
Quando, pela redação do texto no qual se inclui a parte da norma que é atacada como inconstitucional, não é possível suprimir dele qualquer expressão para alcançar essa parte, impõe-se a utilização da técnica de concessão da liminar para a suspensão da eficácia parcial do texto impugnado sem a redução de sua expressão literal, técnica essa que se inspira na razão de ser da declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto em decorrência de este permitir interpretação conforme à Constituição."
Na Representação de Inconstitucionalidade nº 1.417-7-DF, de que foi também relator o Ministro Moreira Alves, pronunciou-se o Supremo Tribunal Federal da seguinte forma, na ementa de decisão:
"O princípio da interpretação conforme à Constituição ("Verfassungskonforme Auslegung") é princípio que se situa no âmbito do controle da constitucionalidade, e não apenas simples regra de interpretação.
A aplicação desse princípio sofre, porém, restrições, uma vez que, ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese, o STF, em sua função de Corte Constitucional, atua como legislador negativo, mas não tem o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídica diversa da instituída pelo Poder Legislativo.
Por isso, se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme à Constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo."
Discorrendo sobre o tema no direito comparado, Celso Ribeiro Bastos faz a seguinte ponderação:
"No Brasil, ao contrário do que acontece na Alemanha - onde a interpretação conforme à Constituição resulta na procedência parcial da ação direta de inconstitucionalidade, declarando inconstitucionais os sentidos que são incompatíveis com a Lei Fundamental -, a interpretação conforme à Constituição resulta na improcedência da ação de inconstitucionalidade, já que a norma em questão permanece no ordenamento jurídico pátrio, com a interpretação que a coloca em harmonia com a Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal equiparou em seus julgados a interpretação conforme à Constituição à declaração de nulidade parcial sem redução do texto." [53]
6. CONCLUSÃO
Em desfecho deste estudo, que discorreu sobre diferentes cenários do universo constitucional, sempre tendo em conta a moderna interpretação da Constituição, não há como deixar de reconhecer que:
a)O Direito é um fenômeno cultural ou realidade significativa e, como tal, afasta-se radicalmente das ciências naturais, exigindo, para seu conhecimento, o método empírico-dialético.
b)A Constituição, embora seja uma espécie de norma jurídica, e como tal deve ser interpretada, apresenta peculiaridades, que singularizam as suas normas.
c)As normas constitucionais apresentam, em geral, maior teor de abstração, reconhecendo-se aos seus aplicadores um "espaço de conformação" mais ou menos amplo.
d)Em face de suas singularidades, as normas constitucionais demandam, para sua interpretação, métodos e princípios específicos.
e)A interpretação constitucional é uma atividade de mediação que torna possível compreender e concretizar o conteúdo semântico dos enunciados lingüísticos que compõem a Constituição.
f)A moderna interpretação constitucional caracteriza-se pelo abandono do formalismo clássico e pela construção de uma hermenêutica material da Constituição.
g)Dentre os atuais métodos de interpretação constitucional destacam-se o método integrativo ou científico-espiritual, o método tópico e o método concretista.
h)O método integrativo ou científico-espiritual pressupõe a articulação da norma com os valores econômicos, políticos, sociais e culturais subjacentes à Constituição, que constituem a realidade existencial do Estado.
i)O método tópico caracteriza-se como uma "técnica de pensar o problema", elegendo o critério ou os critérios recomendáveis para a solução adequada do caso concreto.
j)O método concretista gravita em torno de três questões fundamentais: a norma a concretizar, a compreensão prévia do intérprete e o problema concreto a solucionar.
l)O método concretista desenvolveu-se a partir das contribuições dos juristas alemães Konrad Hesse, Friedrich Müller e Peter Häberle.
m)Dentre os atuais princípios de interpretação constitucional destacam-se o da unidade da Constituição, o da concordância prática ou da harmonização, o da força normativa da Constituição, o da máxima efetividade, o do efeito integrador, o da interpretação conforme à Constituição e o da proporcionalidade.
n)O princípio da unidade da Constituição remarca a noção do texto constitucional como sistema unitário e harmônico de princípios e regras, impondo ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições (antinomias) entre suas normas
o)O princípio da concordância prática ou da harmonização impõe ao intérprete a combinação dos bens constitucionais em conflito ou em concorrência, de forma a evitar o sacrifício de uns em relação aos outros.
p)O princípio da força normativa da Constituição estabelece que, na interpretação constitucional, deve-se dar preferência às soluções que, considerando os limites do texto constitucional, possibilitem a atualização das suas normas, garantindo a sua eficácia e permanência.
q)O princípio da máxima efetividade significa que o intérprete deve atribuir às normas constitucionais o sentido que lhes dê maior eficácia.
r)O princípio do efeito integrador impõe ao intérprete prioridade aos pontos de vista que levem a soluções pluralisticamente integradoras.
s)O princípio da interpretação conforme à Constituição induz à interpretação de uma norma infraconstitucional em harmonia com a Lei Maior, em meio a outras alternativas interpretativas que o preceito admitir.
t)O princípio da proporcionalidade se traduz na adequação meio-fim, na necessidade (ou exigibilidade) da prática do ato legislativo e na aferição de seu custo-benefício (proporcionalidade em sentido estrito).
u)Dentre as modernas técnicas de interpretação constitucional existentes, originárias da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, destacam-se a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade, a declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador e a interpretação conforme à Constituição.
v)Na declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade rejeita-se a argüição de inconstitucionalidade, anunciando-se, porém, uma possível conversão dessa situação (ainda constitucional) num estado de inconstitucionalidade.
x)Na declaração de inconstitucionalidade com apelo ao legislador busca-se não declarar a inconstitucionalidade da norma legal sem antes fazer um "apelo" para obter do legislador uma providência que a torne harmônica com a Constituição.
z)Na interpretação conforme à Constituição, considerada pelo Supremo Tribunal Federal não apenas como simples regra de hermenêutica mas sobretudo como mecanismo de controle da constitucionalidade, busca-se declarar qual das possíveis interpretações que a norma infraconstitucional admite a que se mostra compatível com a Lei Maior.
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Notas
1..COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre, Sérgio A.
Fabris Editor, 1997, pág. 32.
(2) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit., págs. 32-33.
(3) RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra, Armênio Amado, 1979, pág. 240.
(4) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit. pág. 31.
(5) BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo, Saraiva, 1999, pág. 107.
(6) BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pág. 107.
(7) BARROSO, Luís Roberto, op. cit. pág. 107.
(8) CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra, Almedina, 1993, pág. 210.
(9) BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pág. 110.
(10) MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1970, t. 1, pág. 296.
(11) CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pág. 208.
(12) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit., pág. 54.
(13) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit., pág. 27.
(14) Veja-se, a propósito: "Escritos sobre derechos fundamentales", Baden - Baden, Nomos Verlagsgesellschaft, 1993.
(15) Consultem-se a respeito: "Derecho y Razón Práctica", México, Distribuciones Fontanara, 1993; e "Teoria de los Derechos Fundamentales", Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993.
(16) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit., pág. 84.
(17) CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pág. 132.
(18) BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Malheiros, 1994, pág. 424. (19) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 424.
(20) BONAVIDES, Paulo, op. cit. pág., 435.
(21) BONAVIDES, Paulo, op. cit., págs. 434 e ss.
(22) SMEND, Rudolf, apud. ENTERRÍA. Eduardo Garcia de. Hermenêutica e supremacia constitucional. RDP, v. 77, n. 19, jan/mar/1986, págs. 36-37.
(23) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 436.
(24) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 437.
(25) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 449.
(26) CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pág. 214.
(27) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 440.
(28) STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica (em) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2000, pág. 244.
(29) HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, pág. 22.
(30) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 456.
(31) CANOTILHO, J.J. Gomes, op. cit., pág. 215.
(32) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 456.
(33) CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pág. 216.
(34) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 228.
(35) HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e " procedimental " da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, pág. 13.
(36) HÄBERLE, Peter, op. cit., pág.13
(37) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 472.
(38) BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pág. 147.
(39) BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pág. 147.
(40) BARROSO, Luis Roberto, op. cit., págs. 147-148.
(41) CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., pág. 226.
(42) BVerfGE 19, 206(220) apud BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pág. 189.
(43) COELHO, Inocêncio Mártires, op. cit., pág. 91.
(44) BASTOS, Celso Ribeiro, op. cit., pág. 100.
(45) BONAVIDES, Paulo, op. cit., pág. 474.
(46) BVerfGE 30, 292 (316) apud BASTOS, Celso Ribeiro e TAVARES, André Ramos. As tendências do Direito Público no limiar de um novo milênio. São Paulo, Saraiva, 2000, pág. 79.
(47) BASTOS, Celso Ribeiro, e TAVARES, André Ramos, op. cit., págs., 69-70.
(48) MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo, Saraiva, 1999, pág. 212.
(49) BASTOS, Celso Ribeiro, e TAVARES, André Ramos, op. cit., pág. 72.
(50) MENDES, Gilmar Ferreira, op. cit., pág. 239.
(51) BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. São Paulo, Celso Bastos Editor, IBDC, 1997, pág. 174.
(52) MENDES, Gilmar Ferreira, op. cit., pág. 230.
(53) BASTOS, Celso Ribeiro, e TAVARES, André Ramos, op. cit., pág. 76.