~~ Na longínqua França da década de 1840, no mesmo solo sagrado da cultura, por algum tempo conviveram três figuras tão distintas quanto brilhantes em suas áreas de reflexão humanista. Imagine o privilégio de quem pode desfrutar do borbulho intelectual, cultural, político que assistia ao povo parisiense em meados do século XIX. Diante da pasmaceira consumista do século XXI, marcada por quem tem o celular mais “evoluído”, conviver com Karl Marx, Auguste Comte e Alan Kardec – e seus ideários – era um convite para se sentar à mesa no “banquete dos deuses”. Em tudo tão diferentes, andaram muito próximos – não só pelas ruas. O humanismo foi o motor moral dos três, na esperança de uma Humanidade menos embrutecida. Mais atuante do que complacente, o ouvinte do passado não era nada parecido com o telespectador do presente.
Comte pensou o positivismo (e a sociologia) como uma filosofia positiva, prospectiva; propunha o conhecimento científico contra o obscurantismo, em resposta ao “teologismo”. Escrevia e falava aos “homens sensatos”, em busca de uma “inteira universalidade das inteligências”. Em tudo era contrário à metafísica.
Kardec foi o codificador do espiritismo: religião, ciência e arte do “futuro”. Ao revés do Deus punitivo – por exemplo, do Antigo Testamento –, incumbia ao homem em vida - ou antes disso, à espera da reencarnação - planejar suas metas, construir o alcance de sua real evolução. Ninguém será culpado. Todos serão responsáveis. Formou-se, assim, uma religião cristã inteligente, moderna, intelectualizada, à procura da ciência. Portanto, sem metafísica.
Marx, como filósofo, jurista, economista, ativista político, empenhou-se no socialismo científico ou materialismo dialético. Queria mudar a cabeça e a vida dos homens, colocando o idealismo de “cabeça para baixo”, forçando-nos a pensar que o pensamento é fruto da realidade. Queria uma revolução do proletariado, que devolvesse aos produtores da vida social o efetivo controle sobre os próprios meios de produção da vida social. Ou seja, seu realismo combatia qualquer traço da metafísica.
Diante do quadro referencial pós-moderno, qualquer um dos três seria revolucionário. Todos foram à raiz dos problemas que julgavam mais contundentes. É claro que não podemos seguir aos três, ao mesmo tempo, pois há ranhuras, discrepâncias, antagonismos e contradições efetivas. Contudo, qualquer um dos três é capaz de nos fazer sentir mais humanos, no sentido de que “o homem não pode querer, racionalmente, o pior para si e para o(a) Outro(a)”. Sendo, então, um dever moral-racional empenhar-se na luta política (e reflexiva) que liberte a Humanidade de toda forma de jugo e de opressão. Não há coincidência histórica.
Em comum, foram filhos diretos e diletos da modernidade, da racionalidade científica responsável. Não-abstratamente, propuseram formas de alavancar o processo civilizatório. Os três foram utópicos, ao empregar a maior parte da sua energia vital na construção de um mundo melhor. Hoje, sob os escombros do niilismo, hedonismo, individualismo, cinismo - servilismo ao capital -, qualquer um dos três seria um láudano. No mundo atual, não há elixir, mas há saídas. A saída proposta pelos três estava (e está) em abrir os olhos, arejar a mente livre da mesquinharia, mirar um futuro não-exclusivo. Esta foi a teleologia compartilhada na Paris que ainda é de todos nós.
Vinício Carrilho Martinez
Professor da Universidade Federal de São Carlos
Marcos Del Roio
Professor de Ciências Políticas da UNESP/Marília