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A confusa legislação sobre o tráfico internacional de crianças no Brasil

01/11/2002 às 00:00
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A Lei n. 8.069/90, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), possui dezoito tipos penais incriminadores [1] que têm a criança ou o adolescente como sujeito passivo. Nenhum deles, entretanto, elabora referência específica ao tráfico internacional, muito embora, como se verá, três tipos penais possam ter incidência.

A falta de um tipo penal que incida especial e diretamente sobre a matéria traz sério inconveniente, na medida em que, por mais estranho que possa parecer, a resposta penal depende do sexo do sujeito passivo. Tratando-se de vítima do sexo feminino, e encontrando-se a conduta do autor voltada para a prostituição dela, torna-se duvidoso o enquadramento típico, pois, se por um lado, no Código Penal, há a definição do crime do art. 231 [2], que possui como elementares mulher e prostituição, por outro, é no Estatuto da Criança e do Adolescente que se concentram os delitos praticados contra criança ou adolescente. A questão torna-se ainda mais dificilmente dirimível quando se verifica que os tipos penais prevêem cominações diferenciadas.

Sendo o ECA posterior ao Código Penal e específico no tratamento de pessoa menor de 18 anos [3], não há dúvida deva o primeiro ter aplicação em detrimento do segundo. Dessa forma, independentemente do sexo da vítima e do propósito com que o agente atuou, deve-se fazer o enquadramento no art. 239 do ECA, que prescreve:

"Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro:

Pena – reclusão de 4 (quatro) a 6 (seis) anos, e multa."

Como se pode perceber da leitura do dispositivo, há situações que não foram acobertadas pela norma, causando problemas de enquadramento típico. São elas:

1.ª) envio de criança ou adolescente para o exterior em obediência a todas as formalidades legais, ou que não tenha como fito a obtenção do lucro: não se pode falar do delito previsto no ECA, em face da ausência de elemento típico. O correto, então, seria, já que a vítima é do sexo feminino, enquadrar o fato no art. 231 do CP, desde que haja conhecimento por parte do sujeito ativo de que o deslocamento tenha por finalidade a prostituição. Inexistindo este e desde que a conduta envolva ato realizado pelo progenitor, resta a possibilidade de enquadramento do fato no delito previsto no art. 245 do CP [4]. A vítima, que pode ser de ambos os sexos, tem que ser menor de 18 anos de idade.

2.ª) promoção ou facilitação da entrada da vítima no território nacional: enquadra-se no art. 231 do CP, pois o ECA somente criminaliza a remessa de criança ou adolescente para o exterior. Não se encontra tipificada, portanto, a ação de trazer. Relembre-se que somente se pode enquadrar o fato no Código Penal quando se trata de ação que recaia sobre vítima do sexo feminino, por ser mulher uma das elementares do tipo penal previsto no crime do art. 231.

Nas hipóteses em que a vítima, menor de 18 anos, não é do sexo feminino, também são diversos os problemas acerca do enquadramento típico. São respostas possíveis à questão:

1.ª) art. 245, § 1.º, do CP (nos casos de progenitor como sujeito ativo) ou § 2.º (nas demais hipóteses): o art. 245 do CP criminaliza a ação de "entregar filho menor de 18 (dezoito) anos a pessoa em cuja companhia saiba ou deva saber que o menor fica moral ou materialmente em perigo". A sanção prevista para o delito é de detenção, de 1 a 2 anos. De ver-se que seus parágrafos prevêem a mesma conduta, mas incluem a remessa do menor para o exterior ou a finalidade de lucro (modalidades qualificadas), quando, então, a pena máxima é aumentada para 4 anos. E o § 1.º menciona a conduta do progenitor, enquanto o outro abrange qualquer pessoa e retira a necessidade, para a configuração típica, de perigo moral ou material, mantendo, entretanto, a finalidade de lucro.

2.ª) art. 239 do ECA: o dispositivo possui a seguinte previsão típica:

"Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro: Pena – reclusão de um a quatro anos, e multa".

Para maria auxiliadora minahim [5], o ECA teria, tacitamente, revogado o § 2.º do art. 245 do CP. Não se pode olvidar, entretanto, que nem sempre todos os elementos típicos do art. 239 se fazem presentes, ocasião em que há que se resgatar a aplicação do Código Penal.

3.ª) art. 238 do ECA: por meio desse dispositivo, o que se pune é a promessa ou entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante paga ou promessa de recompensa. A pena prevista é de reclusão de 1 a 4 anos e multa.

4.ª) art. 244-A do ECA: com a entrada em vigor da Lei n. 9.975, de 23.6.2000, que inseriu uma nova figura delitiva no ECA (art. 244-A), as discussões se intensificaram ainda mais. Prevê o citado dispositivo:

"submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art. 2.º desta Lei, à prostituição ou à exploração sexual: Pena – reclusão de quatro a dez anos, e multa".

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Como se observa, é muito confusa a legislação penal brasileira sobre o tema.


NOTAS

1. Um deles, o art. 244-A, foi criado pela Lei n. 9.975/00.

2. O art. 231 do CP brasileiro define o crime de tráfico de mulheres: "Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha a exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro".

3. Há dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente que alcançam, também, pessoas que ainda não completaram 21 anos. De ver-se, entretanto, que eles não são aplicáveis ao tema.

4. Crime do art. 245 do CP: "Entrega de filho a pessoa inidônea".

5. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado. 3.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 774. 2.ª tir.

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Sobre o autor
Damásio E. de Jesus

advogado em São Paulo, autor de diversas obras, presidente do Complexo Jurídico Damásio de Jesus

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Damásio .. A confusa legislação sobre o tráfico internacional de crianças no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3514. Acesso em: 22 nov. 2024.

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