No centro da mais recente disputa entre EUA e Coréia do Norte está o filme “A Entrevista”. Já me referi ao mesmo aqui no Jus http://jus.com.br/artigos/35131/a-entrevista-guerra-e-cinema-juntos-e-misturados. Volto ao tema porque esta semana Barack Obama assinou um decreto impondo sanções econômicas contra a Coréia do Norte por causa da suposta invasão dos computadores da Sony Pictures a mando do regime de Pyongyang.
O crescimento da tensão entre os dois países despertou minha curiosidade. Então resolvi ver o filme “A Entrevista”. Há diversas cópias do mesmo circulando ilegalmente pela internet. Acessei uma cópia com legendas que presumo terem sido feitas em Portugal por causa do vocabulário e da forma como as frases foram construídas.
Um dos temas do filme é a importância, irreverência e irrelevância da imprensa norte-americana. O outro é obviamente a natureza intrinsecamente perversa do líder e do regime norte-coreano. Algumas piadas são interessantes, outras são exageradamente anais. Um dos melhores momentos do filme é a briga entre o produtor norte-americano e seu “colega” norte-coreano na sala de edição da entrevista.
A desconstrução do líder norte-coreano durante a transmissão da entrevista pode ser comparada a desconstrução de Nixon por Frost (episódio citado algumas vezes no filme). Ridicularizado porque a entrevistador revela que ele gosta de Katy Parry, tem anus e acredita que Margeritas é uma bebida de gays, Kim Jong Un mata o jornalista ao vivo com um tiro no peito. A comédia é deixada de lado, porém, quando os protagonistas explodem Kim Jong Un com um disparo de tanque T-54 durante a fuga.
“Team America: World Police”, filme produzido em 2004 para ridicularizar o pai de Kim Jong Un, é bem melhor do que “A Entrevista”. O inesquecível tema musical cantado pelo personagem que mimetiza Kim Jong-il é um dos melhores momentos do cinema norte-americano dos últimos tempos: https://www.youtube.com/watch?v=UEaKX9YYHiQ .
Segundo informações que obtive a Sony não teve prejuízo com “A Entrevista”. O custo do filme já foi parcialmente coberto pela sua distribuição regular na internet. Ele já está sendo projetado em centenas de salas de cinema nos EUA e provavelmente será exibido em milhares de outras ao redor do mundo. A Sony provavelmente recuperará o que investiu e terá algum lucro. O principal fundamento das sanções impostas à Coréia do Norte por Obama (o prejuízo da companhia invadida) deixará de existir em breve. Em razão disto, devemos suspeitar que a tensão entre os dois países é mais profunda do que aparenta ser na superfície.
A tensão entre os dois universos simbólicos inimigos fica mais evidente em obras como “Invasão da Casa Branca” (2013), filme em que terroristas norte-coreanos matam civis de maneira indiscriminada para poder dominar o centro do poder norte-americano com o objetivo de destruir o mundo usando o arsenal nuclear dos EUA. Este filme foi concebido especificamente para levar o espectador a odiar os norte-coreanos e a ter piedade dos pobres norte-americanos. A inversão operada pelo filme é evidente. Quem realmente tem tradição de matar civis inocentes não é a Coreia do Norte e sim os EUA e desde a II Guerra Mundial (quando os norte-americanos bombardearam e incendiaram dezenas de cidades históricas alemãs que não tinham qualquer importância militar e jogaram bombas atômicas em duas cidades japonesas reduzindo-as a cinzas junto com seus habitantes inofensivos). Os massacres de civis por tropas norte-americanas durante a Guerra da Coréia e a Guerra do Vietnan são fatos bem documentados.
Por mais que seja militarizada, a Coréia do Norte não tem e nunca terá o mesmo poder militar que os EUA. Além disto, o repugnante regime de Pyongyang não tem usado seus militares com tanta frequência quanto Washington. Os EUA foram o único país que, em pleno século XXI, atacaram quase ao mesmo tempo dois países (Afeganistão e Iraque) enquanto ameaçavam militarmente outras nações (inclusive a Coréia do Norte). As emoções despertadas pelo filme “Invasão da Casa Branca” não correspondem aos fatos e mesmo assim preparam o publico mundial para a guerra que os EUA parecem querer retomar contra os norte-coreanos.
Os norte-americanos foram derrotados no Vietnam, mas voltaram a manter relações com aquele país. A Guerra da Coréia é a único conflito militar dos EUA que não acabou. As cicatrizes deixadas nos dois lados são imensas.
Quando derrotaram o avô de Kim Jong Un, obrigando-o a correr para o norte da península, as tropas sul-coreanas e norte-americanas massacraram milhares de parentes de norte-coreanos suspeitos de serem comunistas. Ao chegarem ao Yalu na fronteira da Coréia do Norte com a China, as tropas da ONU comandadas por Douglas MacArthur foram envolvidas pelos exércitos chineses comandados por Peng Dehuai. Durante a ofensiva chinesa, os norte-americanos colheram derrotas humilhantes sendo obrigados a abandonar seu equipamento pesado e a correr com o rabo entre as pernas para a segurança de Pusan.
Na época em que Matthew B. Ridgway substituiu Walton H. Walker no comando do VIII Exército dos EUA na Coréia ele “... percebeu em todos os homens com os quais conversava a total ausência de autoconfiança. Um exército atordoado, inseguro de si, dos seus comandantes e da própria presença, ansiava pelo apito dos navios que levariam todos para casa.” (Yalu, Jörg Friedrich, Record, 2011, p. 337). As tropas dos EUA recuperaram seu moral e algum terreno, tomaram Seul de Peng Dehuai empurrando o exército chinês de volta para o paralelo 38. Mas àquela altura já havia ficado claro para Truman que os EUA não conseguiriam aniquilar os exércitos chineses na Coréia do Norte, nem realizar o sonho insano de MacArthur obter uma vitória esmagadora similar à da II Guerra Mundial.
As feridas da Guerra da Coréia ainda estão abertas nos EUA? A julgar por filmes como “A Entrevista”, “Team America: World Police” e “Invasão da Casa Branca” a resposta só pode ser uma: sim. Que outro motivo os norte-americanos teriam para ficarem tão obsecados com um país minusculo e subdesenvolvido cujo governo conseguiu recentemente desagradar até a China (país cujas tropas sangraram para que ele seguisse existindo)?
E já que estamos falando de história e de filmes, vou sugerir aos leitores uma pergunta. O líder dos anões de “O Hobbit 3” é vingativo, obsessivo, ingrato, belicoso, desconfiado, mesquinho e não honra sua palavra acarretando a guerra entre anões e homens/elfos. Em relação à disputa diplomática em curso com qual dos dois inimigos Thorin mais se parece: EUA ou Coréia do Norte?
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