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Inconstitucionalidade da cobrança do ICMS nos salvados vendidos pelas seguradoras

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01/11/2002 às 00:00
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4º ) Do entendimento jurisprudencial pátrio

O Superior Tribunal de Justiça em vários julgados se manifestou favorável a incidência do referido imposto nos salvados, conforme averiguamos da ementa do acórdão [8]:

"EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. TRIBUTÁRIO, SEGURADORA. SALVADOS. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS. INCIDÊNCIA DO TRIBUTO."

São tributáveis, pelo ICMS, os salvados resultantes de sinistros, posto que a operação de venda através das companhias seguradoras não é feita em caráter eventual e sim com habitualidade, passando o produto a circular tal qual ocorre na circulação de mercadorias, quando desenvolvida atividade comercial."

Vale destacar alguns trechos dos votos emitidos pelos Ilustres Ministros- membros do STJ, a começar pelo Ministro Ilmar Galvão, no Resp nº 1.373-RJ (DJ 06.08.90):

"(...) as sociedades seguradoras exercem atos de comércio, quando vendem bens salvados de sinistros, já que assim procedem, não de modo eventual, mas, ao revés, com habitualidade, pelo singelo motivo de não terem porque conservar ditos bens em seu patrimônio, privando-se da receita que podem eles produzir.

Com efeito, trata-se de bens que possuem inegável valor econômico residual, e que, ao serem postos em circulação, de maneira sistemática, asssimilam-se a mercadoria, para efeito de caracterização da atividade comercial contemplada pelo tributo em tela.

Configura-se, pois, a hipótese prevista no art. 6º, § 1º, inciso I, do Decreto-lei n.º 406/76, que arrola entre os contribuintes do ICM, hoje ICMS, ‘as sociedades civis de fins econômicos..., que pratiquem, com habitualidade operações relativas à circulação de mercadorias.’

Data venia, não há comparar-se a situação de tais entidades, à de quem, em caráter esporádico, desfaz-se de unidade patrimonial móvel, não tendo qualquer aplicação ao caso dos autos, por isso, os precedentes jurisprudenciais invocados."

Passo a citação do Ministro Vicente Cernicchiaro a respeito da matéria em pauta:

"(...) Não estabelece a empresa seguradora que vende a chamada sucata, resultante do pagamento do sinistro, que ficaria, então, com o restante. Entretanto, se o objetivo social da empresa seguradora não é exercer o comércio, a venda da sucata, porém, integra permanentemente a sua preocupação a fim de diminuir o prejuízo. Havendo, assim, esta potencialidade do exercício de intermediação para a colocação de material inservível, neste momento, ainda que a atividade não seja diária, ela protai-se no tempo. Assim, a saída da mercadoria importa a caracterização do fato gerador do imposto reclamado."

Apesar dos argumentos relevantes expostos na lavra da referida decisão, os argumentos demonstram-se equivocados, porque conforme já exposto, a habitualidade nestas operações não é previsível, de sorte que estes mecanismos possam ser inseridos na estimativa dos balancetes empresarial da seguradora, bem como o produto não tem o condão de se fazer circular como se mercadoria fosse. Inobstante o ato de comércio, consoante o já estudado, trazer inexoravelmente em seu bojo o intuito de auferir lucro. Pergunta-se: Que lucro tem a seguradora ao vender os salvados apreendidos?

Aliás, tal assertiva é precipitada, porque os efeitos desta análise gera manifesta insegurança jurídica. Falta incidência legal para legitimar a tributação pretendida. Ora, o Código Tributário Nacional é claro ao dispor em seu artigo 108 e o 1º parágrafo:

"Art. 108- Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará, sucessivamente, na ordem indicada:

I-a analogia;

II-(omissis)

§1º – O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei"

Assim é defeso ao Poder Judiciário utilizar da analogia do termo "mercadoria" para aplicação do termo "salvados" como sinônimos fossem, para fins de alargar a hipótese de incidência do imposto em comento. A habitualidade, sustentada como argumento para legitimar a cobrança do ICMS, deve ser intencional. Ora, a seguradora não possui intenção em vender o salvado. Se é certo que o ato de comércio contém a habitualidade, tão menos certo é o fato de conter também a prática intencional de praticar mercancia, bem como a existência, via de regra, do animus lucrandi. Ao alienar salvados a seguradora apenas recupera a parcela de indenização que excedeu o dano efetivamente ocorrido com a decorrência do sinistro. Nesta esteira, Roque Antônio Carraza afirma: "Remarcamos que a mercadoria é essencialmente vendida com o fito do lucro. A venda mercantil é feita para especular. O ICMS incide sobre negócios jurídicos regidos pelo Direito Comercial que acarretam circulação de mercadoria."

A ressalva que deve ser oportunamente trazida diz respeito ao entendimento divergente do Ilustre Ministro Carlos Velloso, na época membro da 2ª Turma do STJ, cujo posicionamento transcreve-se da ementa abaixo [9]:

"TRIBUTÁRIO. ICM. SEGURADORA. SALVADOS. SUB-ROGATÓRIOS.

I-Impossibilidade de serem tributados, pelo ICM, salvados sub-rogatórios, que não constituem mercadoria, objeto da operação tributável, tendo em vista que a seguradora não ostenta a qualidade de produtor, industrial ou comerciante de veículos usados ou de sucata (DL 73/66, artigo 73. Aplicabilidade da Súmula 541- STF.

II-Recurso Especial conhecido e provido." (Destacou-se)

Em que pese o Superior Tribunal de Justiça ter consolidado, mesmo com a divergência proferida pelo Ministro Carlos Velloso e outros poucos ministros que o seguiram, o entendimento desfavorável ao contribuinte, culminando na edição da Súmula 152 do STJ, conforme o teor se verifica abaixo:

"Na venda pelo segurador, de bens salvados de sinistros, incide o ICMS."

Contudo, o Supremo Tribunal Federal, não se posicionou definitivamente a respeito, ao contrário, em sede do ADI n.º 1648, o tema foi posto à baila recentemente e encontra-se no momento aguardando julgamento, vez que o Ilustre Ministro Nelson Jobim pediu vista dos autos para melhor apreciação da matéria, mesmo já com a manifestação dos Ministros Gilmar Ferreira Mendes, Marco Aurélio, dentre outros, favorável ao contribuinte, e por derradeiro, contrária ao entendimento dado pela Corte Especial à questão, conforme o destaque dado pelo Informativo do Supremo Tribunal Federal n.º 283:

"Iniciado o julgamento de mérito de ação direta ajuizada pela Confederação Nacional do Comércio contra a expressão ‘e a seguradora’, constante do inciso IV do art. 15 da Lei 6.763/75, na redação dada pelo art. 1º da Lei 9.758/89, ambas do Estado de Minas Gerais, bem como do art. 14, e da expressão ‘o comerciante’, constante do inciso I do art. 15, todos da citada Lei 6.763/75, em que se pretende ver declarada a inconstitucionalidade da incidência de ICMS sobre a alienação, por parte das empresas seguradoras, de salvados de sinistro. O Min. Gilmar Mendes, relator, proferiu voto no sentido de julgar procedente em parte o pedido formulado para declarar a inconstitucionalidade, no inciso IV do art. 15 da Lei 6.763/75, da expressão "e a seguradora", por considerar que as vendas de salvados pelas companhias seguradoras constituiriam atividade integrante das operações de seguro, cuja tributação se sujeita à competência da União (CF, art. 153, V), não se enquadrando tais vendas, ainda, no conceito de operações relativas à circulação de mercadorias. Após, o julgamento foi adiado em virtude do pedido de vista do Min. Nelson Jobim (Art. 15: "Incluem-se entre os contribuintes do imposto:... IV - a instituição financeira e a seguradora")." ADI 1.648-MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, 25.9.2002. (ADI-1648)

O Ministro Maurício Corrêa, membro da Corte Suprema, foi também desfavorável a incidência do ICMS, ao fundamentar seu voto na ADIN n.º 1.332/ RJ:

"(...) também não entendo que os salvados não integrem o estoque para a atividade comercial contínua. O que ocorre na espécie é que esses salvados, na verdade, visam a diminuir o impacto ocasionado pelo sinistro. Portanto, não existe o fato gerador de que dele nasça uma obrigação fiscal por uma transação comercial repetitiva."

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Realmente a matéria em deslinde provoca polêmica, mas tudo indica que a Corte Suprema irá reformular o entendimento que foi, erroneamente, pacificado pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, tornando-se sem efeito a Súmula 152 formulada por esta Corte Especial.


5º ) Conclusões

.

Exaurida, sem maiores delongas, a análise da matéria em estudo, devemos fazer as breves considerações acerca do que pode ser, do todo até aqui exposto, apreendido.

A cobrança do ICMS é indevida por inúmeras razões. A primeira, porque os salvados não são mercadorias e o fato gerador do tributo em análise é claro ao dispor que incide sobre operações de circulação de mercadorias, logo a decorrência lógica destes termos é clara: Não há incidência do ICMS em salvados. A duas, porque a competência para dispor da matéria tributária em relação às seguradoras é a União e não os Estados. Se já há a incidência do imposto de operações de seguro, vulgo IOF- Imposto de Operações Financeiras, não há qualquer possibilidade de nova incidência, sob pena de bis in idem. A três, não há legalidade nesta cobrança, não há respaldo jurídico de norma existente e válida que possa ensejar a cobrança do imposto. Por tudo isto, a prática desta cobrança fere os princípios constitucionais tributários tais como o princípio da capacidade contributiva, da segurança jurídica, do não-confisco, da não-surpresa, da legalidade, da competência tributária, que são verdadeiros alicerces para o sistema jurídico pátrio.

Quanto a jurisprudência atual, percebe-se que apesar dos esforços dos Ilustres Julgadores competentes para conhecer da matéria, a questão encontra-se, ainda hoje, polêmica, não resolvida de forma definitiva. O Superior Tribunal de Justiça se manifestou a favor do Fisco Estadual, no entanto, o caminho que o Supremo Tribunal Federal vem traçando é justamente o oposto, o que demonstra a plausibilidade dos argumentos aqui elucidados.


Notas

1. Machado, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 20. Ed. Malheiros. 2002

2. Calmon, Sacha. Manual de Direito Tributário. 2ª Ed. Forense. 2002

3. Carvalho de Mendonça. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Rio de Janeiro. Freitas Barros, Vol. V. p. 76.

4. Requião, Rubens. Curso de Direito Comercial. 1º Vol. 23ª Ed. Saraiva. São Paulo.1993. fl. 36

5. Wald, Arnold. Obrigações e Contratos. 11ª Ed. Revistas dos Tribunais. São Paulo. fl. 424.

6. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro- Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. 3º Vol. 12ª Ed. Saraiva. São Paulo. 1997

7. DE Plácido e Silva. Vocabulário Jurídico. 13ª Ed. Forense. Rio de Janeiro. 1997.

8. ERESP 45911/SP, DJ 11/09/95, Ministro Relator Hélio Mosimann, 1ª Seção.

9. RESP 1373/RJ, DJ 06/08/90, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, Maioria.

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Sobre a autora
Liana Paula Vidal Pacheco

advogada em Brasília (DF), Escritório Cortês e Zupiroli Advogados Associados, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET), acadêmica de Filosofia pela UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PACHECO, Liana Paula Vidal. Inconstitucionalidade da cobrança do ICMS nos salvados vendidos pelas seguradoras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3535. Acesso em: 25 abr. 2024.

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