A mensagem do cristianismo como fundamento histórico de institutos jurídicos contemporâneos

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12/01/2015 às 00:05
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4 O PROBLEMA DA VALIDADE DO DIREITO

Segundo Alexandre Travessoni Gomes “a busca do fundamento de validade do direito sempre foi objeto das indagações dos grandes pensadores ocidentais. Desde a Antiguidade o homem se pergunta por que deve obedecer ao direito positivo e qual deve ser o conteúdo deste direito.” (GOMES, 2004, p. 23)

Por sua vez, Alexy considera, em sentido estrito, que “uma norma é juridicamente válida se foi promulgada por um órgão competente para tanto, segundo a forma prevista, e se não infringe um direito superior; resumindo: se foi estabelecida conforme o ordenamento” (ALEXY, 2009, p. 104).

De acordo com o dicionário Houaiss, a validade possui como significadoqualidade ou condição de algo que se encontra em condições de produzir os efeitos dele esperados.” (HOUAISS; VILLAR, 2009b, p. 1.919) Na conceituação do mesmo dicionário, a validade vem apresentada como termo jurídico que significa “característica presente no ato jurídico que não possui nenhuma causa de nulidade, que foi concluído com observância de todas as determinações e formalidades exigidas por lei.” (HOUAISS; VILLAR, 2009b, p. 1.919)

Neste diapasão, os conceitos de validade serão apresentados sob a ótica de diversas teorias, as quais defendem, cada qual, suas ideias acerca de qual seria o fundamento que legitima a norma jurídica, tornando-a válida.

O objetivo é justamente buscar um conceito coerente e prático para a validade. Para alcançar este objetivo, abordar-se-á o conceito de validade material defendido pelos jusnaturalistas, de validade formal pelos positivistas e, em seguida, o conceito de validade procedimental apresentado no contexto pós-positivista.

4.1 O Jusnaturalismo

O Jusnaturalismo, também conhecido como Doutrina do Direito Natural, pode ser compreendido sob diversos enfoques. De acordo com Alexandre Travessoni Gomes, o Jusnaturalismo foi compreendido em diversas manifestações do pensamento jurídico. Fundamenta tal assertiva, considerando que o direito natural já foi apresentado como reflexo da ordem natural, oriundo da vontade divina. Em outro momento, fora vista como reflexo da ordem natural, contudo, deriva da razão. Em que pese a diversidade de manifestações desta corrente, entende que todas elas defendem a crença em um direito superior que vincula o conteúdo do direito positivo. (GOMES, 2004)

No mesmo sentido, tem-se o conceito apresentado por Paulo Nader, o qual chama de “Jusnaturalismo a corrente de pensamento que reúne todas as idéias que surgiram, no correr da história, em torno do Direito Natural, sob diferentes orientações.” (NADER, 2013, p.262) Complementa o conceito com a seguinte assertiva:

A corrente jusnaturalista não se tem apresentado, no curso da história, com uniformidade de pensamento. Há diversos matizes, que implicam a existência de correntes distintas, mas que guardam entre si um denominador comum de pensamento: a convicção de que, além do Direito escrito, há uma outra ordem, superior àquela e que é a expressão do Direito justo. É a idéia do Direito perfeito e por isso deve servir de modelo para o legislador. É o Direito ideal, mas ideal não no sentido utópico, mas um ideal alcançável. A divergência maior na conceituação do Direito Natural está centralizada na origem e fundamentação desse Direito. Para o estoicismo helênico, localizava-se na natureza cósmica. No pensamento teológico medieval, o Direito Natural seria a expressão da vontade divina. Para outros, se fundamenta apenas na razão. O pensamento predominante na atualidade é o de que o Direito Natural se fundamenta na natureza humana. (NADER, 2013, p. 436-437)

Conforme se pode observar, o jusnaturalismo é apresentado, ao longo da história, sob diversos enfoques, todavia, todas as correntes de pensamentos convergem ao defender o Direito emanado de uma ordem superior, além da capacidade humana, capaz de servir de exemplo para o Direito positivo.

Posta uma noção sobre o que seria o Jusnaturalismo, passa-se ao estudo do fundamento de validade dentro desta perspectiva em suas diversas manifestações. Desde já, consta-se que os jusnaturalistas adotam o critério de validade material, tendo em vista que para a análise de legitimidade de suas normas, volta-se para o conteúdo destas, para a matéria em que nelas são tratadas.

Para tanto, buscando uma melhor compreensão do tema, Alexandre Travessoni Gomes (2004), divide o estudo do Jusnaturalismo em três fases, quais sejam, o Jusnaturalismo antigo, o Jusnaturalismo cristão-medieval e o Jusnaturalismo moderno.

4.1.1 A validade material do Jusnaturalismo antigo

O Jusnaturalismo antigo marca o surgimento da Doutrina do Direito natural, que teve início no período arcaico grego. Naquela época, as normas jurídicas derivavam da vontade dos deuses, repassadas aos seres humanos através da revelação da vontade divina. Como pensadores que se destacaram neste período, pode-se citar os Sofistas, Sócrates, Platão, Aristóteles e os Estóicos. (GOMES, 2004)

A fim de exemplificar como o Direito era visto neste período, cita-se o episódio de Antígona, o qual demonstra com clareza a visão da antiguidade clássica no sentido das leis naturais, entendidas como divinas, vincularem as leis positivadas, e, por consequência, conferirem validade a estas.

Polínices e Eteócles, irmãos de Antígona, duelaram até a morte. O rei Creonte mandou enterrar Etéocles com todas as honras, mas proibiu que Polínices fosse enterrado. Estableceu que aquele que violasse a sua ordem seria condenado à morte. Mandou anunciar a sua decisão a todos, colocando homens de guarda junto ao cadáver, para evitar que alguém o roubasse e o enterrasse. (SÓFOCLES, 2005)

Todavia, Antígona não se conformava com a ordem do rei, por considerá-la injusta e contrária às leis divinas. Diante disto, e mesmo com a expressa proibição do rei, Antígona sepultou o corpo do irmão com todos os ritos necessários, a fim de que o corpo dele fosse aceito pelos deuses. (SÓFOCLES, 2005) Não demorou muito para que o rei ficasse sabendo, e, cheio de furor, mandou que trouxessem Antígona a sua presença, e assim a questionou:

[...] Fala, agora, por tua vez; mas fala sem demora! Sabias que, por uma proclamação, eu havia proibido o que fizeste?

- Sim, eu sabia! Por acaso poderia ignorar, se era uma coisa pública?

- E apesar disso, tiveste a audácia de desobedecer a essa determinação?

- Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que te édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! E ninguém sabe desde quando vigoram! Tais decretos, eu que não temo o poder de homem o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham punir os deuses! (SÓFOCLES, 2005, p. 30-31)

Diante deste quadro, pode-se claramente notar que Antígona preferia a sanção dos homens à dos deuses, pois considerava que o direito positivo não refletia as normas do direito natural, não representando, portanto, um direito justo.

Alexandre Travessoni Gomes ressalta que

A importância deste episódio está não apenas nessa interiorização, mas no fato de, pela primeira vez, aparecer, de forma clara, a fundamentação do direito positivo numa lei superior (direito natural) e ainda, como nota Truyol y Serra, a possibilidade de um conflito entre este e aquele. (GOMES, 2004, p. 44)

Daí se extrai uma das grandes questões postas pela Filosofia do Direito Ocidental, a saber, a questão da legalidade-legitimidade do poder, e o direito de resistir à ordem injusta.

Neste contexto, surgem os sofistas, os quais “empreenderam uma crítica ao fundamento de validade do direito, retirando a tradição de sua sacralidade.” (GOMES, 2004, p. 46) Para os sofistas, o direito se apresentava como “um produto meramente humano.” (GOMES, 2004, p. 47)

Já Sócrates entende por legalidade a seguinte premissa: “justo é respeitar a lei sempre, mesmo que a lei seja injusta (possua algum defeito), não implicando esse respeito à lei injusta a atribuição da qualidade “justa” a essa lei.” (GOMES, 2004, p. 51)

De acordo com Platão, há um Estado ideal. Segundo Alexandre Travessoni Gomes, Platão considera que “o direito desse Estado ideal é, pois, o direito natural, ou o direito ideal. A justiça, que nesse Estado ideal é sempre praticada, consiste em “dar a cada um o que lhe é devido” de acordo com suas aptidões.” (GOMES, 2004, p. 57)

Por sua vez, Alexandre Travessoni Gomes demonstra como o direito natural estava presente no pensamento de Aristóteles. Para tanto, afirma que

[...] a conformidade com a lei, em Aristóteles, não pode ser mera concordância com a lei positiva. Isso porque, sendo a equidade o justo do caso concreto, vai além da lei positiva e demonstra que a justiça em Aristóteles não pode ser mera concordância com ela, significando, pois, a concordância com a lei natural. (GOMES, 2004, p. 64)

Após Aristóteles, surge em cena o Estoicismo que “colocou no centro de seu sistema o conceito de natureza, entendida como princípio dominador que paira por todo o universo (Deus).” (GOMES, 2004, p. 65) Complementando esta ideia, o estoicismo considerava que “o universo é composto por uma substância, que é a razão: a lei da natureza é a razão. O homem, como parte dessa natureza, é um ser racional.” (GOMES, 2004, p. 65) Os estóicos defendem que se uma lei positiva viola a lei natural, ela é, por sua vez, injusta. (GOMES, 2004)

O autor ainda aponta Cícero, um pensador eclético que adotou a idéia estóica, apresentando a trilogia legal defendida por este pensador: “a) a lei eterna é lei da reta razão, em concordância com a natureza; b) essa razão tem sua sede também no homem, lei natural, c) vinculando o direito positivo (lei positiva), que com ela deve ser concorde.” (GOMES, 2004, p. 66)

Assim, mesmo diante das diversas manifestações de pensamentos dentro deste período, pode-se perceber que a validade do Direito sob a ótica do Jusnaturalismo antigo, está subordinada à convergência com o direito superior, eterno e soberano.

4.1.2 A validade material do Jusnaturalismo cristão-medieval

Após o Jusnaturalismo antigo, surge, na Idade Média, o Jusnaturalismo medieval, conhecido também como Jusnaturalismo cristão. A característica marcante desta corrente de pensamento era a observância da vontade do único Deus, apresentando uma tendência teocêntrica. Não mais se baseavam em vontade de deuses superiores, mas agora, baseava na vontade do Deus da Bíblia, sendo ele, segundo esta corrente de pensamento, o responsável por estabelecer as normas que separam o justo do injusto. (GOMES, 2004)

Alexandre Travessoni Gomes (2004) informa que tal corrente de pensamento possui como a mais antiga manifestação de suas ideias, as afirmações feitas pelo Apóstolo Paulo, na carta dirigida aos Romanos, em seu segundo capítulo, nos versículo treze ao quinze[1], quando afirma que são justos aqueles que fazem o que manda a lei, que está escrita no coração dos homens.

Possui como principais defensores Santo Agostinho e Santo Tomás. (GOMES, 2004)

Segundo Alexandre Travessoni Gomes, “interessa-nos diretamente o fundamento de validade do Direito em Santo Agostinho, que, como mostra Salgado, absorve a trilogia legal dos estóicos, adicionando-lhe a idéia de um Deus pessoal (SALGADO apud GOMES, 2004, p. 72)

Santo Agostinho defendia a existência de uma lei eterna e imutável no espírito de cada ser humano, e, ainda, uma lei temporal, aquela promulgada em códigos, inerente ao convívio dos homens na terra. Sobre este posicionamento, bem coloca Alexandre Travessoni Gomes, citando Santo Agostinho:

A vontade de Deus é a lei eterna, considerada, por Santo Agostinho, “a razão suprema de tudo, à qual é preciso obedecer sempre e em virtude da qual os bons merecem vida feliz e os maus vida infeliz.” Essa lei é eterna e imutável, sendo fundamento do justo e de tudo legítimo que existe na lei temporal. A lei eterna imutável foi impressa no espírito dos homens que, ao contrário dos animais, possuem razão. [...] Além da lei eterna que foi impressa no espírito do homem, há leis temporais, que se promulgam nos códigos, necessárias aos homens que vivem na terra (cidade terrena). Sendo a espécie humana mutável e sujeita às vicissitudes do tempo, a lei temporal pode ser modificada sem que se constitua, com isso, injustiça. (AGOSTINHO apud GOMES, 2004, p. 72)

Desta forma, Santo Agostinho propunha que a lei terrena poderia ser modificada de acordo com a mutabilidade da espécie humana e as mudanças decorrentes do tempo, mantendo o seu caráter de normas justas. Assim, a lei temporal ou o direito positivo, poderá sofrer mutações já que destinadas a sujeitos mutáveis, não perdendo de vista que seu fundamento se encontra na lei eterna imutável.

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Neste sentido, Santo Agostinho defende que o direito deve estar em consonância com as exigências da lei eterna, de forma que, havendo disposições contrárias à lei de Deus, não possuem, por conseguinte, força vinculante.

Já Santo Tomás defende a ideia de que o direito divino excede a natureza humana, motivo pelo qual entende que este não deva ser chamado de direito natural. (GOMES, 2004)

Segundo a visão tomista, o homem participa da lei eterna através da razão. Alexandre Travessoni Gomes complementa esta ideia:

E por intermédio da razão o homem encontra o princípio supremo da lei natural que manda fazer o bem e evitar o mal. Esse princípio supremo é imutável, assim como os princípios secundários, podendo apenas haver mudança em alguns casos particulares, “devido a certas causas especiais que impedem a observância de tais preceitos.” (AQUINO apud GOMES, 2004, p. 77)

Prossegue afirmando que “como a razão humana participa de maneira imperfeita da razão divina, surge a necessidade de a razão prática sancionar determinadas ações particulares, por intermédio da lei humana.”(GOMES, 2004, p. 77) Complementa dizendo que “a lei natural, razão humana partícipe da lei eterna, dá ao homem os princípios, dos quais são derivados a lei humana, que tem por objetivo o bem da comunidade.” (AQUINO apud GOMES, 2004, p. 77)

Alexandre Travessoni Gomes aponta que “sendo o fundamento de validade da lei humana a lei natural, aquela não poderá violar esta, caso em que será considerada injusta.” (GOMES, 2004, p. 78). Para Santo Tomás de Aquino existe, ainda, outra forma de injustiça da lei humana, qual seja, a violação da lei divina. Ele considera que “a lei divina é a lei revelada ao Homem, não sendo, portanto, conhecida por intermédio da razão.” (GOMES, 2004, p. 78)

Gomes entende que “essa concepção tomista dá base a um direito de resistência contra a lei injusta, que deve, entretanto, ser exercido com prudência: a lei humana que viola a lei natural deve ser respeitada para que a ordem seja mantida.” (MIRANDA apud GOMES, p. 78). Todavia, complementa afirmando que caso “a lei humana viole a lei divina, estabelecendo, por exemplo, a idolatria, não deveria ser respeitada.” (AQUINO apud GOMES, 2004, p.78)

Destarte, verifica-se que a validade do Direito, segundo pensamento de importantes defensores do Jusnaturalismo cristão-medieval, condicionava-se ao sagrado, contudo, buscava sua fundamentação na vontade de um único Deus, àquele apresentado pelo Cristianismo.

4.1.3 A validade material do Jusnaturalismo moderno

Logo em seguida, com o Renascimento, aparece em cena o Jusnaturalismo moderno, substituindo o teocentrismo medieval pelo antropocentrismo humanista, ou seja, desviando o foco de Deus e trazendo o homem para o centro das discussões sobre a validade das normas jurídicas. Possui como principais doutrinadores Hugo Grócio, Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu e Rosseau. (GOMES, 2004)

Hugo Grócio e Thomas Hobbes, defensores do primeiro estágio do jusnaturalismo clássico, apresentam a ideia de que o governante sábio e que possui autocontrole é capaz de garantir a observância do Direito natural, havendo, com isso, uma separação deste com a religião. (GOMES, 2004)

Grócio estabeleceu uma separação entre o direito natural e a religião, sendo os princípios naturais derivados da razão e não mais da divindade. (GOMES, 2004) Ele estabelece um duplo fundamento do direito natural: “a reta razão e a sociabilidade humana” (GRÓCIO apud GOMES, 2004, p. 81). Apenas para elucidar melhor este duplo fundamento, traz-se a lição de Alexandre Travessoni Gomes:

Grócio parte do pressuposto de que o homem possui um desejo irresistível de se estabelecer em sociedade, e que por isso deduz, pela razão, os princípios do direito natural. A razão não é mais o órgão do conhecimento natural de Deus, mas a faculdade cognoscitiva das verdades fundamentais da vida social, equiparáveis, na sua estrutura, às verdades matemáticas. (GRÓCIO apud GOMES, 2004, p. 81)

Por sua vez, Hobbes estabeleceu o estado de natureza, não se importando, diferente de Grócio, pela criação de uma “ordem normativa ideal, mas uma ordem real de convivência.” (WEZEL apud GOMES, 2004, p. 81). Segundo Hobbes o direito natural é entendido como “um preceito ou regra natural descoberto pela razão que proíbe a um homem fazer o que é destrutivo de sua vida ou pode privá-lo dos meios de a conservar; e omitir o que, em seu conceito, deve deixar de fazer para assegurar sua existência.” (GOMES, 2004, p. 81-82)

Neste sentido, Hobbes defendia que “uma vez criado o Estado, para tornar possível a convivência entre os homens, o justo e o injusto são determinados pela ordem estatal.” (GOMES, 2004, p. 82)

Desta forma, constata-se que para estes autores a validade do direito estava condicionada pela vontade do governante, quem detinha a gerência do Estado.

O segundo estágio do Jusnaturalismo clássico é marcado pelas teorias apresentadas por Locke e Montesquieu, os quais trouxeram em suas ideias a imposição de limites do poder político, afirmando, como forma de garantia do direito natural dos indivíduos, a separação de poderes, objetivando evitar a ocorrência de casos de tirania e arbitrariedade governamental. (GOMES, 2004)

Atento ao contexto vivenciado, justificam-se os pensamentos destes filósofos na busca em se estabelecer limites para a atuação do Estado, o que não se vislumbrava no pensamento Hobbesiano. (GOMES, 2004)

Para Locke, “no estado civil os direitos naturais não desaparecem, mas subsistem. A lei da natureza sobrevive, mudando apenas o direito de obrigar seu cumprimento, que passa ao corpo político.” (GOMES, 2004, p. 84) É em Locke que se “estabeleceu a divisão dos poderes em legislativo, executivo e federativo, com fim de impedir a tirania e arbitrariedade governamental.” (GOMES, 2004, p. 84)

Nessa esteira de pensamento, Montesquieu afirma que “as leis, no seu sentido mais amplo, são relações necessárias que derivam da natureza das coisas.” (MONTESQUIEU apud GOMES, 2004, p. 85)

O terceiro estágio do pensamento jusnaturalista clássico, marcado pela teoria de Rousseau, acreditava na soberania popular e na Democracia, posicionando no sentido de que o Direito natural se manifestava através da vontade geral. (GOMES, 2004)

Como visto, embora sob diferentes óticas, constata-se que da corrente jusnaturalista moderna se extrai a imperiosa necessidade de observação dos fatos sociais e da natureza humana para a efetivação da justiça através do Direito, e, por consequência, para obtenção de validade das normas, por meio da observância dos princípios do Direito natural.

Desta feita, diante das perspectivas de validade apresentadas dentro das correntes jusnaturalistas, para uma norma jurídica ser considerada como válida, é imprescindível a convergência entre o Direito natural e o Direito positivo, ou seja, para que as normas positivadas sejam válidas, torna-se imperioso que estejam em concordância com o Direito natural. Em sentido contrário, é de se concluir que se uma norma positivada viola o Direito natural, flagrantemente ela não será válida.

Assim, pode-se claramente extrair que a validade no Jusnaturalismo traz consigo um fundamento material, sendo que para a validade de uma norma, é necessária a observância de seu conteúdo, devendo este estar em conformidade com o Direito natural.

4.2 O Positivismo jurídico

Trazendo ideias diferentes do Jusnaturalismo, surge no cenário do Direito, o Positivismo jurídico, com teorias que refutam a ideia de juízos materiais de valor sobre as normas, defendendo, em suma, que as análises jurídicas deverão se dar em normas que já existem na esfera do Direito, sendo que tais normas são emanadas do Estado e apresentam, como um todo, um sistema coerente e completo, sem lacunas.

Antes de adentrar na análise do fundamento de validade sob a perspectiva positivista, importante se faz tecer uma breve explicação sobre o tema. Para isso, tem-se o conceito elaborado por Paulo Nader, que assim dispõe:

O positivismo jurídico, fiel aos princípios do positivismo filosófico, rejeita todos os elementos de abstração na área do Direito, a começar pela idéia do Direito Natural, por julgá-la metafísica e anti-científica. Em seu afã de focalizar apenas os dados fornecidos pela experiência, o positivismo despreza os juízos de valor, para se apegar apenas aos fenômenos observáveis. Para essa corrente de pensamento o objeto da Ciência do Direito tem por missão estudar as normas que compõem a ordem jurídica vigente. A sua preocupação é com o Direito existente. Nessa tarefa, o investigador deverá utilizar apenas os juízos de constatação ou de realidade, não considerando os juízos de valor. Em relação à justiça, a atitude positivista é a de um cetiscimo absoluto. Por considerá-la um ideal irracional, acessível apenas pelas vias da emoção, o positivismo se omite em relação aos valores. (NADER, 2013, p.449 )

Apresentando algumas características do Positivismo jurídico, Alexandre Travessoni Gomes pontua:

O Positivismo Jurídico recusa qualquer tipo de especulação metafísica, negando, portanto, a existência de um ordenamento superior. Por essa razão, muitos afirmam ser o método empírico sua característica marcante. Se no dualismo jusnaturalista o direito posto só era direito à medida que concordasse com o direito natural, alguns positivistas chegaram a afirmar que só é justo aquilo que estiver no ordenamento positivo. (GOMES, 2004, p. 162)

Sobre esta característica de justiça, discorda alguns positivistas, dentre eles, Kelsen, o qual, através de “uma visão integral de sua concepção de justiça leva-nos à conclusão de que seu intento foi separar a Ciência do Direito de qualquer influência ideológica e política, e, por ser a justiça um valor de impossível definição e caracterização, não deve ela ser considerada como objeto da Ciência Jurídica.” (GOMES, 2004, p. 162-163)

Em linhas gerais, mesmo diante da ausência de um consenso sobre o conceito do positivismo jurídico, pode-se dizer que este se fundamenta na defesa de que à ciência não-jurídica compete a análise das questões relativas ao ser humano, à natureza e ao universo.

4.2.1 A validade formal do Positivismo jurídico

Neste contexto, a análise da validade parte para outro âmbito. Para os positivistas, em total contraposição aos jusnaturalistas, a validade do Direito se apóia no fundamento formal dele.

Sobre o conceito de validade formal, Miguel Reale afirma que “é, em suma, uma propriedade que diz respeito à competência dos órgãos e aos processos de produção e reconhecimento do Direito no plano normativo.” (REALE, 2001, p.106)

Aqui, há uma recusa total de qualquer análise sobre o conteúdo das normas jurídicas, não competindo à ciência jurídica o exame de questões morais e valorativas.

Alexandre Travessoni Gomes, realizando um estudo sobre o conceito de validade em Kelsen, assim coloca:

Dizer que uma norma é válida, afirma Kelsen, é o mesmo que dizer que ela possui força de obrigatoriedade para aqueles cuja conduta regula. A validade, ou a existência específica de uma norma jurídica, é diferente da existência do ato de vontade do qual ela é o sentido objetivo. A norma pode valer, e de fato vale, mesmo quando o ato de vontade, cujo sentido objetivo ela constitui, não mais existe. (GOMES, 2004, p. 203)

Segundo Kelsen, “o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma.” (KELSEN, 2006, p. 215) O filósofo defende que “uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior.” (KELSEN, 2006, p. 215)

Defensor por excelência do Positivismo jurídico, Hans Kelsen “pressupõe um fundamento de validade simplesmente formal, que não vincula o conteúdo da ordem jurídica: a norma fundamental.” (GOMES, 2004, p. 157)

À título de elucidação sobre o fundamento de validade das normas pautada em uma norma superior e por uma autoridade competente, Kelsen apresenta como, segundo seu entendimento, se fundamenta a validade dos Dez Mandamentos ditados por Deus, Jeová, e o dever de amar os inimigos imposto por Jesus Cristo, conforme se extrai da seguinte passagem:

Na verdade, parece que se poderia fundamentar a validade de uma norma com o fato de ela ser posta por qualquer autoridade, por um ser humano ou supra-humano: assim acontece quando se fundamenta a validade dos Dez Mandamentos com o fato de Deus, Jeová, os ter dado no Monte Sinai; ou quando se diz que devemos amar os nossos inimigos porque Jesus, o Filho de Deus, o ordenou no Sermão da Montanha. Em ambos os casos, porém, o fundamento de validade, não expresso mas pressuposto, não é o fato de Deus ou o Filho de Deus ter posto uma determinada norma num certo tempo e lugar, mas uma norma: a norma segundo a qual devemos obedecer às ordens ou mandamentos de Deus, ou aquela outra segundo a qual devemos obedecer aos mandamentos de Seu Filho. Em todo caso, no silogismo cuja premissa maior é a proposição de dever-ser que enuncia a norma superior: devemos obedecer aos mandamentos de Deus (ou aos mandamentos de Seu Filho), e cuja conclusão é a proposição de dever-ser que enuncia a norma inferior: devemos obedecer aos Dez Mandamentos (ou ao mandamento que nos ordena que amemos os inimigos), a proposição que verifica (afirma) um fato da ordem do ser: Deus estabeleceu os Dez Mandamentos (ou o Filho de Deus ordenou que amássemos os inimigos), constitui, como premissa menor, um elo essencial. (KELSEN, 2006, p. 216)

No intuito de se estabelecer um limite na superioridade das normas, Kelsen apresenta a mais superior de todas as normas, a norma fundamental, a qual não é posta por nenhuma autoridade, pois é uma norma pressuposta. Veja-se esta explicação nas palavras do autor:

Como já notamos, a norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é, em face desta, uma norma superior. Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação da causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade já não pode ser posto em questão. Uma tal norma, pressuposta como a mais elevada, será aqui designada como norma fundamental (Grundnorm). (KELSEN, 2006, p. 217)

Kelsen apresenta a norma fundamental como a fonte comum de validade de todas as normas existentes em uma mesma ordem normativa, conforme se pode conferir no seguinte trecho:

Já para ela tivemos de remeter a outro propósito. Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum. O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que o seu último fundamento de validade é a norma fundamental desta ordem. É a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa. (KELSEN, 2006, p. 217)

Assim, veja-se que, segundo Kelsen, o fundamento de validade de uma norma se encontra no fato de ter sido produzida de acordo com a norma fundamental, não importando o seu conteúdo, pois, para ele todo e qualquer conteúdo pode ser Direito. (KELSEN, 2006)

Afirma, também que “uma ordem jurídica como um todo ou a norma jurídica singular já não são consideradas como válidas quando cessam de ser eficazes. Mas também a eficácia de uma ordem jurídica não é, tampouco como o fato que a estabelece, fundamento de validade.” (KELSEN, 2006, p. 230)

Desta forma, pode-se constatar que, no campo positivista, a validade possui fundamento formal, não havendo espaços para juízo materiais de valor sobre o conteúdo das normas jurídicas.

Todavia, atrelado ao conceito positivista, nasce para o Direito um impasse: afastados do Direito natural, perde-se qualquer critério que permita a análise e julgamento do conteúdo do direito positivo, pois, com seu fundamento estritamente formal, não permite a valoração da matéria posta em juízo. (GOMES, 2004)

Diante do impasse levantado, surge no campo das discussões doutrinárias, um novo conceito de validade, fundamentado na dialética, o qual apresenta um modelo discursivo dentro do cenário do pós-positivismo.

4.3 O Pós-positivismo

Após o posicionamento dos Jusnaturalistas e dos positivistas quanto ao conceito de validade, e, diante do impasse apresentado aos positivistas, no tocante à ausência de qualquer critério que possibilite a investigação do conteúdo dos postulados jurídicos, principalmente diante dos casos concretos, tornou-se necessário no contexto jurídico a elaboração de um novo conceito de validade. A esta missão, chamaram para si a responsabilidade, os pós-positivistas.

Hugo Garcez Duarte elucida os motivos que deram origem à criação deste novo postulado:

A fundamentação Jusnaturalista do Direito foi estritamente material, tendo em vista que o Direito Positivo, para que fosse válido, deveria estar em conformidade com os preceitos do Direito Natural. Essa concepção acerca do Direito sustentou-se enquanto havia certa homogeneidade moral na sociedade (crenças, costumes, visões de mundo partilhados), vindo sucumbir diante da já mencionada Escola da Exegese, que posteriormente fora sucedida pelo Positivismo Jurídico, devido à pluralidade de características de uma nova sociedade que se formou. Os preceitos Jusnaturalistas no que tange o fundamento de validade do Direito (material) tornaram-se insustentáveis, cabendo ao Positivismo Jurídico demonstrar seu caráter dogmático e absoluto, que em uma sociedade pluralista como a contemporânea nada mais seria que arbitrar as visões de mundo de uma minoria sobre as da maioria. Nesse contexto, a proposta Positivista apresenta um fundamento formal de validade para o Direito, pregando sua neutralidade, ou seja, sua desvinculação a uma moral determinada (relativismo). Ocorre que, como essa validade é formal, é indeterminada. E como outrora demonstramos nos pensamentos de Kelsen e Hart, há casos em que o aplicador do Direito deverá transcender a lei para julgá-lo, e havendo uma indeterminação quanto à validade do Direito, o controle da discricionariedade do julgador quando de sua aplicação resta prejudicado. Identificado o problema da validade formal no Positivismo Jurídico bem como o do poder discricionário do julgador, ao final do século XX, vislumbrou-se a necessidade da elaboração de uma teoria que demonstre qual deva ser o conteúdo legítimo do Direito e que não imponha a visão de mundo de poucos a uma maioria. (DUARTE, 2013, p. 10-11)

Ainda sobre o pós-positivismo, tem-se a explicação de Luís Roberto Barroso, o qual leciona:

O pós-positivismo se apresenta, em certo sentido, como uma terceira via entre as concepções positivista e jusnaturalista: não trata com desimportância as demandas do Direito por clareza, certeza e objetividade, mas não o concebe desconectado de uma filosofia moral e de uma filosofia política. Contesta, assim, o postulado positivista de separação entre Direito, moral e política, não para negar a especificidade do objeto de cada um desses domínios, mas para reconhecer a impossibilidade de tratá-los como espaços totalmente segmentados, que não se influenciam mutuamente. Se é inegável a articulação complementar entre eles, a tese da separação, que é central ao positivismo e que dominou o pensamento jurídico por muitas décadas, rende tributo a uma hipocrisia. (BARROSO, 2010, p.6)

Pelas razões acima esposadas, concebe-se o Pós-positivismo no final do século XX, apresentando uma proposta discursiva sobre a legitimidade do conteúdo do Direito, o qual não é mais vislumbrado isoladamente da moral e da política, mas reconhece que tais esferas exercem influências mútuas, e, portanto, se fez necessário a criação da teoria Pós-positivista para análise desta nova dimensão do Direito.

4.3.1 A validade procedimental do Pós-positivismo jurídico

A partir daí surge um conceito de validade com um fundamento procedimental, dialético, marcado pela possibilidade de um discurso sobre as normas jurídicas e para a elaboração e aplicação destas, dentro do contexto pós-positivista jurídico.

Neste contexto, os defensores desta corrente apresentam um critério de validade que reúne aspectos das correntes jusnaturalistas e positivistas, contudo, sob um enforque diferente, pois, defendem um modelo discursivo para a caracterização da validade.

Do Jusnaturalismo, a teoria da validade procedimental defende que para uma premissa jurídica ser válida não é necessária a observância da legitimidade de seu conteúdo formal e rejeitam a ideia de um Estado ditador de normas pré-estabelecidas. Já do Positivismo, a teoria da validade procedimental não aceita como fundamento da validade o seu contexto material, ou seja, defendem que não é possível a determinação prévia do conteúdo do Direito por meio de uma ordem natural. (GOMES, 2004)

Sobre esta difusão de ideias que resultou em um novo modelo de validade, Hugo Garcez Duarte assim discorre:

No Positivismo Jurídico, o fundamento de validade do Direito é formal, e por ser formal, sua adequação é indeterminada. O Pós-positivismo por sua vez, em busca da determinação do Direito, consubstancia-se na conciliação entre validade formal e validade material (legalidade e legitimidade). Grande desafio, porém, é a conquista da conciliação entre validade formal e validade material sem voltar ao dogmatismo jusnaturalista. Tal conciliação, ao que parece, coaduna-se com o aludido papel dos princípios, que na teoria Pós-positivista, diversamente da teoria Positivista (justificava o poder discricionário do juiz), assume o papel de elo (por meio da argumentação jurídica) entre o legal e o justo. (DUARTE, 2013, p.9)

Corroborando com esta corrente de pensamento, a qual permite uma argumentação jurídica, Alexy afirma que “um sistema apenas é jurídico se possui, globalmente, eficácia social (é observado pelos destinatários das normas e a não observância é punida) e, no que diz respeito às normas individuais, elas somente adquirem validade jurídica em sentido amplo se forem dotadas de um mínimo de eficácia ou da possibilidade de eficácia.” (ALEXY, 2009, p. 105-108).

Com maestria, Hugo Garcez Duarte termina sua argumentação afirmando

[...] que o mundo contemporâneo, por sua diversidade e complexidade, dificulta a conquista da conciliação entre validade formal (legalidade) e validade material (legitimidade). Vemos, todavia, que a única solução para esta conquista reside no procedimento do Direito, que carreado por igualdade entre as partes, ampla defesa e contraditório, argumentação jurídica, produção de provas e ênfase na efetividade dos princípios jurídicos, galgará a legítima aplicação da lei no caso concreto. (DUARTE, 2013, p. 14)

A argumentação jurídica presente no fundamento de validade procedimental do Direito, permite uma discussão acerca da norma expressa e a aplicabilidade da justiça a ser atribuída a esta norma diante de um caso concreto.

A teoria procedimental possibilita uma discussão entre todos os interesses no processo de elaboração das normas, decisões judiciais e políticas públicas. (GOMES, 2004)

Assim, pode-se dizer, em suma, que o conceito de validade com fundamento procedimental, baseia-se na ideia de um diálogo, ou seja, as normas jurídicas serão legítimas desde que produzidas e aplicadas através de um procedimento dialético, democrático e racional, dotado de eficácia, eis que aceito por seus destinatários.

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