A mensagem do cristianismo como fundamento histórico de institutos jurídicos contemporâneos

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12/01/2015 às 00:05
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5. CRISTIANISMO

Segundo Joel Stephen Williams, “o Cristianismo é a religião daqueles que são chamados de cristãos (Atos 11.26; 26.28; 1Pedro 4.16)[2]. Um cristão é simplesmente um seguidor de Jesus de Nazaré, que é chamado o Cristo ou o Messias por aqueles que acreditam nele.” (WILLIAMS, 2004, p. 7)

O termo Cristianismo origina da palavra Cristo, que significa ungido, messias (BOYER, 1997, p. 173). Este título foi outorgado a Jesus, o autor e fundador da religião cristã.

Sobre a vida de Jesus e o motivo de sua vinda ao mundo, Morgado leciona o seguinte:

[...] a fim de redimir a natureza humana e reconduzi-la à dignidade perdida na queda, segundo a doutrina judaico-cristã, Deus mesmo teve que se revestir da natureza humana a fim de alcançá-la, deixando-nos exemplo do paradigma do viver divino-humano de dignidade que ele idealizou para o homem. [...] Possivelmente não haja maior expressão da importância que Cristo atribuiu ao homem, individual e objetivamente considerado, que a parábola da ovelha perdida de Lucas 15, em que Ele mesmo, de forma autobiográfica, é descrito como um pastor que deixa as outras noventa e nove ovelhas em busca de uma única que se perdeu (Lucas 15:4-7). Essa mensagem deixa implícita a idéia de que, pelo valor que possui o homem para Deus, ainda que existisse apenas um único ser humano sobre a Terra que necessitasse de salvação, ainda assim, Cristo teria se encarnado e morrido na cruz por sua redenção, revalorização e dignificação. Este raciocínio acerca do amor pessoal e da salvação individual também é evidenciado e reforçado pela expressão “todo aquele”, mencionada no evangelho de João cap. 3, v.16, enfatizando a salvação pessoal e individual e o valor que Deus atribui à natureza humana, a ponto de por ela morrer e conceder ao homem a vida eterna:“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito, para que todo aquele que Nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”.Talvez não haja maior expressão de fraternidade e solidariedade, ligadas à noção de dignidade, que o ensino de Jesus sobre amar o próximo inclusive nosso inimigos (Mateus 5:44) como a nós mesmos (Luc. 10:27) bem como o dever de fazer aos outros o mesmo que gostaríamos que eles fizessem a nós (Mat. 7:12). (MORGADO, 2014)

Conforme se pode verificar no trecho citado, Jesus Cristo veio ao mundo a fim de trazer salvação para todos quantos cressem nele como senhor e salvador. Para tanto, o verbo se fez carne (João 1:14[3]), ou seja, o próprio Deus se fez homem na pessoa de Jesus, no intuito de redimir a humanidade dos pecados. Enfim, Jesus veio para cumprir a lei e instaurar a nova aliança por meio de sua morte.

Após a ressurreição de Jesus Cristo, os seus discípulos continuaram a missão de propagação da mensagem de salvação e de vida eterna, formando, com a difusão da doutrina cristã, inúmeros seguidores.

Registra-se que quarenta dias após a ressurreição de Jesus já se formavam congregações de cristãos. Sobre a formação destas, pode-se citar, à título de exemplo, o episódio ocorrido em Jerusalém, quando, ouvindo a pregação evangelho através do apóstolo Pedro, judeus de todas as nações entenderam a mensagem cristã e se converteram ao Cristianismo, totalizando, somente naquele dia, aproximadamente três mil homens, que continuaram a missão de propagação do evangelho[4].

A história do Cristianismo se encontra na Bíblia e é dividida em dois períodos, o Antigo e o Novo Testamento.

No Antigo Testamento há a narrativa de como tudo surgiu, a maneira como Deus criou todo o universo e todos os seres viventes. Narra, também, como o pecado entrou no mundo e enfatiza a necessidade de derramamento de sangue para a remissão dos pecados fazendo uma alusão ao que Jesus Cristo iria fazer posteriormente.

Já o Novo Testamento apresenta o nascimento do Messias e o trabalho realizado por ele para salvar as pessoas. Durante sua trajetória na Terra, Jesus operou milagres e cumpriu profecias a fim de comprovar que ele era o Messias, o enviado de Deus que trazia uma nova vida às pessoas.

Em toda a sua trajetória, o Cristianismo modificou a sociedade, influenciando profundamente a forma como seria, a partir de então, concebida a política, o direito, a cultura, o calendário, enfim, a visão de mundo de todo o ocidente.

5.1 A mensagem do Cristianismo

A mensagem transmitida através dos ensinamentos de Jesus Cristo se consubstancia em uma mensagem de fé, amor, paz, igualdade e, principalmente, de salvação.

Antes da vinda de Jesus até a Terra, a Bíblia narra o motivo pelo qual se fez necessário que Deus enviasse o seu filho para salvar a humanidade do pecado. A mensagem do Cristianismo se inicia com a criação do céu e da terra e de tudo o que neles há. Criou-se os seres humanos, trazendo à existência Adão, o primeiro homem, e logo em seguida, como sua companheira, Deus criou Eva. E Deus viu que tudo o que havia criado era bom, conforme passagem Bíblica constante em Gênesis 1:31[5].

Todavia, não demorou muito para que Adão e Eva, desobedecessem a Deus e, em consequência, trouxessem o pecado, até então inexistente, ao mundo. Sobre tal episódio, traz-se o relato dos filósofos Giovani Reale e Dário Anstieri:

Como todo pecado, ele é desobediência, mais precisamente desobediência ao mandamento original de não comer do fruto “da árvore do conhecimento do bem e do mal”. A raiz dessa desobediência foi a soberba do homem, que não queria tolerar limitação nenhuma, que não queria ter vínculos do bem e do mal (dos mandamentos) e, portanto, que queria ser como Deus. Iahweh havia dito: “Da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dele comeres terás que morrer.” Mas a tentação do maligno insinua: “Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal.” À culpa de Adão e Eva, que cedem à tentação, transgredindo o mandamento divino, segue-se, como punição divina, a expulsão do Paraíso terrestre, com todas as suas conseqüências. E assim fazem seu ingresso no mundo o mal, a dor e a morte, o afastamento de Deus. Em Adão, toda a humanidade pecou; com Adão, o pecado ingressou na história dos homens – e, com o pecado, todas as suas consequências. Como escreve Paulo: “... por obra de um só homem o pecado entrou no mundo e, através do pecado, a morte; assim, a morte passou para todos os homens, porque todos pecaram...” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 384)

Dando continuidade ao conteúdo da mensagem bíblica, os autores prosseguem explicando que o homem, por ele mesmo, não possuía condições de salvar-se do pecado original e todas as suas consequências. Por isso, Deus realizou o resgate da humanidade, considerado por Reale e Antseri (2003) como o maior dos dons. Para resgatar a humanidade da escravidão do pecado, Deus se fez homem e, com sua paixão e morte, deu a sua vida para salvação da humanidade e, com sua ressurreição, derrotou a própria morte, consequência do pecado.

Para finalizar, os autores concluem:

A vinda de Cristo, a sua paixão expiadora do antigo pecado, que fez seu ingresso no mundo com Adão, e a sua ressurreição resumem o sentido da mensagem cristã – e essa mensagem subverte inteiramente os quadros do pensamento grego. [...] Mas além de mostrar a realidade bem mais inquietante da culpa original, que é uma rebelião contra Deus, a nova mensagem revela que nenhuma força da natureza ou do intelecto humano podia resgatar o homem. Para tanto, era necessária a obra do próprio Deus feito homem e a participação do homem na paixão de Cristo em uma dimensão que havia permanecido quase inteiramente desconhecida para os gregos: a dimensão da “fé”. (REALE; ANTISERI, 2003, p. 385)

Esta é, em síntese a mensagem bíblica, a qual possui como objetivo principal a concessão a todos os homens da salvação por meio da fé em Jesus Cristo como único senhor e salvador.

5.2 A Bíblia como registro do Cristianismo

Toda a história do Cristianismo se encontra descrita na Bíblia, que é o livro composto por escritos bíblicos de inúmeras épocas diferentes, os quais descrevem a trajetória da fé cristã em localidades e povos diversos.

Acredita-se que todo livro bíblico foi escrito mediante inspiração divina, sendo que cada profeta, cada autor dos livros bíblicos, foram inspirados pelo Espírito de Deus em seus escritos, de forma que as inúmeras profecias realizadas no Antigo Testamento se cumpriram no Novo Testamento.

Sobre a Bíblia, tem-se conceituação de Giovani Reale e Dario Anstiere:

Bíblia, do grego biblia, significa “livros”. É um plural (de biblion) que, no latim e nas línguas modernas, foi transliterado como singular para indicar o “livro” por antonomásia. Na realidade, a Bíblia não é um só livro, mas uma coletânea de uma série de livros, cada qual apresentando um título e peculiaridade específicas, caracterizada também por extensões diversas dos livros e diferentes estilos literários e redacionais. (...) Os livros da Bíblia se dividem em dois grandes grupos: a) os do Antigo Testamento (redigidos a partir de aproximadamente 1300 a.C. até 100 d.C.; entretanto, os primeiros livros baseiam-se em uma tradição oral antiquíssima; B) os do Novo Testamento, que remontam todos ao século I d. C., centrando-se inteiramente na nova mensagem de Cristo. (REALE; ANTISERI, 2003, p. 371)

Desta feita, apresenta-se a Bíblia como registro do Cristianismo, ou seja, toda a história cristã é narrada em suas páginas e é com base nela que se buscou toda a fundamentação para este trabalho.

5.3 A dimensão revolucionária da mensagem bíblica

A mensagem pregada pela Bíblia surgiu no Ocidente com um caráter inovador e com uma dimensão jamais vista por aquela civilização. A mensagem cristã se propagou pelo Ocidente, e a medida que ia avançado, foi acumulando adeptos que continuavam com a pregação do conteúdo bíblico.

Giovani Reale e Dario Anstiere (2003) defendem que a Bíblia trouxe ideias tão importantes que, acreditando ou não em sua mensagem, é indiscutível que os ensinamentos por meio dela propagados, mudou de modo irreversível a fisionomia espiritual do Ocidente, senão veja-se:

A Bíblia, portanto, se apresenta como “palavra de Deus”. E, como tal, a sua mensagem é objeto de fé. Quem acredita poder pôr a fé entre parênteses e ler a Bíblia como “puro cientista”, como se lê um texto de filosofia de Platão ou de Aristóteles, na realidade está realizando um tipo de operação que é contra o espírito desse texto. A Bíblia muda completamente de significado à medida que é lida acreditando-se ou não que se trata da “palavra de Deus”. Entretanto, embora não sendo uma “filosofia” no sentido grego do termo, a visão geral da realidade e do homem que a Bíblia nos apresenta, no que se refere a alguns conteúdos essenciais dos quais a filosofia também trata, contém uma série se idéias fundamentais que têm uma relevância também filosófica de primeira ordem, Aliás, trata-se de idéias tão importantes que, não só para os crentes, mas também para os incrédulos, a difusão da mensagem bíblica mudou de modo irreversível a fisionomia espiritual do Ocidente. (REALE, ANSTIERI, 2003, p.377, grifo nosso)

E continuam:

Em suma, pode-se dizer que a palavra de Cristo contida no Novo Testamento (a qual se apresenta como revelação que completa, aperfeiçoa e coroa a revelação dos profetas contida no Antigo Testamento) produziu uma revolução de tal alcance que mudou todos os termos de todos os problemas que o homem havia proposto em filosofia no passado e passou a condicionar também os termos nos quais o homem os proporia no futuro. Em outras palavras, a mensagem bíblica condicionaria aqueles que a rejeitaram: em primeiro lugar, como termo dialético de uma antítese (a antítese só tem sentido, sempre, em função da tese à qual de contrapõe); e, mais globalmente, como um verdadeiro “horizonte” espiritual que iria impor-se de tal modo a ponto de não ser mais suscetível de eliminação. Para se entender o que estamos dizendo, é paradigmático o título (que representa todo um programa espiritual) do célere ensaio idealista e não-crente de Benedetto Croce Perche non possiamo non dirci cristiani (“Por que não podemos deixar de nos dizer cristãos”), o que significa precisamente que, uma vez surgido, o cristianismo tornou-se um horizonte instransponível. (REALE, ANSTIERI, 2003, p.377)

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Os autores acreditam que a mensagem bíblica se difundiu de tal maneira que ela foi um marco filosófico, pois, por meio dela, foram esclarecidos os problemas oriundos da humanidade e até então estudados pela filosofia, fazendo com que o estudo desta, a partir do Cristianismo, adotasse a premissa de filosofar na fé, fora dela ou em busca de distinguir os limites entre fé e razão, conforme assim explicam:

Depois da difusão da mensagem bíblica, portanto, só seriam possíveis estas posições: a) filosofar na fé, ou seja, crendo; b) filosofar procurando distinguir os âmbitos da “razão” e da “fé”, embora crendo; c) filosofar fora da fé e contra a fé, ou seja, não crendo. Não seria mais possível filosofar fora da fé, no sentido de filosofar como se a mensagem bíblica nunca tenha feito o seu ingresso na história. Por essa razão, o horizonte bíblico permanece um horizonte estruturalmente instransponível, no sentido que esclarecemos, isto é, no sentido de um horizonte para além do qual já não podemos colocar, tanto quem crê como quem não crê. (REALE, ANSTIERI, 2003, p.377-378)

Destarte, diante da dimensão de mudanças acarretadas pelo pensamento cristão, faz-se importante estabelecer as principais mudanças trazidas pela mensagem bíblica no contexto espiritual de todo o Ocidente, demonstrando a forma como era o pensamento da sociedade antes da difusão do Cristianismo e logo após a consolidação deste.

Pois bem. Inicialmente pode-se citar que por meio da mensagem cristã passou-se a conceber o monoteísmo. Ou seja, não havia mais a crença em inúmeros deuses, não havia mais um deus para cada família como na sociedade antiga, mas, muito pelo contrário, por meio da pregação cristã, entendeu-se em todo o cenário ocidental que Deus é apenas um só, adotando-se a unicidade divina.

Rompe-se então, com a forma de pensamento apresentada pelos filósofos gregos, os quais defendiam a crença em inúmeras divindades, o politeísmo. A fim de corroborar com o ora alegado, tem-se o trecho extraído da obra “A história da Filosofia – Antiguidade e Idade média”:

E, com essa concepção do Deus único, infinito em potência, radicalmente diverso de todo o resto, nasce uma nova e radical concepção da transcendência, derrubando qualquer possibilidade de considerar qualquer outra coisa como “divino” no sentido forte do termo. Os maiores pensadores da Grécia, Platão e Aristóteles, haviam considerado como “divinos” (ou até mesmo como deuses) os astros, e Platão chegara a chamar o cosmos de “Deus visível” e os astros de “deuses criados”: em As Leis, inclusive, ele deu a partida para a religião chamada “astral”, precisamente com base em tais pressupostos. A Bíblia corta pela base toda forma de politeísmo e idolatria, mas também qualquer compromisso desse tipo. (REALE, ANSTIERI, 2003, p.378-379)

Acerca da unicidade de Deus, a Bíblia demonstra claramente tal posicionamento, de que há somente um Deus, criador do universo e de toda a humanidade, o único que deve receber toda a adoração, condenando totalmente a forma de adoração a outros deuses até então concebida, consoante se pode extrair de algumas passagens:

Guardai, pois, com diligência as vossas almas, pois nenhuma figura vistes no dia em que o Senhor, em Horebe, falou convosco do meio do fogo; Para que não vos corrompais, e vos façais alguma imagem esculpida na forma de qualquer figura, semelhança de homem ou mulher; Figura de algum animal que haja na terra; figura de alguma ave alada que voa pelos céus; Figura de algum animal que se arrasta sobre a terra; figura de algum peixe que esteja nas águas debaixo da terra; Que não levantes os teus olhos aos céus e vejas o sol, e a lua, e as estrelas, todo o exército dos céus; e sejas impelido a que te inclines perante eles. (Deuteronômio 4, 15-19)

Eu sou o Senhor, o teu Deus, que te tirou do Egito, da terra da escravidão. Não terás outros deuses além de mim. "Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas debaixo da terra. (Êxodo 20, 2-4)

Destarte, a concepção monoteísta surge no Ocidente e se consolida através da mensagem bíblica, sendo forçoso afirmar que “a unicidade do Deus bíblico comporta uma transcendência absoluta, que coloca Deus como totalmente outro em relação a todas as coisas, de um modo inteiramente impensável no contexto dos filósofos gregos. (REALE, ANSTIERI, 2003, p.379)

Prosseguindo, como mudança considerável provocada através da mensagem do Cristianismo, importante mencionar a alteração ocorrida no tocante a convicção quanto à concepção da origem humana. Inúmeras foram as discussões acerca da forma e do lugar em que a humanidade se constitui. Sobre referida concepção, Giovani Reale e Dario Anstieri colocam que:

Já vimos quais e quantos foram os vários tipos de solução propostos pelos gregos no que se refere ao problema da “origem dos seres”: de Parmênides, que resolvia o próprio problema com a negação de qualquer forma de devir, aos pluralistas, que falavam de “reunião” ou “combinação” de elementos eternos, de Platão que falava de um demiurgo e de uma atividade demiúrgica, a Aristóteles, que falava da atração de um Motor imóvel, dos estóicos, que propunham uma forma de monismo panteísta, a Plotino, que falava de uma “processão” metafísica. (REALE, ANSTIERI, 2003, p.379)

Com a mensagem cristã, passava-se a acreditar no criacionismo, ou seja, a origem da humanidade se encontra no poder de Deus, o qual, por sua vontade, criou os homens a sua imagem e semelhança, tal como concebido pela Bíblia. Para comprovar o alegado, tem-se passagem contida no livro de Gênesis, capítulo 1, versículo 1, onde afirma que “no princípio criou Deus o céu e a terra.” Em seguida, no versículo 26, há a fala de Deus quando da criação do mundo: “façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão.” (Gn 1, 26) Para arrematar, conclui no versículo 27, afirmando que “criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.” (Gn 1, 27)

Logo, estava-se diante de uma nova concepção adotada pela sociedade ocidental, a qual superou as teorias já apresentadas, devido à coerência das ideias bíblicas, tendo como base, inclusive, a capacidade do ser criador diante de toda a criação. Ademais, defendia-se que para criação de seres tão complexos e de um universo infinito, era necessário que o criador fosse consideravelmente superior, intelectual e fisicamente, a toda a criação, pois somente assim poderia haver a existência dos seres viventes.

Acerca da coerência do criacionismo, assim se posicionam Giovani Reale e Dario Anstieri:

Com essa concepção de criação a partir “do nada”, era cortada pela base a maior parte das aporias que, desde Parmênides, haviam afligido a ontologia grega. Todas as coisas têm origem do “nada”, sem distinção. Deus cria livremente, ou seja, com um ato de vontade, por causa do bem. Ele produz as coisas como “dom” gratuito. O criado, portanto, é positivo. Falando da criação, a Bíblia ressalta insistentemente: “E Deus viu que era bom.” A concepção platônica do Timeu, que também sustenta que o demiurgo plasmou o mundo por causa do bem, é apresentada aqui sob um novo enfoque e num contexto bem mais coerente. (REALE; ANSTIERI, 2003, p.379)

E assim concluem:

O Criacionismo iria se impor como a solução por excelência do antigo problema de como e por que os múltiplos derivam do Uno e o finito deriva do infinito. A própria conotação que Deus dá de si mesmo a Moisés, “Eu sou Aquele que é”, iria ser interpretada, em certo sentido, como a chave para se entender ontologicamente a doutrina da criação: Deus é o Ser por sua essência e a criação é uma participação no ser, ou seja, Deus é o ser e as coisas criadas não são ser, mas têm o ser (que o receberam por participação) (REALE, ANSTIERI, 2003, p.379-380)

Outra mudança acarretada no pensamento ocidental por meio da mensagem bíblica foi a valorização do homem, apresentando uma visão antropocêntrica. Partia-se da premissa bíblica na qual Deus fez o homem à sua imagem e semelhança e o legitimou a ser dono e senhor de todos os seres viventes e de tudo aquilo que foi criado pelo próprio Deus.

Sobre a valorização do homem, assim diz o Salmo 8, nos versículos 3 ao 9:

Quando vejo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que preparaste; Que é o homem mortal para que te lembres dele? E o filho do homem, para que o visites? Pois pouco menor o fizeste do que os anjos, e de glória e de honra o coroaste. Fazes com que ele tenha domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo puseste debaixo de seus pés: Todas as ovelhas e bois, assim como os animais do campo, As aves dos céus, e os peixes do mar, e tudo o que passa pelas veredas dos mares. Ó Senhor, Senhor nosso, quão admirável é o teu nome sobre toda a terra! (Sl 8, 3-9)

Semelhantemente, tem-se entendimento filosófico:

E, sendo feito à imagem e semelhança de Deus, o homem deve se esforçar por todos os modos para “assemelhar-se a ele”. O Levítico já afirmava: “Não deveis vois contaminar. Porque o vosso Deus sou eu, Iahweh, que vos fez sair da terra do Egito, para ser o vosso Deus: vós, pois, sereis santos como eu sou santo.” Os gregos alcançá-la com o intelecto,  com o conhecimento. A Bíblia, porém, atribui à vontade o instrumento da assimilação: assemelhar-se a Deus e santificar-se significa fazer a vontade de Deus, ou seja, querer o querer de Deus. E é exatamente essa capacidade de fazer livremente a vontade de Deus que coloca o homem acima de todas as coisas. (REALE; ANSTIERI, 2003, p.381)

Além das características supracitadas, a mensagem bíblica incutiu novos valores e novas perspectivas na conjuntura ocidental. Dentre elas, pode-se citar o amor como principal mandamento de toda a doutrina cristã, a qual ordena o amor uns aos outros como a si mesmo, incluindo-se aí os inimigos. Amar a Deus e ao próximo, fazendo-lhe o bem passava a ser então o maior mandamento ensinado pela Bíblia.

De igual sorte, os demais valores propagados pelo Cristianismo proporcionaram uma revolução radical nos valores da história humana, conforme assinalado na seguinte passagem:

A mensagem cristã assinalou sem dúvida a mais radical revolução de valores da história humana. Nietzsche chegou a falar até mesmo de total subversão dos valores antigos, subversão que tem sua formulação programática no “Sermão da Montanha”, que podemos ler no Evangelho de Mateus [...](REALE; ANSTIERI, 2003, p.390)

Destarte, constata-se uma nova perspectiva proporcionada pela dimensão revolucionária da mensagem bíblica, onde “o antigo intelectualismo grego é inteiramente subvertido pelo voluntarismo: o querer de Deus é a lei moral e o querer o querer de Deus é a virtude do homem. A boa vontade torna-se a nova marca do homem moral.” (REALE; ANSTIERI, 2003, p.381)

Daí, constata-se que os valores apresentados pela doutrina cristã tiveram direta influência no patrimônio de valores carregado por toda a sociedade ocidental, possuindo a mensagem bíblica, por conseguinte, um caráter revolucionário de relevante magnitude, mudando a forma de concepção de mundo, sociedade, direito, política até então existentes.

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