A mensagem do cristianismo como fundamento histórico de institutos jurídicos contemporâneos

Exibindo página 5 de 9
12/01/2015 às 00:05
Leia nesta página:

6. O CRISTIANISMO E O DIREITO

Através da ruptura entre o Direito e a religião é que a sociedade adquiriu autonomia e independência para estabelecer as suas próprias normas de conduta e sua forma de julgamento, não estando mais vinculado ao contexto sagrado.

A partir de então, o caráter coercitivo das normas jurídicas estavam fundamentadas tão somente na vontade humana, não se submetendo ao caráter religioso.

Todavia, neste contexto, o Direito se depara com uma grande e notável contradição. Como será abordado no decorrer deste capítulo, o Cristianismo foi importante propulsor que desvinculou o Estado da religião. Através da mensagem cristã os homens entenderam que servir a Deus e ao Estado estava em esferas totalmente distintas. Lado outro, mesmo com esta separação tão almejada pelo Direito, e que, de fato se constituiu como uma importante conquista, não se pode olvidar que o ordenamento jurídico de todo o mundo ocidental fez do Cristianismo uma grande fonte de conteúdo.

Em que pese a notável separação, importa salientar a convergência de ambos os institutos em inúmeros aspectos. Somente a título de elucidação, pode-se citar que a finalidade a que se propõe o Direito é estabelecer as normas a fim de regular a conduta de toda uma sociedade. O Cristianismo também possui esta finalidade, buscando estabelecer um padrão de conduta aos homens, embora, apresente um modelo de comportamento que os levem até a salvação, peculiaridade esta que os distinguem. Ambos almejam o bem comum.

Sobre esta relação, Juarez Altafin, citando César Fiuza, bem se posiciona:

Se é verdade que “Direito e Religião, apesar de fazerem parte da Ética, têm campos distintos”, por isso que “o objetivo da Religião é o de integrar o homem com a divindade”, “cuidar do mundo espiritual”, orientando “os homens na busca e na conquista da felicidade eterna”, e que “o objetivo do Direito é o bem comum da sociedade”, certo é que Direito e Religião “buscam inspiração um no outro”. (FIUZA, apud ALTAFIN, 2007, p. XIV)

Ademais, conforme bem destacado por Juarez Altafin, citando Noberto Bobbio, “para encontrar o fundamento dos direitos do homem, é preciso não permanecer na história, mas transcender a história e chegar ao momento de origem, quando o homem surgiu das mãos do Criador.” (BOBBIO apud ALTAFIN, 2007, p. 3)

Sobre a relação entre o Direito com a ordem sagrada, Roberto Denis Machado afirma que “de fato, os primeiros sistemas jurídicos conhecidos derivaram de textos sagrados.” (MACHADO, 2006, p.70)

Com o objetivo de analisar a antonímia estabelecida, e, em contrapartida, a relação entre ambas as esferas, é que se destina o presente capítulo.

6.1 O surgimento do Direito e do Cristianismo no mundo ocidental: como a doutrina cristã mudou as direções do Direito, governo e de toda a sociedade ocidental

Para fins de compreensão sobre como o Cristianismo mudou a história do Direito, do governo e da Sociedade, imperioso se torna estudar o contexto social vivenciado antes da doutrina cristã, remontando-se aos primórdios da civilização greco-romana, onde se originou a civilização ocidental.

Posto isto, analisar-se-á a transformação social que se iniciou há aproximadamente seis ou sete séculos antes da consolidação do Cristianismo. Para tanto, à sociedade deste período, traz-se a referência como sociedade antiga.

Sobre a sociedade antiga, Fustel de Coulanges, em sua obra “A Cidade Antiga”, relata muito bem a situação vivida à época. De acordo com o autor, a sociedade antiga havia sido constituída por uma nova religião, a qual acreditava na existência de inúmeros deuses, sendo que cada deus protegia exclusivamente uma família ou uma cidade, e não existia senão para ela. Através desta religião se originou o direito na sociedade antiga, regulando, pelos dogmas dessa religião em vista das necessidades de seu culto, as questões relativas às relações entre os homens, a propriedade, a herança, o processo. Foi também através desta religião que se estabeleceu um governo entre os homens: o do pai, na família, o do rei ou do magistrado na cidade. (COULANGES, 1961)

Convém notar que tudo derivava da religião, ou, pode-se dizer, da opinião que o homem fazia da divindade. Decerto, então, nesse contexto que religião, direito, governo confundiam-se, sendo vistos como uma só coisa sob três aspectos diferentes. (COULANGES, 1961)

A religião se constitua na sociedade antiga como a senhora absoluta na vida particular e pública. Neste cenário “o Estado era uma comunidade religiosa, o rei um pontífice, o magistrado um sacerdote, a lei uma fórmula santa; onde o patriotismo era a piedade, o exílio uma excomunhão; onde a liberdade individual era desconhecida [...]” (COULANGES, 1961, p. 334-335)

Além do mais, devido ao caráter sagrado atribuído ao governante, o homem estava sujeito ao Estado por sua alma, por seu corpo, por seus bens. Outrossim, a religião pregava como obrigatório o ódio contra o estrangeiro. O conjunto histórico vivenciado pelas cidades gregas e italianas durante o primeiro período de sua história era de total domínio da religião: “a noção do direito e do dever, da justiça e do afeto paravam nos limites da cidade; onde a associação humana era necessariamente limitada dentro de certa circunferência ao redor do pritaneu, e onde não se via a possibilidade de fundar sociedades maiores.” (COULANGES, 1961, p. 334-335)

Todavia, este contexto não se manteve ao longo do tempo. Já nos cinco séculos que precederam o Cristianismo, aparecia em cena, e, com grande força, as manifestações das classes oprimidas, divulgação de estudos científicos, pensamentos filosóficos, os quais, diante do estímulo ao pensamento, acarretaram uma decadência da casta sacerdotal, e o abalo dos antigos princípios que embasavam a sociedade antiga. (COULANGES, 1961)

Assim, aos poucos a sociedade antiga vinha se modificando, e, juntamente com esta, o direito, governo e a religião também se modificavam. Buscava-se incessantemente a liberdade do cidadão que, até então, encontrava-se preso ao domínio da antiga religião, que o impedia de acreditar por ele mesmo. (COULANGES, 1961)

Destarte, nota-se que devido ao desgaste da antiga religião, os homens deixavam de crer, e, em consequência, o direito e a política começavam a ser independentes e a religião não mais governava a sociedade. Em pouco tempo, a religião estava desprovida de crenças, supremacia e qualquer força que direcionasse os homens. A sociedade antiga não depositava mais a sua crença na religião. (COULANGES, 1961)

Foi neste contexto que surgiu o Cristianismo no cenário ocidental. A doutrina cristã trouxe à sociedade antiga uma mensagem inovadora, jamais concebida anteriormente naquele meio social, trazendo consigo nova vida e vigor ao sentimento religioso daquela sociedade. De fato, o Cristianismo reconquistou o império sobre a alma. (COULANGES, 1961)

Sobre como o Cristianismo foi recebido pela sociedade antiga, tem-se a explicação de Fustel de Coulanges:

Com o cristianismo, não somente o sentimento religioso foi reavivado, mas tomou ainda uma expressão mais alta e menos material. Enquanto outrora se haviam feito deuses da alma humana ou das grandes forças físicas, começou-se então a conceber Deus como verdadeiramente estranho, por sua essência, à natureza humana de uma parte, e ao mundo de outra. O divino foi decididamente colocado fora da natureza visível e acima dela. Enquanto que outrora cada homem fizera seu deus, tendo tantos deuses quantas as famílias e as cidades, Deus apareceu então como ser único, imenso, universal, animando sozinho os mundos, satisfazendo sozinho à necessidade de oração que há no homem. Enquanto outrora a religião, entre os povos da Grécia e da Itália, nada mais era que um conjunto de práticas, uma série de ritos que se repetiam sem ter nenhum sentido, uma seqüência de fórmulas que muitas vezes já não se compreendiam mais, porque a língua envelhecera, uma tradição que se transmitia de idade em idade, e não recebia seu caráter sagrado senão de sua antiguidade, em vez disso a religião foi um conjunto de dogmas e um grande objetivo proposto à fé. A religião deixou de ser exterior, e limitou-se sobretudo ao pensamento humano. Não foi mais material, tornou-se espírito. O cristianismo mudou a natureza e a forma da adoração: o homem não deu mais a Deus alimento e bebida; a oração não foi mais uma fórmula de encantamento; foi um ato de fé e um pedido humilde. A alma manteve outras relações com a divindade; a crença dos deuses foi substituída pelo amor de Deus. O cristianismo trazia ainda outras novidades. Não era a religião doméstica de uma família, a religião nacional de uma cidade ou de uma raça. Ele não pertencia nem a uma casta, nem a uma corporação. Desde o início, chamara a si a humanidade inteira. Jesus Cristo dizia a seus discípulos: “Ide e ensinai a todos os povos.” (COULANGES, 1961, p. 335-336)

Ao contrário de tudo que até então estava enraizado no interior das pessoas, a mensagem cristã trouxe novos valores e uma nova perspectiva de mundo àquela sociedade. Propagava-se um só Deus, o único Deus criador do céu, da Terra e de tudo o que neles há, a igualdade entre todos os homens, o amor ao próximo, deveres como justiça, benevolência, solidariedade, paz, tolerância, perdão e o de propagar a mensagem cristã a todos os povos, sem exclusão de nenhum, já que são todos iguais diante de Deus.

Em relação ao governo do Estado, nunca houve por parte do Cristianismo o objetivo de interferir nos rumos deste, sendo demonstrado de maneira clara que o objetivo do da doutrina cristã não é regular as ações do homem com o Estado, mas sim do homem para com seu próximo e para com Deus. Contudo, mesmo sem esta intenção os valores cristãos mudaram a história do governo.

Sobre a distinção estabelecida pelo Cristianismo entre religião e Estado, tem-se o seguinte relato:

Quanto ao governo do Estado, pode-se dizer que o cristianismo transformou-o em sua essência, precisamente porque não cuidou disso. Nas velhas idades, religião e Estado eram uma só coisa; cada povo adorava a seu Deus, e cada deus governava o seu povo; o mesmo código regulava as relações entre os homens e os deveres para com os deuses da cidade. A religião dominava o Estado, e indicava-lhe os chefes pela voz da sorte ou dos auspícios; o Estado, por sua vez, intervinha no domínio da consciência, e punia toda infração aos ritos e ao culto da cidade. Em lugar disso Jesus Cristo ensina que seu império não é deste mundo. Separa a religião do governo. Como a religião não é mais terrestre, imiscui-se nas coisas da terra o menos possível. Jesus Cristo acrescenta: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” — É a primeira vez que se distingue tão nitidamente Deus do Estado. Porque César, nessa época era ainda o sumo pontífice, o chefe e órgão principal da religião romana; era o guarda e o intérprete das crenças; mantinha em suas mãos o culto e o dogma. Sua pessoa era sagrada e divina; porque constituía precisamente uma das características da política dos imperadores, desejosos de reconquistar os atributos da antiga realeza, não esquecer esse caráter divino que a antiguidade atribuíra aos reis-pontífices e aos sacerdotes-fundadores. Mas eis que Jesus Cristo quebra essa aliança que o paganismo e o império queriam renovar, proclamando que a religião não é mais o Estado, e que obedecer a César não é o mesmo que obedecer a Deus. (COULANGES, 1961, p. 337-338, grifo nosso)

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Foi através da mensagem do Cristianismo que houve, pela primeira vez, a ruptura entre religião e Estado, sendo estes vistos, a partir de então, sob duas esferas distintas e separadas. Após tal distinção, mesmo com resistência de parte do clero, o governo do Estado nunca mais foi o mesmo, senão veja-se:

O cristianismo acaba com os cultos locais, extingue os pritaneus, destrói definitivamente as divindades políadas. Faz mais ainda: não toma para si o império que esses cultos haviam exercido sobre a sociedade civil. Professa, que religião e Estado nada têm em comum; separa o que toda a antiguidade havia confundido. Podemos aliás notar que durante três séculos a nova religião viveu completamente fora da ação do Estado; soube passar sem sua proteção, e até lutou contra ele. Esses três séculos estabeleceram um abismo entre o domínio do governo e o domínio da religião. E como a lembrança dessa época gloriosa não podia ser esquecida, aconteceu que essa distinção tornou-se verdade vulgar e incontestável, que os esforços de uma parte do clero não foi capaz de desarraigar. (COULANGES, 1961, p. 338)

A partir de então, a política não mais estava subordinada a normas religiosas. Encontrava-se livre para estabelecer as suas próprias regras e determinar seus rumos, não se subordinando a nenhuma outra autoridade que não a lei moral. Os cidadãos não mais se submetiam ao Estado com a sua vida, e o descumprimento de uma ordem estatal não mais significava pecar. Pela primeira vez os homens distinguiam a vida política da vida particular. Não era mais necessário todo um ritual sagrado para a prática dos atos da vida civil.

Importante se faz registrar que o estoicismo, de forma corajosa, já havia apresentado a distinção entre Estado e a religião, objetivando proporcionar ao homem uma liberdade interior. Todavia, a ideia propagada pelos adeptos desta seita não fizeram da separação entre a ordem estatal e religiosa uma norma universal e inabalável, como fez o Cristianismo, o qual fez o bem comum da humanidade. (COULANGES, 1961)

Por consequência também da mensagem cristã, surge no homem um novo sentimento: a liberdade, que desde então se incorporou não só no interior dos homens, mas em toda a ordem social. Em razão das mudanças que vinha ocorrendo, tudo se transformou, conforme demonstrado na narrativa a seguir:

Os sentimentos e os costumes então se transformaram, assim como a política. A idéia que se fazia acerca dos deveres do cidadão se enfraquecera. O dever por excelência não consistia mais em dar o tempo, as forças e a vida ao Estado. A política e a guerra já não são tudo para o homem; todas as virtudes não estão mais compreendidas no patriotismo, porque a alma não tinha mais pátria. O homem sentiu

que tinha outras obrigações além das de viver e morrer pela cidade. O cristianismo distinguiu as virtudes particulares das virtudes públicas. Diminuindo estas, elevou aquelas; colocando Deus, a família, a pessoa humana acima da pátria, e o próximo abaixo do concidadão. (COULANGES, 1961, p. 339)

Diante de tantas novidades, mesmo sem esta pretensão, o Cristianismo muda totalmente as direções do Direito, do governo e de toda a sociedade ocidental, que, após a consolidação da mensagem cristã, nunca mais foram mesmos.

6.2 A influência cristã na compreensão moderna de Direito: esclarecimentos sobre como surgiu e se originou esta ligação

O Cristianismo, em sua essência, nunca pretendeu exercer qualquer tipo de domínio na ordem jurídica, mas, muito pelo contrário, sempre deixou clara a distinção entre o objetivo cristão com o reino deste mundo. A mensagem cristã destina-se a regular as relações do homem com Deus e do homem com o próximo, deixando claro que o homem, enquanto cidadão desta terra, deveria se submeter às autoridades deste mundo.

Tal assertiva se torna clara quando Jesus Cristo, ao ser questionado pelos fariseus sobre a licitude dos pagamentos de impostos, manifestou de forma expressa tal distinção, conforme se vê no livro de Mateus, no capítulo 22 e versículos 16 ao 22:

E enviaram-lhe os seus discípulos, com os herodianos, dizendo: Mestre, bem sabemos que és verdadeiro, e ensinas o caminho de Deus segundo a verdade, e de ninguém se te dá, porque não olhas a aparência dos homens. Dize-nos, pois, que te parece? É lícito pagar o tributo a César, ou não? Jesus, porém, conhecendo a sua malícia, disse: Por que me experimentais, hipócritas? Mostrai-me a moeda do tributo. E eles lhe apresentaram um dinheiro. E ele diz-lhes: De quem é esta efígie e esta inscrição? Dizem-lhe eles: De César. Então ele lhes disse: Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. E eles, ouvindo isto, maravilharam-se, e, deixando-o, se retiraram. (Mt 22, 16-22, grifo nosso)

No intuito de corroborar que o Cristianismo não pretendeu se impor ao Direito, nem a nenhuma esfera da vida humana, já que vigente na doutrina cristã o livre arbítrio, no qual todos os homens são livres para decidirem o rumo de suas vidas, o próprio Jesus Cristo afirma que o reino dele não é deste mundo, conforme passagem expressa no livro de João, capítulo 18 e versículo 36:

Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui. (Jo 18, 36)

Sobre os episódios acima narrados, Fustel de Coulanges também defende que a intenção do Cristianismo jamais foi que o direito se derivasse dela, pois a mensagem cristã se preocupava com um plano superior ao terrestre, embora ditasse normas que posteriormente serviram de fonte de inspiração para o Direito.

Nesta esteira de pensamento se manifesta:

O cristianismo é a primeira religião que não pretendeu que o direito derivasse dela, ocupando-se dos deveres dos homens, e não de suas relações de interesse. O cristianismo não regulou nem o direito de propriedade, nem a ordem das sucessões, nem as obrigações, nem os processos. Colocou-se fora do direito, como fora de tudo o que fosse puramente terrestre. O direito, portanto, tornou-se independente; pôde procurar suas regras na natureza, na consciência humana, na idéia poderosa de justiça que está em nós. Pôde desenvolver-se com toda a liberdade, reformar-se, melhorar-se sem nenhum obstáculo, seguir o progresso da moral, dobrar-se aos interesses e necessidades sociais de cada geração. (COULANGES, 1961, p. 340, grifo nosso)

Todavia, embora sem esta pretensão, o Cristianismo, inegavelmente, acabou por influenciar toda a estrutura jurídica do Ocidente, que viu, no sucesso da mensagem cristã, uma importante fonte de inspiração para consolidação de suas normas.

Ademais, durante muito tempo o Cristianismo representou a referência ética exclusiva de inúmeros povos da civilização ocidental, fato este destacado por Marcelo Maciel Ramos:

O cristianismo representou durante mais de um milênio, desde a queda da porção ocidental do Império romano no século V, até o Iluminismo e as revoluções por ele despertadas, a partir do século XVIII, a referência ética exclusiva dos vários povos que se formavam sob as perspectivas culturais da civilização ocidental. (RAMOS, 2007, p. 94)

Através dos ensinamentos de Jesus Cristo, as pessoas que iam aceitando a mensagem cristã mudavam sua forma de ver o mundo e de se posicionar perante a sociedade. A medida que a mensagem cristã conquistava a sociedade, os códigos romanos admitiam novas regras, não mais por subterfúgios, mas abertamente, e sem hesitação. O Cristianismo mudou, também, a forma como a antiga família se constituía. O pai não mais exercia a autoridade absoluta sagrada que lhe era outorgada pelo sacerdócio e a mulher passou a ser vista como moralmente igual ao marido. (COULANGES, 1961)

Coulanges salienta, ainda, como o Cristianismo mudou o direito de propriedade em sua essência, pois os limites sagrados dos campos desapareceram e a propriedade não mais derivava da religião, mas adquiria-se pelo trabalho, sem ser necessário submeter às formalidades do antigo direito. (COULANGES, 1961)

Diante das inúmeras mudanças, Coulanges constata que “porque a família não possuía mais sua religião doméstica, sua constituição e seu direito foram modificados, do mesmo modo que, só porque o Estado não tinha mais sua religião oficial, as regras do governo dos homens foram modificadas para sempre. (COULANGES, 1961, p. 340)

Assim, aos poucos, a doutrina cristã foi se tornando uma importante fonte de valor e mandamentos na experiência jurídica. (RAMOS, 2010). Em que pese tal influência, importante se faz esclarecer que a convergência entre os mandamentos cristãos e os ordenamentos jurídicos não interfere no caráter racional e humanístico do Direito. O Cristianismo se apresenta como um fator que muda a forma de como a tradição jurídica ocidental percebe o mundo e idealiza o comportamento social. Em defesa desta ideia, se posiciona Marcelo Maciel Ramos:

Aceitar a conexão entre o direito e a religião cristã não significa, todavia, abandar o pressuposto de racionalidade como ponto de partida de uma ordenação propriamente jurídica. Afinal, essa é a vocação precípua e irrenunciável do direito ocidental, construído sobre o legado greco-romano. [...] Ainda, no embate entre mito (fé) e razão que sempre permeou o pensamento ocidental, mesmo nos momentos de radical racionalismo, buscou-se muitas vezes nas crenças os elementos sobre os quais a razão se debruçou para produzir seus conhecimentos. Com isso, mesmo com o proclamado racionalismo do Iluminismo, a suscitar uma profunda transformação na civilização ocidental, com a revalorização do homem e da razão, os valores da tradição cristã não puderam ser abandonados definitivamente, sob o argumento de que se fundavam na crença em uma verdade revelada pela divindade. Isso porque, naquele momento, eles já estavam profundamente impregnados no imaginário e no patrimônio cultural e ético do Ocidente. (RAMOS, 2010, p.64)

Destarte, evidente é a dissociação de ambas as esferas, a religiosa e a jurídica, o que não significa que uma não possa fundamentar a outra sem perder a sua característica, sua personalidade. É inegável, através de um mergulho na tradição jurídica ocidental e nos ordenamentos jurídicos dela emanados que a doutrina cristã se constituiu um fator de peso, uma influência marcante no comportamento social, e, sendo o Direito um instrumento que regula a conduta de toda uma sociedade, torna-se plenamente aceitável, ou até mesmo inevitável, que haja tais reflexos.

Ainda assim, em inúmeros momentos históricos, nota-se a repulsão a qualquer tipo de interferência da religião, mormente no contexto ocidental, através de movimentos filosóficos, humanistas, renascentistas, os quais afirmavam a total independência do Direito.

Em que pese tais posicionamentos, e mesmo diante da autonomia do Direito em se inventar e ditar as normas que a ele compete, ao final, em uma profunda análise de todo o sistema, inevitável se torna concluir pela convergência do Direito com os ensinamentos do Cristianismo, fato este constatado por Marcelo Maciel Ramos:

Todavia, se, por um lado, o banimento do cristianismo do pensamento científico e filosófico e da vida política, a partir do Iluminismo, permitiu o reflorescimento do direito, por outro, buscou-se no ethos cristão muitos dos valores sobre os quais ele se reconstituiu. [...] Sob a inspiração das filosofias gregas, suprimiam-se as afirmações de limitação racional e de incapacidade moral do homem, bem como seus deveres inquestionáveis de submissão e obediência cegas à ordem divina; entretanto, a própria valorização do homem e a afirmação fundamental da igualdade humana buscavam na noção de pessoa e de fraternidade universal, desenvolvidas pela doutrina cristã, seus pressupostos basilares. (RAMOS, 2010, p.69, grifo nosso)

Coadunando com a ideia de que fé cristã promoveu uma importante influência na compreensão moderna do Direito, Diogo Luna Moureira apresenta que foi por meio dela que o homem adquiriu uma noção de interioridade, a qual conferia uma importância a sua essência, sendo ela responsável por conduzi-lo até Deus. A respeito desta noção:

A fé cristã desempenhou papel de extrema importância no Medievo ao proporcionar uma nova imagem do “eu interior” e de todas as consequências provocadas por este reconhecimento. O “eu” cristianizado pressupõe o reconhecimento de algo interior ao homem, que está ligado a sua essência e o leva a Deus. (MOUREIRA, 2011, p. 21)

Como se depreende, a mensagem do Cristianismo promoveu o reconhecimento da subjetividade do homem, e, por conseguinte, autonomia e o valor próprio da alma individual. Trouxe em sua mensagem a faculdade do ser humano em optar por suas decisões e escolher o caminho a ser seguido. Sobre esta faculdade, a Bíblia denomina como livre arbítrio, sendo que

O homem é, pois, ser dotado de livre arbítrio (Liberum arbitrium voluntatis) que o conduz na tomada de decisões diante dos fatos da vida: “essa prova da liberdade da Vontade funda-se exclusivamente em uma força interior de afirmação ou de negação que não tem a ver com qualquer posse ou potestas real”. A exteriorização da interioridade pela liberdade é que possibilita a manifestação de um homem capaz de querer. (MOUREIRA, 2011, p. 22-23)

Em virtude dessas considerações, veja-se que Deus concedeu ao homem, em sua individualidade, a vontade para escolher livremente as suas decisões, de forma que são estas escolhas que afastarão ou aproximarão o homem de Deus. O que Deus faz é dar conhecimento a humanidade, através da Bíblia, sobre preceitos e normas de conduta que são agradáveis a ele, de forma que cada um, no uso de seu livre arbítrio, poderá escolher em submeter a sua vontade livre aos desígnios divinos ou às paixões humanas.

Destarte, o Cristianismo revela o homem como um ser superior aos animais, pois dotado de razão e livre. Assim, Diogo Luna Moreira, fazendo referência a Santo Agostinho, assevera que

[...] a superioridade do homem perante aos demais animais está no fato de ele saber que vive e, portanto, poder assumir determinadas posturas através do uso da vontade livre. O homem é um ser dotado de razão, e não apenas de instintos, de forma que “só quando a razão domina a todos os movimentos da alma, o homem deve se dizer perfeitamente ordenado.” Acima desta razão, só Deus, que é a Verdade. (MOUREIRA, 2011, p. 25)

Notadamente em relação ao Cristianismo como fator influenciador da concepção moderna do Direito, afirma-se que “o despontar da Modernidade proporcionará uma nova visão do indivíduo que encontra espaço para o desenvolvimento na própria consciência, de uma singularidade mitigada no Medievo, mas ao mesmo tempo teoricamente instigada pela filosofia cristã da interioridade.” (MOUREIRA, 2011, p. 35)

Logo, constata-se que a doutrina cristã exerceu um papel de extrema importância para a atual concepção acerca do Direito. Diante das abordagens realizadas, pode-se perceber que devido aos valores conferidos ao homem, e a forma como o Cristianismo o concebeu, dotando-o de razão, liberdade e dignidade, a ordem jurídica teve que ser reformulada, já que a sociedade ocidental já havia entendido o reconhecimento e importância do ser individual.

Outrossim, apóia-se na inelutável convergência entre o Cristianismo e o Direito, sendo forçoso concluir que o Cristianismo, em virtude de sua anterioridade, serviu de fundamento para o Direito tal como hoje é consolidado.

Sobre a autora
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos