A mensagem do cristianismo como fundamento histórico de institutos jurídicos contemporâneos

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12/01/2015 às 00:05
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7. O CRISTIANISMO COMO INSPIRAÇÃO PARA FENÔMENOS QUE MUDARAM A HISTÓRIA DA HUMANIDADE E DO DIREITO

A doutrina cristã, além de ser uma importante fonte de conteúdo de inúmeros ordenamentos jurídicos de todo o mundo ocidental, foi influente precursora de fenômenos que mudaram frontalmente a história do Direito.

Sob inspiração nos valores cristãos, inúmeros eventos ocorreram em toda a história da humanidade após o advento do Cristianismo. Cientes dos direitos garantidos pela mensagem cristã, as sociedades não mais se sujeitaram passivamente a qualquer tratamento a elas dispensado.

Conhecedoras de valores como igualdade de todo os homens, amor ao próximo, solidariedade, fraternidade, inerentes a todo ser humano, não seria tão fácil aos governantes impor qualquer tipo de regime às sociedades com a cultura cristã.

Diante desta conscientização, busca-se apresentar, dentre tantos, eventos como a Declaração de Independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que buscaram inspiração e tiveram direta influência de valores oriundos do Cristianismo.

Assim, quer-se enfatizar a importância da mensagem cristã não somente no plano jurídico dos ordenamentos, mas como fator que acarretou a mudança de toda a sociedade, conferindo aos homens direitos e garantias fundamentais que não eram objeto de efetividade por partes dos Estados.

7.1 Declaração de Independência dos Estados Unidos da América

Os treze Estados que atualmente compõem os Estados Unidos da América, antes de serem Estados independentes, eram colônias que possuíam como metrópole a Inglaterra. (SCHWIDT, 2005)

A Inglaterra, que acabava de sair vitoriosa na guerra dos 7 anos, onde disputou com a França a hegemonia do comércio nas colônias da América do Norte, contraditoriamente se encontrava derrotada. Tratava-se de uma derrota financeira, já que, em virtude dos grandes prejuízos oriundos da guerra, perdeu seu poder econômico e entrava em uma crise econômica. Diante da crise enfrentada, e no intuito de superar esta situação, o Parlamento inglês resolveu aprovar inúmeras medidas que acarretaram no aumento da tributação nas colônias. (SCHWIDT, 2005)

Inconformados com a implantação de leis que estabeleciam impostos cada vez mais altos em mercadorias cotidianamente utilizadas, tais como o açúcar, os selos e o chá, as colônias constataram uma sobrecarga tributária, e, diante de tal situação, após inúmeros confrontos com a metrópole, as colônias se reuniram, e, no dia 04/07/1776 aprovaram a Declaração de Independência dos Estados Unidos. (ALTAFIN, 2007)

Neste documento, estavam contidos valores como igualdade entre todos os homens, liberdade, a busca pela felicidade, havendo expressa menção que tais valores eram oriundos do criador. Sobre tais valores, assim destaca Juarez Altafin:

Na declaração de Independência de 1776, que teve inspiração de Jefferson, afirma-se, vigorosamente, como princípios básicos, “que todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.” (ALTAFIN, 2007, p. XIII)

Prossegue afirmando:

Na declaração de Independência dos Estados Unidos, os congressistas de 4 de julho, do mesmo ano de 1776, afirmaram como ‘evidentes estas verdades: que todos os homens foram criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, em cujo número estão a vida, a liberdade e o desejo de bem-estar; que para firmar tais direitos são instituídos os governos entre os homens...” Isso demonstra que, mesmo sob a influência do racionalismo, os congressistas da Independência Norte-Americana não abdicaram da origem divina dos Direitos Naturais. (ALTAFIN, 2007, p. 11)

Notadamente em relação à igualdade entre os homens, defende-se que esta deriva da paternidade divina, conforme se pode verificar nos posicionamentos apresentados por Carlos Enrique Ruiz Ferreira e pelo filósofo John Lo> 

É interessante notar como essas duas tônicas (igualdade entre os homens derivada de uma mesma Paternidade divina), aparecem ipsis literis nos documentos provindos da Revolução Americana. A semelhança de concepção com a doutrina cristã é óbvia: “We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights” (Declaração de Independência dos EUA, 1776). Ou seja, no que tange aos Direitos Humanos estadunidenses, eles nascem universais e fundamentam-se na igualdade dos homens propiciadas pelo “Criador”. (FERREIRA, 2010, p. 7)

Locke a mesma concepção: “[…] todos os homens são obra de um único Criador todo-poderoso e infinitamente sábio, todos servindo a um único senhor soberano, enviados ao mundo por sua ordem e a seu serviço; são portanto sua propriedade, daquele que os fez e que os destinou a durar segundo sua vontade e de mais ninguém”. (LOCKE apud FERREIRA, 2010, p.7).

Destarte, claramente se pode observar a influência dos valores cristãos na concretização de um documento de tamanha magnitude para a nação que atualmente é considerada um império mundial.

7.2 Revolução Francesa

A Revolução Francesa surge no século XVIII, quando a população vivenciava um quadro de alarmante injustiça social. A França era um país absolutista, onde os reis detinham total poder sobre a política, religião, justiça e toda a sociedade. (APOLINÁRIO, 2010)

A sociedade francesa se dividia em três estados. O primeiro estado era composto pelo clero, formado por bispos, padres e vigários. O segundo estado compreendia a nobreza, sendo os descendentes de pessoas da alta burguesia. Já o terceiro estado albergava as demais classes da sociedade, onde estavam os trabalhadores urbanos como profissionais liberais e professores; a pequena burguesia, os camponeses, enfim, todo o restante do povo. (APOLINÁRIO, 2010)

Ao terceiro estado, e unicamente a este, era imposta pelo rei a obrigatoriedade de pagar tributos, despesas e contribuições para os demais estados, a fim de mantê-los em todo o luxuoso padrão de vida que ostentavam. (APOLINÁRIO, 2010)

Inconformados com tal situação, onde os impostos eram cada vez mais altos, e a situação dos trabalhadores e camponeses era de extrema miséria, o terceiro estado resolveu não mais se conformar em ser o responsável pela manutenção do luxo e conforto dos primeiro e segundo estados. Iniciaram, a partir de então, um movimento que levou a população às ruas a fim de acabar com a monarquia comandada pelo rei absolutista, Luis XVI. (APOLINÁRIO, 2010)

Neste contexto, surge a luta pelo reconhecimento do direito à liberdade, buscando uma garantia a liberdades fundamentais do homem, liberdades estas que já se encontravam interiorizadas no ser humano desde o nascimento, as quais são inalienáveis. Por possuir esta característica, o direito à liberdade abrangia a liberdade pessoal, de pensamento, de manifestação, política, enfim, todos os tipos de liberdades fundamentais ao homem clamavam pelo reconhecimento. (GOYARD-FABRE, 2002)

Buscavam também o reconhecimento dos deveres que o Ente Estatal possuía para com os seus membros, de forma que estes, na sua individualidade ou coletividade, pudessem exigir do Estado o amparo e a assistência.

Consubstanciado em seu lema, a Revolução Francesa objetiva a conquista dos maiores desejos do terceiro estado: liberdade, igualdade e fraternidade. (APOLINÁRIO, 2010)

Sendo assim, para mudança do cenário absolutista anteriormente vivenciado, planejava-se a tomada da Bastilha, lugar onde os opositores da monarquia considerados como culpados pelo rei eram presos ou condenados à morte tão somente pela discricionariedade do monarca. (APOLINÁRIO, 2010)

No dia 14/07/1789 a Bastilha foi tomada, marcando, assim, o início da Revolução Francesa. A partir de então, a revolução se propagou, acarretando na captura do rei e de toda a família real. (APOLINÁRIO, 2010)

Diante deste cenário, não houve outra saída à ordem jurídica senão proceder ao reconhecimento de direitos que urgiam por ser reconhecidos. Tais direitos já faziam parte da natureza intrínseca dos indivíduos e necessitavam do reconhecimento pelo ente estatal. Não havia motivos para a não concretização de tais direitos que já pertenciam aos indivíduos, embora desprovidos de efetividade jurídica e reconhecimento estatal. (GOYARD-FABRE, 2002)

Sendo assim, foi anunciada a formação da Assembléia Constituinte, na qual foram cancelados todos os direitos feudais existentes e, em substituição, foi promulgada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. (APOLINÁRIO, 2010)

Sobre os direitos garantidos neste importante documento, mister salientar a direta influência dos valores cristãos na nova ordem que se formava. Liberdade, igualdade e fraternidade são valores consagrados em todo o contexto bíblico. A população francesa ansiava por direitos a ela inerentes, direitos que já foram outorgados pelo Criador e garantidos através da mensagem bíblica. (RAMOS, 2010)

A respeito dessa relação, Marcelo Maciel Ramos, citando José Luiz Borges Horta afirma:

Lembremos que o próprio lema da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – albergava, além do valor da autonomia humana (liberdade), de inspiração clássica, os valores da igualdade e da fraternidade universal, cuja inspiração é inegavelmente cristã. [...] Desse modo, a fraternidade, isto é, o “reconhecimento do outro como semelhante, ainda que diferente”, acaba por ser afirmada, conforme ensina José Luiz Borges Horta, como o novo valor central do Estado de direito, inaugurando a era da cidadania mundial, o que exigia, pois, sua universalização, estendendo, por conseguinte, os seus valores a toda humanidade. (RAMOS, 2010, p. 70)

Assim, com inspiração em valores cristãos, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão significou um grande avanço para a sociedade francesa, já que garantia direitos sociais, igualdade, liberdade e fraternidade a todos os cidadãos, conferindo, ainda, uma maior participação política para o povo.

7.3 Declaração Universal dos Direitos Humanos

Transcorridos aproximadamente cento e cinquenta anos da Revolução Francesa, o mundo experimentava um cenário de horror, já que neste ínterim passou por duas grandes guerras mundiais. Em 1914, iniciava-se no cenário mundial a Primeira grande guerra, que perdurou até o final do ano de 1918. Logo em seguida, sem poder se recuperar das atrocidades e destruições acarretadas pela grande guerra, o mundo foi palco de outra guerra, a 2ª guerra mundial, que durou de [1939] a [1945]. (SCHWIDT, 2005)

O cenário vivenciado por toda a humanidade foi de morte, preconceitos, desigualdade, violência, intolerância e extrema crueldade. Necessitava-se com total urgência de um acordo entre a humanidade que garantisse a paz entre os povos. É neste contexto que, em 1948, surge a Declaração Universal dos Direitos Humanos. (SCHWIDT, 2005)

Referido documento procurava restaurar a paz em todo o mundo, e conferir igualdade e dignidade às pessoas em um caráter universal. Apenas com uma superficial análise da Declaração, pode-se claramente observar que nela estão consubstanciados os valores revolucionários trazidos pelo Cristianismo.

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No preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), há a menção acerca da igualdade dos homens e da imperiosa necessidade de reconhecimento de direitos inerente a toda humanidade, afirmando, em suas primeiras linhas que “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo [...]

Prossegue em seu art. 1º, onde prevê que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos são dotados de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948)

De início, pode-se claramente constatar a inquestionável presença de valores cristãos incorporados no corpo desta carta que conferiu direitos tão importantes a toda humanidade.

Apenas para corroborar tal assertiva, traz-se algumas passagens bíblicas nas quais constam esta igualdade e universalidade entre todos os homens, de forma a se concluir que tais valores serviram de fundamentos históricos e teóricos para a consolidação dos direitos humanos.

Assim, veja-se o que fala em Efésios 2, versículos 14 ao 19:

Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos os povos fez um; e, derrubando a parede de separação que estava no meio, a inimizade, aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade. E, vindo, evangelizou paz a vós outros que estáveis longe e paz também aos que estavam perto; porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um Espírito. Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus. (Ef 2, 14-19)

No mesmo sentido, tem-se a passagem escrita no livro de Gálatas 3, versículos 26 ao 28:

Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Porque todos quantos fostes batizados em Cristo já vos revestistes de Cristo. Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus. (Gl 3, 26-28)

A perspectiva apresentada nos ensinamentos cristãos coaduna com o objetivo proposto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não há mais a visualização de estrangeiros, pois, com os ensinamentos de Jesus Cristo, todos são parte integrante de um mesmo povo. Sendo todos os homens iguais, não há mais motivos para discriminação quanto à origem, raça, nacionalidade, dentre outros.

Sobre esta relação, Celso Lafer afirma que “[...] o ensinamento cristão é um dos elementos formadores da mentalidade que tornou possível o tema dos direitos humanos”. (LAFER, 2001, p. 119). De igual forma, Michel Villey destaca que "o lugar-comum de que os direitos humanos são um produto do cristianismo, ou do judaico-cristianismo, é onipresente na literatura cristã, tanto protestante como católica; comporta uma parte de verdade. A noção moderna dos direitos humanos tem raízes teológicas". (VILLEY, 2007, p. 107)

Destarte, veja-se que a Declaração Universal dos Direitos Humanos veio concretizar e impor deveres jurídicos que há muito já estavam presentes na Bíblia como deveres cristãos, e, devido à expansão do Cristianismo, estavam incutidos na mentalidade de todo o mundo ocidental.

Outrossim, aludida Declaração é concebida universalmente como o alicerce das garantias e direitos fundamentais, entendendo-se, diante da relação acima apresentada, pela direta influência do Cristianismo na elaboração deste documento tão importante para humanidade, considerado como uma conquista que mudou a história do Direito e dos países que a ela aderiram.

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