A mensagem do cristianismo como fundamento histórico de institutos jurídicos contemporâneos

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12/01/2015 às 00:05
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9 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO COMO BASE PARA EFETIVAÇÃO DOS DEVERES E VALORES CRISTÃOS

O Cristianismo, com todo o seu caráter universal e inabalável, traz em sua mensagem valores ensinados pelo criador de todo o universo e dos seres viventes, os quais devem ser seguidos para obter a aprovação de Deus. Tais valores passam a compor o interior das pessoas que crêem na mensagem cristã, arraigando-se na mente destas, causando, inevitavelmente um reflexo em toda a sociedade.

Outrossim, os valores originados dos ensinamentos cristãos compõem o patrimônio ético do homem ocidental, influenciando, significativamente, o conteúdo normativo do direito contemporâneo (RAMOS, 2010).

Em relação aos valores cristãos e os deveres jurídicos, Marcelo Maciel Ramos (2010) estabelece uma relação entre estes, de forma a demonstrar que mesmo com a intensiva negação da fé cristã promovida pela contemporaneidade, tais valores não puderam ser afastados da esfera jurídica e legislativa, ainda que já consolidadas tais esferas, e, mesmo diante de um Estado racional. Para tanto, assim se expressa:

[...] os valores supremos cristãos do amor e da caridade, a despeito dos seus fundamentos religiosos, apresentavam-se como conquistas sublimes do espírito ocidental, cujo apelo universal transcendia quaisquer limites culturais específicos. Do dever de amar a todos os homens, incluindo-se aí os amigos e os inimigos, o igual e o diferente, desdobraram-se alguns dos valores mais importantes do Ocidente, os quais, mesmo com a intensiva negação da fé promovida pela contemporaneidade, não puderam ser afastados em vista do seu apelo racional (ou universal) inquestionável: 1) a igualdade de todos os homens; 2) a caridade como dever de participar pessoalmente nas necessidades e sofrimentos alheios (mesmo dos inimigos), tomando-os como se fossem próprios; 3) o perdão, a proclamar a proibição da vingança e o dever de misericórdia para com aquele que tenha errado ou ofendido; e 4) a tolerância para com o diferente, o marginalizado e o excluído. (RAMOS, 2010, p. 69-70, grifo nosso)

No que tange à sociedade brasileira, notadamente onde 86,8% da população do Brasil são declaradamente cristãos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010), torna-se inquestionável que os valores extraídos da mensagem cristã se encontram presentes no foro interno da maior parte da população.

De igual sorte, o Direito, que é destinado a regular as condutas de toda a sociedade, busca nos valores a sua essência, estando estes presentes na substância do direito.

Outrossim, parte a análise para o Direito Brasileiro. O preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê que

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. (BRASIL, 1988, sem grifo no original)

Sobre a organização estatal, já dizia a Encíclica Rerum Novarum em seu inciso 13 que “o Estado é posterior ao homem, e antes que ele pudesse formar-se, já o homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger a sua existência.” (LEÃO XIII, 1891)

Sobre esta forma de organização e este direito inerente ao homem afirmado na Encíclica, passa-se a abordagem do modelo de organização estatal adotado pelo Estado Brasileiro.

O Estado Democrático de Direito é o regime adotado pela República Federativa do Brasil e possui seus fundamentos expressos no art. 1º da Constituição Federal da República, o qual prevê:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. (BRASIL, 1988)

Sobre o conceito de Estado Democrático de Direito, Alexandre de Moraes assim leciona:

O Estado Democrático de Direito, que significa a exigência de reger-se pelo Direito e por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais, proclamado no caput do artigo 1º da Constituição Federal de 1988, adotou, igualmente em seu parágrafo único, o denominado princípio democrático, ao afirmar que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. (MORAES, 2007, p 125)

Notadamente em relação a ordem estatal adota pelo Brasil, pode-se afirmar que esta possui em seus fundamentos inúmeros valores cristãos, a começar pela fraternidade e busca da igualdade inerentes ao regime democrático. Fraternidade e igualdade são valores de caráter cristão, veementemente defendidos por Jesus Cristo como deveres dos homens neste mundo. Sobre esta relação, Carlos Alberto Bittar Filho assim manifesta:

Por outro lado, um dos pilares centrais da própria democracia é a fraternidade, da qual se desdobra a proteção à parte contratualmente mais fraca (Georges Ripert). Com efeito, se os homens são irmãos, eles devem ser iguais; se não o são, os mais fracos têm o direito de serem protegidos. Aliás, a experiência demonstra que a liberdade não basta para assegurar a igualdade, pois os mais fortes se tornam opressores; dessarte, cumpre ao Estado intervir, em nome de todos, para a proteção dos fracos. (BITTAR FILHO, 2004)

É sabido que outros valores apresentados pelos Cristianismo, como liberdade, dignidade e vida, estão presentes no Estado Democrático de Direito na forma de fundamento, objetivos, direitos e garantias fundamentais, as quais atuam como limitadoras de poder de tal Ordem estatal.

Fazendo-se um paralelo entre o regime estatal adotado pela atual Constituição Federal e a Doutrina Cristã, Juarez Altafin assinala com muita propriedade:

A propósito, podemos dizer que dois são os postulados básicos da democracia: a) a igualdade, quanto ao que se refere aos homens; b) a liberdade, na sua vinculação política com o Estado. Para Aristóteles, “a igualdade é o meio idôneo de se atingir a liberdade, princípio e fim do governo democrático”. Quanto ao primeiro postulado, igualdade como base da democracia cristã, temos as palavras de São Paulo: “Não há, pois, judeu nem negro, escravo ou livre, varão ou fêmea, pois sois todos um em Jesus Cristo”.[...] Quanto à liberdade, em relação ao Estado, na Epístola de São Paulo aos Romanos, está que “o poder público foi instituído por Deus”. [...] Dessa forma, se os homens são iguais por um preceito divino, anterior e superior ao Estado, perante este, são titulares de um Direito Natural, porque inerente à sua natureza humana. E se o poder público foi “instituído por Deus”, deve-se obedecer aos “princípios revelados por Deus”. No seu relacionamento com o ser humano, o Estado está sujeito aos preceitos divinos e respeito aos direitos naturais, que asseguram a liberdade do homem. (ALTAFIN, 2007, p. 2)

Neste sentido, forçoso é concluir acerca da existência de valores oriundos dos ensinamentos cristão na ordem estatal adotada pelo Brasil.

9.1 A base cristã do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana

O artigo 1º, III, da Constituição Federal, prevê que “a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana.” (BRASIL, 1988)

A dignidade da pessoa humana está presente em todo o ordenamento jurídico, e, além de ser um princípio basilar é um fundamento do Estado Democrático de Direito. Contudo, antes de ser abraçada com tamanha importância no texto constitucional brasileiro, é importante salientar que a noção de dignidade da pessoa humana, tal como é concebida contemporaneamente, foi apresentada pelo Cristianismo.

Em busca da origem mais remota sobre o conceito de dignidade presente na história da humanidade, Gerson Marcos Morgado (2014) afirma que se vislumbra, inicialmente, a presença deste valor no Código de Hamurabi, com posterior menção da dignidade no Código de Manu, e, logo em seguida, nos pensamentos dos gregos e estóicos. Todavia, informa que a visão que toda a antiguidade possuía acerca do que seria a dignidade, tratava-se de um conceito superficial, com uma dimensão diferente da atualmente vislumbrada. O autor apresenta este contraste:

Não obstante a contribuição que se possa reconhecer às culturas acima mencionadas para a noção e consciência da dignidade humana, o fato é que não há, nos povos antigos, o conceito de pessoa tal como o conhecemos hoje. O homem para a filosofia grega, por exemplo, era um animal político ou social, como para Aristóteles e sua identidade estava associada ao conceito de cidadania, ou seja, ao fato de pertencer ao Estado, que por sua vez possuía íntima conexão com o Cosmos, vale dizer, com a natureza. [...] Mesmo entre as culturas mais evoluídas da época antiga, como Roma e Grécia, não havia ainda a noção de uma singularidade valorizadora do ser humano como ser em si, abstraído do contexto social da polis dominada pelas aristocracias locais. O ser humano nestas distantes épocas não havia conhecido ainda alguma filosofia ou pensamento que lhe atribuísse um valor em si, uma valoração embasada na sua dignidade pessoal, como fim em si mesmo, mas apenas enquanto membro de um grupo social. (MORGADO, 2014)

Referida concepção começou a ser modificada no contexto ocidental com a difusão da mensagem cristã. O Cristianismo trouxe consigo a ideia de unidade através de uma paternidade comum, e de uma valorização do indivíduo em virtude de ser imagem e semelhança de Deus. Apresentava, também, a noção de direitos fundamentais inerentes a todos os seres humanos que, até então, não haviam sido conferidos de forma tão expressa como foi pelos ensinamentos evangélicos. Sobre esta mudança de visão, tem-se colocação de Morgado:

O cristianismo, portanto, logrou, pela criação de uma cultura comum e universal, forjar a consciência de que todo o gênero humano formaria uma só unidade, pela doutrina de que todos os povos e homens descenderiam de um mesmo pai com sua essência comum em todos os homens. Com a unidade no Deus único e sua única e mesma essência em todos os seres humanos, surge nos espíritos a consciência da dignidade humana comum. De acordo com a filosofia cristã, a dignidade da pessoa humana é decorrente da própria natureza divina do homem, ou seja, o homem em razão de conter em seu ser parte daquilo que é chamado de essência divina, deve ser considerado como ente digno. A dignidade seria a quota divina que todo homem possui, é elemento indissociável, e por si só, é capaz de fundamentar a existência de direitos e garantias fundamentais outorgados à proteção do gênero humano. A noção de Dignidade da Pessoa Humana deve, portanto, muito à doutrina cristã, já que foi a partir desta que se pôde pensar o homem sob a ótica da igualdade. Um homem criado à imagem e semelhança de Deus e que, portanto, tem valor especial na escala dos seres. (MORGADO, 2014)

Morgado (2014) afirma que a concepção de dignidade humana, faz parte da tradição personalista e metafísica do Cristianismo, o qual, com sua influência sobre a cultura Ocidental, principalmente a partir do século IV depois de Cristo, possibilitou a descoberta de um novo fundamento de dignidade, diferente do apresentado pela antiga acepção grega. Foi com o Cristianismo que o homem passou a ser concebido como um ser de filiação divina e não um produto natural, fundando-se cabalmente a dignidade do homem no ‘reino do espírito’ e na liberdade da vontade.

No mesmo sentido, Cibele Kumagai e Taís Nader Marta, afirmam, após profunda abordagem sobre o assunto, “que o conceito de pessoa no sentido subjetivo, com direitos subjetivos ou fundamentais, inclusive dignidade, surge com o cristianismo e vem aperfeiçoada pelos escolásticos.” (KUMAGAI; MARTA, 2010)

Coadunando com a presença da dignidade da pessoa humana nos ensinamentos cristãos, a qual possibilitou o desenvolvimento da personalidade dos indivíduos, traz-se a seguinte afirmação:

Tobeñas preleciona que foi o Cristianismo que, desde seus primeiros momentos, afirmou o indivíduo como um valor absoluto, exaltando o sentimento de dignidade da pessoa humana e proclamando uma organização da sociedade que viesse a permitir o total desenvolvimento de sua personalidade, sem prejuízo para o bem comum, ao revés, colaborando para desfrutar deste. (TOBEÑAS apud MORGADO, 2014)

Desta forma, pode-se verificar que o Cristianismo fundou na sociedade ocidental “a noção de pessoa como categoria espiritual e individualidade subjetiva com valor em si mesma em dignidade, como ser de fins absolutos e que, em conseqüência, é possuidor de direitos subjetivos ou direitos fundamentais” [...] (MORGADO, 2014)

Trazendo um conceito sobre o que seria dignidade, Ingo Wolfgang Sarlet leciona que

[...] a dignidade da pessoa pode ser definida como sendo a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2002, p. 62)

Morgado (2014) afirma que a dignidade humana não é a superioridade de um homem sobre outro, mas sim de todo homem sobre os seres que carecem de razão.

Carmem Lúcia Antunes Rocha considera esta dignidade presente no fundamento da República como o “coração do patrimônio jurídico moral da pessoa humana” (ROCHA apud ALTAFIN, 2007, p. XIII). A respeito desta colocação, Juarez Altafin traz o comentário feito por Ingo Sarlet, o qual afirma que:

Ora, se a dignidade é o “coração do patrimônio jurídico-social da pessoa humana”, é possível afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana é o coração dos direitos fundamentais, dos direitos humanos, já que estes, na lição de Ingo Sarlet, invocando Dominique Rousseau, “constituem explicitações da dignidade da pessoa, de tal sorte que em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa.” (SARLET apud ALTAFIN, 2007, p. XIV)

Carmem Lúcia Antunes Rocha afirma que o Estado não cria a dignidade da pessoa humana, pois esta precede ao Estado. O que o ente estatal faz é tão somente reconhecê-la como “dado essencial da construção jurídico-normativa, princípio do ordenamento e matriz de toda organização social, protegendo o homem e criando garantias institucionais postas à disposição das pessoas a fim de que elas possam garantir a sua eficácia e o respeito à sua estatuição.” (ROCHA apud SIQUEIRA, 2010)

E este reconhecimento enunciado pela autora, se deu no sistema normativo brasileiro. Sobre este reconhecimento pela Constituição Federal Brasileira, Morgado aponta como que a dignidade da pessoa humana foi elevada com destaque na carta constitucional, mormente pela sua sistematização, sendo colocada antes mesmo da organização do Estado, senão veja-se:

A positivação do tema no Direito Constitucional brasileiro e a posição estratégica do instituto situado antes mesmo da organização do Estado é justamente a prova da consciência jurídica nacional da importância do tema bem como o reconhecimento e afirmação de que o Estado brasileiro é visto como meio e não mais como fim em si mesmo, ou seja, o Estado é visto como meio para a realização e promoção da pessoa humana e não vice-versa. (MORGADO, 2014)

Assumindo o caráter de grande importância na ordem jurídica e todo o aparato constitucional que dela origina, “pode-se dizer que a dignidade seria o núcleo material dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, ou seja, a sua fonte originária. (MORGADO, 2014).

Destarte, corroborando com os posicionamentos dos diversos doutrinadores, defende-se a dignidade da pessoa humana como direito inerente a todos os seres humanos, o qual foi devidamente consagrado pelo Cristianismo, e, em momento posterior, diante da sua magnitude e importância, foi recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro, sendo consagrada, constitucionalmente, como um fundamento da República.

9.2 Direito do trabalho: a primazia do trabalho sobre o capital a partir da mensagem cristã

No preâmbulo constitucional há a instituição do Estado Democrático de Direito para assegurar, dentre outros, o exercício dos direitos sociais. Como fundamento desta ordem estatal, o art. 1º, IV, da Constituição Federal estabelece que “a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;” (BRASIL, 1988)

Sobre a relação do Cristianismo e o Direito do trabalho, importante se faz retornar às origens dos direitos sociais atualmente consagrados, demonstrando como a mensagem cristã foi fundamento do documento que muito colaborou para a consolidação dos direitos trabalhistas, a Encíclica Rerum Novarum.

Como cenário de onde se originou os direitos sociais, pode-se citar a Inglaterra. O retrato da situação vivenciada pela Inglaterra nos fins do século XVIII e meados do século XIX era de uma sociedade dividida em classe burguesa (patrões) e proletariado (trabalhadores), onde os burgueses estavam cada vez mais ricos às custas do empobrecimento extremos dos trabalhadores. (APOLINÁRIO, 2010)

A busca incessante pelo lucro máximo, fazia com que os burgueses explorassem cada vez mais os trabalhadores, os quais trabalhavam para manter tão somente a própria subsistência já que os salários eram vergonhosos. As condições de trabalho eram precárias e as jornadas de trabalho muitas vezes ultrapassavam mais de dezesseis horas diárias. (APOLINÁRIO, 2010)

Configurava-se um cenário de miséria, fome e doenças devido à exploração contínua dos trabalhadores e as péssimas condições de vida, higiene, saúde e saneamento em que estavam sujeitos. Dentro da classe operária estavam, além dos homens, as mulheres e as crianças, estando igualmente sujeitos a esta escassa realidade. (APOLINÁRIO, 2010)

Irresignados com tal situação, e não aguentando mais as condições de vida a que estavam submetidos, parte dos trabalhadores deram início às greves e rebeliões em busca de melhores condições de trabalho, o que acarretou na Revolução Industrial. (APOLINÁRIO, 2010)

Notadamente no Brasil, este surto industrial iniciou na segunda metade do século XIX, e as condições de trabalho refletiam a realidade enfrentada pela Inglaterra: exploração extrema, miséria, doenças, enfim, um cenário lamentável. (ALTAFIN, 2007)

A situação do proletariado fez com que a igreja dominante à época, de posse dos valores cristãos, editasse, na pessoa do Papa Leão XIII, a Encíclica Rerum Novarum, na data de 15 de maio de 1891, chamando atenção para os direitos que deveriam ser conferidos aos trabalhadores. (ALTAFIN, 2007)

A Encíclica estabelecia inúmeras garantias aos trabalhadores, colocando estes em condições de igualdade com os patrões, ao afirmar que “nisto todos os homens são iguais, e não há diferença alguma entre ricos e pobres, patrões e criados, monarcas e súbditos, porque é o mesmo o Senhor de todos.” (LEÃO XIII, 1891)

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Altafin salienta ainda a necessidade de igualdade e cooperação mútua que deve existir entre as classes, destacando a parte da Encíclica que prevê que “é um erro capital julgar-se que ricos e pobres são classes destinadas a degladiarem-se.”. Ao contrário, “elas têm imperiosa necessidade uma da outra: não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital.” (ALTAFIN, 2007, p. 27)

Afirmava a Encíclica que “não é justo nem humano exigir do homem tanto trabalho a ponto de fazer pelo excesso da fadiga embrutecer o espírito e enfraquecer o corpo.” (LEÃO XIII, 1891) Portanto, estabelece o repouso semanal, asseverando que “unido à religião, o repouso tira o homem dos trabalhos e das ocupações da vida ordinária para o chamar ao pensamento dos bens celestes e ao culto devido à Majestade divina.” (LEÃO XIII, 1891) Fundamenta a necessidade do repouso semanal na determinação de Deus ao homem prevista no Antigo Testamento, no livro de Êxodo 20, nos versículos 9 ao 11[6].

No documento papal previa uma antevisão do salário mínimo, quando dispunha que o operário deve “receber um salário suficiente para ocorrer com desafogo às suas necessidades e às de sua família. [...]”(LEÃO XIII, 1891)

Sob um caráter protetivo, dispunha que “o número de horas de trabalho diário não deve exceder a força dos trabalhadores, e a quantidade de repouso deve ser proporcionada à qualidade do trabalho, às circunstâncias do tempo e do lugar, à compleição e saúde dos operários.” (LEÃO XIII, 1891)

De igual forma, previa também a proteção da criança e da mulher, estabelecendo que estes não deveriam ser submetidos às mesmas quantidades de trabalho a que um homem é submetido, considerando a fragilidade destes. Estabelece, ainda, que a criança não deve ser submetida ao trabalho enquanto não possuir idade que lhe confira um desenvolvimento físico, intelectual e moral, sob pena de lhe retirar a oportunidade de educação, o que não se admite na Encíclica.

Sobre a importância deste documento, Altafin assevera:

A Encíclica não inovou como apoio a ideologia liberal, dominante como base do capitalismo, nem a ideologia socialista, então emergente e que se imporia, ditatorialmente, na Rússia de 1917; abstraídos os princípios cristãos da convivência humana, ressaltados no documento, neste, podemos encontrar três fundamentos mais de natureza jurídica e política. São eles: a) reconhecimento do direito de propriedade, de acordo com o Direito Natural Teleológico; b) embora iguais perante Deus, na sociedade, os homens não têm o mesmo nível; c) o Estado deve atuar nas questões sociais. (ALTAFIN, 2007, p. 25)

A Encíclica estabelece de forma inequívoca e clara sobre a imperiosa necessidade de não haver o “massacre” de uma parte da sociedade para a felicidade da outra. Salienta a importância de buscar a vida e a felicidade de todos os cidadãos, conforme se constata na seguinte passagem:

Ora o que torna uma nação próspera, são os costumes puros, as famílias fundadas sobre bases de ordem e de moralidade, a prática e o respeito da justiça, uma imposição moderada e uma repartição equitativa dos encargos públicos, o progresso da indústria e, do comércio, uma agricultura florescente e outros elementos, se os há, do mesmo género: todas as coisas que se não podem aperfeiçoar, sem fazer subir outro tanto a vida e a felicidade dos cidadãos. Assim como, pois, por todos estes meios, o Estado pode tornar-se útil às outras classes, assim também pode melhorar muitíssimo a sorte da classe operária, e isto em todo o rigor do seu direito, e sem ter a temer a censura de ingerência; porque, em virtude mesmo do seu ofício, o Estado deve servir o interesse comum. E é evidente que, quanto mais se multiplicarem as vantagens resultantes desta acção de ordem geral, tanto menos necessidade haverá de recorrer a outros expedientes para remediar a condição dos trabalhadores. (LEÃO XIII, 1891)

Desta forma, notadamente em razão do poderio exercido pela igreja católica à época, extrai-se do conteúdo da Encíclica Papal, um importante instrumento que contribuiu para a mudança das condições de trabalho até então vivenciadas, adequando-se aos problemas enfrentados pela sociedade em pleno desenvolvimento do capitalismo no final do século XIX.

Assim, verifica-se uma grande importância do Cristianismo para a atual conjuntura do Direito do Trabalho atualmente consolidado, sendo a Encíclia Rerum Novarum, o documento religioso com bases cristãs, influenciador da eclosão e manutenção dos direitos sociais do trabalho.

9.3 Mecanismos jurídicos para concretização da garantia de solução pacífica das controvérsias em busca da paz

O preâmbulo constitucional dispõe que o Estado Democrático é destinado a assegurar [...] a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias [...] (BRASIL, 1988)

Decerto que a busca por uma solução pacífica das controvérsias possui como objetivo alcançar a paz, para que a sociedade se mantenha harmônica.

No intuito de se dar maior efetividade e publicidade aos mecanismos de promoção da paz a serem utilizados em todo âmbito judicial, editou-se a Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça (2010), buscando a resolução dos conflitos através dos institutos da conciliação, mediação e arbitragem.

Tais institutos são mecanismos utilizados como meio mais ágil na solução de conflitos, objetivando, primordialmente, o restabelecimento da paz, a qual figura como o fundamento dos institutos da conciliação, mediação e arbitragem.

Como valor constitucionalmente consagrado, o objetivo pela busca da paz se encontra presente, além do preâmbulo, em inúmeros dispositivos constitucionais. Apenas para corroborar esta assertiva, pode-se citar o art. 4º, VI, da Constituição Federal, o qual prevê que “A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: [...] VI - defesa da paz;” (BRASIL, 1988) De igual modo, o Art. 21 dispõe que “compete à União: [...] II - declarar a guerra e celebrar a paz;” (BRASIL, 1988). Além destes, pode-se citar inúmeros outros dispositivos constitucionais que dispões sobre a paz, valor originariamente cristão, tal como se pode ver no art. 49, II; art.84, art.91 e art. 136.

A fim de estabelecer um paralelo e se comprovar a anterioridade do Cristianismo diante do Direito, e, para assim, poder-se afirmar que a ordem jurídica busca os seus anseios principais em fundamentos cristãos, apresentar-se-á passagens bíblicas que demonstram a paz como fundamento do Cristianismo.

Inicialmente, afirma-se que Jesus Cristo pregava a paz e a pacificação de conflitos. Tal assertiva pode ser facilmente comprovada em trechos bíblicos como, por exemplo, no livro de Mateus 5, no versículo 9, Jesus, ensinando as multidões, afirmava que “bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.” (Mt 5, 9)

Em Gálatas 5, versículo 22, tem-se expressamente a paz como fruto do Espírito, dispondo que “o fruto do Espírito é: amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança.” (Gl 5, 22)

De igual forma, tem-se o clamor pela paz nas páginas das Escrituras Sagradas, conforme se verifica em Colossenses 3, versículo 15, onde o autor deseja que “a paz de Deus, para a qual também fostes chamados em um corpo, domine em vossos corações; e sede agradecidos.” (Cl 3, 15)

No que tange a forma de resolução de conflitos, o próprio Jesus já ensina que a ele não compete o julgamento das questões humanas e em seguida sugere que entre eles mesmos se julgassem o que fosse justo, de forma a se buscar uma conciliação, um acordo para resolução do conflito instaurado. É o que se vê no livro de Lucas, capítulo 12, versículos 13, 14 e 57: “E disse-lhe um da multidão: Mestre, dize a meu irmão que reparta comigo a herança. Mas ele lhe disse: Homem, quem me pôs a mim por juiz ou repartidor entre vós? E por que não julgais também por vós mesmos o que é justo?” (Lc 12, 13-14, 57)

No livro de Mateus 5, nos versículos 23 ao 26, tem-se expresso ensinamento aos cristãos para que procurem a conciliação com o próximo, conforme se constata na seguinte narrativa:

Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta. Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão. Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil. (Mt5, 23-26)

Desta forma, pode-se claramente observar, através das citações ora realizadas, que a paz figura como objetivo do Cristianismo bem como dos institutos apresentados. Pode-se observar também que Jesus, em sua passagem nesta Terra, procurou ensinar aos homens acerca de importância destes procurarem conciliar entre eles mesmos, de forma a buscarem o que for justo entre eles.

Assim, entende-se como demonstrada a relação entre os mecanismos de conciliação, mediação e arbitragem e o Cristianismo, aliados para obtenção do preceito constitucional de solução pacífica das controvérsias para a garantia de uma sociedade harmônica dentro do Estado Democrático de Direito.

9.4 O dever cristão de solidariedade como fundamento da Seguridade Social

O art. 3º da Constituição Federal, em seu inciso dispõe que “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Como forma de colocar em prática a solidariedade presente na constituição como objetivo fundamental da República, criou-se o sistema de seguridade social, que, segundo Sérgio Pinto Martins, é

Um conjunto de princípios, de regras e de instituições destinado a estabelecer um sistema de proteção social aos indivíduos contra contingências que os impeçam de prover as suas necessidades pessoais básicas e de suas famílias, integrado por ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, visando assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. (MARTINS, 2008, p. 19)

É através da Seguridade Social que são estabelecidos inúmeros auxílios e benefícios previdenciários a toda população brasileira.

No mesmo sentido, Wladimir Novaes Martinez defende que a “seguridade social é técnica de proteção social, custeada solidariamente por toda a sociedade segundo o potencial de cada um, propiciando universalmente a todos o bem-estar das ações de saúde e dos serviços assistenciários em nível mutável, conforme a realidade sócio-econômica, e os das prestações previdenciárias”. (MARTINEZ, 2001, p. 390)

Assim, veja-se a sociedade, através do consumo de produtos e serviços, onde estão embutidas ao preço final as devidas contribuições para a seguridade social, contribui, por meio dos indivíduos, ainda que indiretamente, para o sistema de Seguridade Social, mesmo que nem todos os integrantes desta sociedade usufruam de todos ou nenhum dos benefícios previdenciários.

Sobre a solidariedade, bem acentua Sérgio Pinto Martins:

A solidariedade pode se considerada um postulado fundamental do Direito da Seguridade Social, previsto implicitamente inclusive na Constituição. Sua origem é encontrada na assistência social, em que as pessoas faziam uma assistência mútua para alguma finalidade e também com base no mutualismo, de se fazer um empréstimo ao necessitado. É uma característica humana, que se verifica no decorrer dos séculos, em que havia uma ajuda genérica ao próximo, ao necessitado. [...] Ocorre solidariedade na Seguridade Social quando várias pessoas economizam em conjunto para assegurar benefícios quando as pessoas do grupo necessitarem. As contingências são distribuídas igualmente a todas as pessoas do grupo. Quando uma pessoa é atingida pela contingência, todas as outras continuam contribuindo para a cobertura do benefício do necessitado. (MARTINS, 2008, p. 51-52)

É por meio da solidariedade que os benefícios e auxílios previdenciários são disponibilizados a quem deles necessite, de forma que há uma organização da sociedade no intuito de amparar àqueles que precisam por motivos inerentes à vontade.

Desta feita, mister se faz ressaltar que a solidariedade que norteia o sistema da seguridade social, é, por outra via, um grande princípio cristão.

No tocante a referido valor, a fim de se estabelecer uma relação da solidariedade como fundamento bíblico, e como princípio justificador e sustentador da Previdência Social, pode-se citar a seguinte passagem bíblica contida no livro de Eclesiastes 4, versículos 9 e 10:

Melhor é serem dois do que um, porque têm melhor paga do seu trabalho. Porque se um cair, o outro levanta o seu companheiro; mas ai do que estiver só; pois, caindo, não haverá outro que o levante. (Ec 4, 9-10)

Logo, pode-se afirmar a solidariedade impondo-se a toda sociedade como dever de participar pessoalmente nas necessidades e sofrimentos alheios, dever este notadamente consagrado pela Doutrina Cristã. (RAMOS, 2010).

Marcelo Maciel Ramos defende que esta solidariedade, valor tão proclamado nos dias atuais, nada mais é que um desdobramento de dever cristão como a caridade, senão veja-se:

[...] a solidariedade tão proclamada nos dias atuais não é mais que o desdobramento do dever cristão de caridade, a impor juridicamente a corresponsabilidade do todo social para com os mais necessitados. Nesse sentido, é estabelecida e garantida pelo direito uma série de auxílios e benefícios aos mais carentes. (RAMOS, 2010, p. 70)

Fácil se torna concluir que este valor se impõe a toda sociedade, através de normas estabelecidas no ordenamento jurídico brasileiro, e é possível encontrar seus fundamentos lá no Cristianismo, que trouxe a toda humanidade o dever de amparar o seu próximo e prestar-lhe assistência sempre que necessitar. Revela-se como sendo um dever pessoal, e, também, uma obrigação do Estado, sendo certo que, tais garantias, são previstas e reguladas no Estado Brasileiro através do sistema da seguridade social.

9.5 O preceito cristão de igualdade como fundamento constitucional para consolidação do Direito Internacional

Inaugurando a Constituição Federal, “a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional [...]” (BRASIL, 1988) aparece descrita no preâmbulo.

Por sua vez, o art. 3º da Constituição Federal, ao estabelecer os objetivos da República, prevê em seu inciso IV, o de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” (BRASIL, 1988, grifo nosso)

Igualdade, sociedade fraterna e sem preconceitos, no âmbito interno e internacional, são descrições que nem sempre estiveram presentes no campo do Direito. Para chegar a este ideal, afirma-se o Cristianismo como um fundamento histórico de grande importância.

Nos moldes já demonstrados no decorrer deste trabalho, é sabido que ao contrário do que comumente pensado pelas pessoas, o Cristianismo proporcionou, no contexto ocidental, uma separação entre o Estado e religião, apresentado ambos como esferas distintas.

Nos primórdios da civilização ocidental, a religião era a senhora de tudo: da sociedade, do governo, do Estado, do Direito. O ódio contra o estrangeiro era obrigatório e a vida se resumia, em absoluto, a questões religiosas.

Todavia, esta situação não perduraria eternamente. Começava-se a difundir em todo o Ocidente a doutrina e propagação dos valores e ideias apresentados pelo Cristianismo. Através da mensagem de Jesus Cristo, passou-se a ensinar a igualdade entre todos os povos, apresentando-se um Deus único, um Deus de amor e de paz, que aceita a todos, em iguais condições, como filhos. Corroborando tal assertiva, tem-se a passagem contida em Colossenses 3, versículo 11, onde fala que no Reino de Deus “não há grego, nem judeu, circunciso, nem incircunciso, bárbaro, cita, servo ou livre; mas Cristo é tudo, e em todos.” (Cl 3, 11)

Sobre a dimensão revolucionária que o Cristianismo causou em toda a sociedade Ocidental, Fustel de Coulanges relata aquela mesma sociedade acima transcrita, após a difusão dos ensinamentos cristãos:

Esse princípio era tão extraordinário e tão inesperado que os primeiros discípulos tiveram um momento de hesitação; pode-se ver nos Atos dos Apóstolos que muitos deles se recusaram a princípio a propagar a nova doutrina fora do povo no qual nascera. Seus discípulos pensavam, como os antigos judeus, que o Deus dos judeus não queria ser adorado por estrangeiros; como os romanos e os gregos dos tempos anteriores, eles acreditavam que cada raça tinha seu deus, que propagar o nome e o culto desse deus era o mesmo que privar-se de um bem próprio e de um protetor especial, e que tal propaganda era ao mesmo tempo contrária ao interesse e ao dever. Mas Pedro replicou a seus discípulos: “Deus não faz diferenças entre os gentios e nós.” — São Paulo gostava de repetir esse grande princípio em todas as ocasiões e sob todas as formas: “Deus — diz ele — abre aos gentios as portas da fé. Não será ele Deus senão dos judeus? Não, certamente, pois o é também dos gentios... Os gentios são chamados à mesma herança que os judeus.” Havia em tudo isso algo de muito novo, porque em toda parte, desde os primeiros tempos da humanidade, concebera-se a divindade como ligada especialmente a uma raça. [...] O cristianismo, surgindo depois de todos esses progressos do pensamento e das instituições, apresentou à adoração de todos os homens um Deus único, um Deus universal, um Deus que era de todos, que não tinha mais povo escolhido, e que não distinguia nem raças, nem famílias, nem estados. Para esse Deus não havia mais estrangeiros. O estrangeiro não profanava mais o templo, não maculava mais o sacrifício apenas com sua presença. O templo foi aberto para todos os que crêem em Deus. O sacerdócio deixou de ser hereditário, porque a religião não era mais um patrimônio. O culto não foi mais mantido em segredo; os ritos, as orações, os dogmas não se mantiveram mais escondidos; pelo contrário, passou a existir um ensinamento religioso, que não somente se dá, mas que se oferece, que se leva aos lugares mais afastados, que vai em busca dos mais indiferentes. O espírito de propaganda substituiu a lei de exclusão. (COULANGES, 1961, p. 336-337)

Por fim, após a consolidação do Cristianismo, retrata-se uma nova sociedade, uma nova forma de ver o mundo, conforme se vê na seguinte transcrição:

Entre os povos, a religião não mandava mais o ódio; não obrigou mais o cidadão a detestar o estrangeiro; pelo contrário, pertencia à sua essência ensinar que ele tinha para com o estrangeiro, para com o inimigo, deveres de justiça, e até de benevolência. As barreiras entre os povos e as raças ficaram assim diminuídas; desapareceu o pomoerium — “Jesus Cristo — diz o apóstolo — derrubou a muralha da separação e da inimizade.” — “Os membros são muitos — diz ele ainda — mas todos fazem um só corpo. Não há nem gentio, nem judeu; nem circuncidados, nem incircuncisos; nem bárbaro, nem cita. Todo o gênero humano está disposto na unidade.” — Passou-se até a ensinar aos povos que todos descendiam de um mesmo pai comum. Com a unidade de Deus, a unidade da raça humana apareceu aos espíritos; e desde então passou a ser necessidade da religião proibir o homem de odiar os outros homens. (COULANGES, 1961, p. 337-338)

Gerson Marcos Morgado, fazendo referência a Andreotti, coaduna com a importante contribuição do Cristianismo para o reconhecimento do estrangeiro, desvinculando a visão de ódio entre os povos e o reconhecimento destes como iguais:

A partir do cristianismo, todo e qualquer ser humano passou a ser visto e reconhecido como pessoa, fossem homens, mulheres, escravos, crianças, estrangeiros ou até inimigos. Aduz Andreotti [...] que o ensinamento de Cristo representou um salto qualitativo enorme frente ao determinismo da polis antiga, onde, segundo o referido pensador, a religião nunca mais legitimou o ódio entre os povos, nem entre inimigos, nem preceituou ao cidadão como deve detestar o estrangeiro ou o inimigo. Pelo contrário, passou a ter por essência ensinar ao homem que tem deveres de justiça e até de benevolência para com o estrangeiro e até para com o inimigo, donde possivelmente o suposto embrião da concepção humanitária do respeito à dignidade dos presos inimigos capturados em combate, positivada posteriormente na Convenção de Genébra. (MORGADO, 2014)

No livro de Levítico 19, versículos 33 e 34 estabelece que “como o natural, entre vós será o estrangeiro que peregrina convosco; amá-lo-eis como a vós mesmos, pois estrangeiros fostes na terra do Egito. Eu sou o Senhor, vosso Deus.” (Lv 19, 33-34). Seguindo este princípio bíblico, a Constituição Federal prevê a igual desde o seu preâmbulo e a apresenta como objetivo do Estado Democrático de Direito.

Desta feita, pode-se concluir que o Cristianismo atuou como fator fundamental para a mudança de visão das sociedades em relação aos estrangeiros, mudando, também, por conseguinte, as formas como as relações internacionais se dariam a partir desta mudança. Embora separados territorialmente, os estrangeiros compunham, sob a ótica da mensagem cristã, um só povo, pois todos pertencem a Deus, e, por consequência, devem ser tratados em igualdade com as pessoas do mesmo povo. Desta igualdade, facilitam-se as relações comerciais, os acordos de paz e a convivência pacífica entre diferentes povos e nações.

Daí, pode-se afirmar a notável influência do valor cristão de igualdade presente no atual organização estatal brasileira.

9.6 A base cristã da dignidade da pessoa humana presente no sistema punitivo brasileiro

Como fator justificante da abordagem do presente assunto sob a perspectiva do Estado Democrático, necessário salientar que se pretende demonstrar como o fundamento constitucional de dignidade de pessoa humana esteve presente nos primórdios da fundação do sistema punitivo adotado pelo Brasil.

Quer-se demonstrar que através da visão cristã, houve a discriminalização das penas perpétuas, cruéis e de morte, e a defesa da vida, da dignidade, do perdão, misericórdia e tolerância. Por certo, pode-se perfeitamente afirmar que esta visão fora adotada pelo sistema punitivo brasileiro.

Antes de adentrar especificamente na análise do sistema punitivo brasileiro, importante se faz realizar uma pequena abordagem geral sobre a forma de punição adotada em momentos passados.

A primeira codificação que previu o instituto das penas foi a Lei do Talião. Embora nela houvesse a regulamentação da defesa privada, buscou-se estabelecer uma proporcionalidade no tocante às penas. Fundou-se a regra do “olho por olho, dente por dente”, com o escopo de se evitar a ocorrência da vingança totalmente desproporcional à ofensa.

Jesus veio e revolucionou o sistema de penas até então adotado em todas as épocas anteriores ao Cristianismo. Com um discurso pautado no amor, apresenta a toda humanidade a noção de dignidade inerente a todo indivíduo e, em seu discurso, um valor sublime: o perdão. Como desdobramento do perdão, surge em cena o dever de misericórdia para com o próximo e a imposição da tolerância com os erros alheios.

No intuito de confirmar a adoção pelo sistema punitivo brasileiro aos valores e deveres cristãos, extraem-se da Bíblia Sagrada as seguintes passagens que demonstram a forma pela qual Jesus Cristo determinou a aplicação de penas a delitos praticados. Em Mateus 5, versículos 38 ao 44, Jesus Cristo, ao ser questionado, apresenta um novo sistema punitivo a ser aplicado por todos aqueles que nEle creem:

Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra;E, ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa;E, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pedir, e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes. Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus. (Mt 5, 38-44)

Desta passagem pode-se claramente verificar que Jesus condena a vingança, pois é conhecedor dos seres humanos e sabe que a vingança está profundamente enraizada na essência destes. Contudo, a justiça de Deus é misericórdia.

Em outra ocasião, na passagem descrita em João 8, versículos 5 ao 7, Jesus estava no Templo quando se aproximou dele os escribas e fariseus, trazendo juntamente com eles uma mulher que havia sido apanhada em adultério. De pronto, questionaram a Jesus o que deviam fazer com aquela mulher. A resposta de Jesus foi a seguinte:

E na lei nos mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes? Isto diziam eles, tentando-o, para que tivessem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia com o dedo na terra. E, como insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela (Jo 8, 5-7)

Mais uma vez se vê presente no discurso de Jesus a supremacia do perdão e da tolerância no lugar da vingança. A mensagem cristã ensina que ao homem é necessário conceder o perdão, da mesma forma que Jesus perdoou a humanidade. Como prova disso, pode-se citar o versículo 13 do capítulo 3 do livro de Colossenses, o qual diz que “suportando-vos uns aos outros, e perdoando-vos uns aos outros, se alguém tiver queixa contra outro; assim como Cristo vos perdoou, assim fazei vós também.”

De igual forma, o sistema processual penal brasileiro não permite a ocorrência de vingança pessoal, penas cruéis, de morte, de banimento, perpétuas. Muito pelo contrário, ao ofensor é garantida uma série de direitos que visam proteger a sua integridade e dignidade, buscando a ressocialização do indivíduo.

No que tange a inclusão dos valores do perdão e da tolerância no sistema de penas do Ocidente, Marcelo Maciel Ramos pontua:

Ademais, os valores do perdão e da tolerância subjazem fortemente nos espíritos do Ocidente, promovendo a proliferação das penas educativas e ressocializantes em detrimento das penas perpétuas e capitais, o que se comprova facilmente mediante um rápido exame dos ordenamentos jurídicos ocidentais. (RAMOS, 2010, p. 70)

Pautado nos valores cristãos, pode-se citar também um instituto do Direito Penal que tem produzido resultados extremamente benéficos ao objetivo de ressocialização dos condenados. Trata-se da APAC, Associação de Proteção e Assistência aos Condenados, um método de cumprimento de pena, que, pelos resultados apresentados, vem reduzindo drasticamente o índice de reincidência.

Objetiva-se consolidar um método que proporcionará ao indivíduo uma verdadeira ressocialização que o permita retornar à sociedade para contribuir no desenvolvimento nacional, e sem praticar novos delitos que interfiram na ordem social. Coaduna com o objetivo da República previsto no art. 3º, III, da Constituição Federal, buscando erradicar a marginalização, no sentido de evitar uma reincidência.

Segundo Mário Ottoboni, citado por Antonio Carlos da Rosa Silva Junior, a APAC é “um método de valorização humana, portanto de evangelização, para oferecer ao condenado condições de recuperar-se e com o propósito de proteger a sociedade, socorrer as vítimas e promover a justiça. [...] baseada na fórmula do “velho homem”, proposta pelo apóstolo Paulo, uma das filosofias da APAC é “matar o criminoso e salvar o homem” (OTTOBONI apud SILVA JUNIOR, 2014, p.5)

O autor, mais uma vez citando Mário Ottoboni, prossegue explicando como funciona o método e apresenta os 12 elementos nos quais a APAC está fundada, senão veja-se:

1) participação da comunidade – reconhecimento de que toda a sociedade é responsável pela integridade do processo de ressocialização; 2) recuperando ajuda recuperando – despertar de regras de boa convivência social, ajudando-o “a perceber que a raiz do bem e do mal está no coração” ; 3) trabalho – embora o trabalho, por si só, não seja capaz de recuperar, o mesmo é incentivado, inclusive, de forma diversa para os cumpridores dos diversos tipos de regimes penais; 4) a religião e a importância de se fazer a experiência de Deus – “é preciso restabelecer a confiança no ser humano que está preso, fazê-lo conhecer um Deus presente na história, por meio da presença atuante e coerente do voluntário, não somente por palavras, mas principalmente por gestos concretos de misericórdia, que revelam o verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo, que disse: ‘Eu estive preso e você me visitou’ (cf. Mt 25,36)”; 5) assistência jurídica – a situação processual do condenado muito o preocupa e, por isso, é imperiosa essa assistência; 6) assistência à saúde – profissionais da saúde devem ser convidados a integrar a equipe de voluntários, livrando o apenado de mais essa preocupação; 7) valorização humana – “Chamá-lo pelo nome, conhecer sua história, interessar-se por sua vida, visitar sua família, atendê-lo em suas justas necessidades, (...); essas e outras medidas irão ajudá-lo a descobrir que nem tudo está perdido, uma vez que qualquer dificuldade criada pelo homem poderá ser superada pelo próprio homem com a ajuda de Cristo, em quaisquer circunstâncias”; 8) a família – transformar a família do recuperando o ajudará em seu retorno à convivência comunitária; 9) o voluntário e o curso para sua formação – o voluntariado é fundamental para o êxito do processo, e é baseado na graciosidade dos serviços prestados e no amor ao recuperando; 10) Centro de Reintegração Social (CRS) – visa permitir que o apenado cumpra os regimes semi-aberto e aberto no próprio estabelecimento; 11) mérito – relevante para a progressão de regime prisional, nos termos da lei; 12) Jornada de Libertação com Cristo – busca, através da parábola do filho pródigo, levar o recuperando à reflexão, indicando uma nova perspectiva de vida, promovendo, “nessa etapa, o encontro do recuperando consigo mesmo, com Deus e com o semelhante, para voltar aos braços do Pai com o coração pleno de amor”. (OTTOBONI apud SILVA JUNIOR, 2014, p.5-6)

Diante dos elementos apresentados, constata-se que a metodologia da APAC está fundada em valores religiosos, notadamente os valores apresentados pela Bíblia, a qual é utilizada como fonte dos princípios fundamentais da instituição (SILVA JUNIOR, 2014)

Estabelecendo-se uma relação com os fundamentos bíblicos e a metodologia da APAC, têm-se inúmeras passagens bíblicas. Dentre elas, pode-se citar a passagem contida em Mateus 25, nos versículos 31 ao 41, revelando-se como fundamento ao elemento 1, qual seja, a participação da comunidade:

E quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os santos anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória; E todas as nações serão reunidas diante dele, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas; E porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda. Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver. Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber? E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? ou nu, e te vestimos? E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te? E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. (Mt 25, 31-41)

Como fundamento aos elementos 4 e 12, os quais estão ligados a experiência com Deus, pode-se citar a passagem presente no livro de Atos dos Apóstolos, no capítulo 16 e versículos 16 ao 32, onde narra a trajetória de dois apóstolos na cadeia e como foi a experiência que eles tiveram com Deus diante de uma postura firme e fiel ao lado de Cristo:

E aconteceu que, indo nós à oração, nos saiu ao encontro uma jovem, que tinha espírito de adivinhação, a qual, adivinhando, dava grande lucro aos seus senhores. Esta, seguindo a Paulo e a nós, clamava, dizendo: Estes homens, que nos anunciam o caminho da salvação, são servos do Deus Altíssimo. E isto fez ela por muitos dias. Mas Paulo, perturbado, voltou-se e disse ao espírito: Em nome de Jesus Cristo, te mando que saias dela. E na mesma hora saiu. E, vendo seus senhores que a esperança do seu lucro estava perdida, prenderam Paulo e Silas, e os levaram à praça, à presença dos magistrados. E, apresentando-os aos magistrados, disseram: Estes homens, sendo judeus, perturbaram a nossa cidade, E nos expõem costumes que não nos é lícito receber nem praticar, visto que somos romanos. E a multidão se levantou unida contra eles, e os magistrados, rasgando-lhes as vestes, mandaram açoitá-los com varas. E, havendo-lhes dado muitos açoites, os lançaram na prisão, mandando ao carcereiro que os guardasse com segurança. O qual, tendo recebido tal ordem, os lançou no cárcere interior, e lhes segurou os pés no tronco. E, perto da meia-noite, Paulo e Silas oravam e cantavam hinos a Deus, e os outros presos os escutavam.E de repente sobreveio um tão grande terremoto, que os alicerces do cárcere se moveram, e logo se abriram todas as portas, e foram soltas as prisões de todos. E, acordando o carcereiro, e vendo abertas as portas da prisão, tirou a espada, e quis matar-se, cuidando que os presos já tinham fugido. Mas Paulo clamou com grande voz, dizendo: Não te faças nenhum mal, que todos aqui estamos. E, pedindo luz, saltou dentro e, todo trêmulo, se prostrou ante Paulo e Silas. E, tirando-os para fora, disse: Senhores, que é necessário que eu faça para me salvar? E eles disseram: Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo, tu e a tua casa. E lhe pregavam a palavra do Senhor, e a todos os que estavam em sua casa. (At 16, 16-32)

Apresentando os significativos resultados da metodologia da APAC, Ottoboni afirma que referida associação “uma obra verdadeiramente cristã” (OTTOBONI, apud SILVA JUNIOR, 2014, p. 7)

Antonio Carlos da Rosa Silva Junior prossegue apresentando a relação entre o método APAC e o Cristianismo, assim expondo:

Ademais, reconheça-se, o discurso cristão de valorização da vida humana, compaixão para com os necessitados e respeito devido à instituição familiar são alguns exemplos dos impactos causados pelo cristianismo sobre a humanidade. No mesmo passo, observamos que os ensinos cristãos, segundo alguns estudiosos, reitere-se, são fundamentais para a ressocialização, pois viabilizam uma “nova vida”, composta de novos comportamentos (reflexo de novos valores) por parte dos reclusos que os seguem. Dessa forma, se os valores reinantes na sociedade forem contrários aos ensinos cristãos, os que gozam da “nova vida” buscam o cumprimento desses em detrimento daqueles. Seguir a Cristo e Seus ensinos os torna transformadores de uma sociedade desigual e corrupta. (SILVA JUNIOR, 2014, p.7)

Prossegue, fundamento suas conclusões no posicionamento de José Horácio Meirelles Teixeira, o qual defende que “a liberdade, a igualdade, a fraternidade, os direitos inalienáveis da pessoa humana são, e essencialmente, princípios cristãos, hoje colocados como fundamento e limite da ação do Estado, fornecendo e inspirando, ainda, o conteúdo concreto de leis e das Constituições.” (TEIXEIRA apud SILVA JUNIOR, 2014, p.7)

Sobre a importância dos valores religiosos no processo de ressocialização do indivíduo, complementa afirmando que é “imperioso redescobrirmos a força extraordinária dos valores religiosos, a fim de que possamos compreender a complexa realidade da pessoa do [jovem] infrator, a sua dignidade, motivando e facilitando sua ‘repersonalização’.” (SÁ apud SILVA JUNIOR, p. 4, 2014)

Notadamente no âmbito dos Tribunais Brasileiros, cita-se a seguinte passagem extraída de um acórdão proferido pelo egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o qual salienta a importância da religião neste processo de ressocialização, onde se afirma que “a religião é necessária e imprescindível na reeducação do condenado, constituindo um dos fatores decisivos na ressocialização e reinserção deste na convivência com a sociedade [...]” (MINAS GERAIS, 2002)

Destarte, diante de todo o ora apresentado, torna-se evidente a incorporação dos valores e princípios cristãos ao sistema punitivo brasileiro, sendo que tais valores contribuem na formulação de metodologias que contribuem para o êxito das políticas de ressocialização e reeducação dos infratores, atuando na tentativa de concretização do objetivo do Estado Democrático de Direito em erradicar a marginalização e reduzir as desigualdades sociais.

9.7 A liberdade contratual diante do caráter cristão do Direito das obrigações

Notadamente no que se concerne aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, o inciso I, do art. 3º, da Constituição Federal estabelece a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. (BRASIL, 1988)

A liberdade expressa no artigo, abrange, também, a liberdade que os indivíduos possuem para contratar, efetuar os seus negócios jurídicos livremente, comprar, vender, dispor, de forma a se garantir, reflexamente, outro objetivo da República Federativa do Brasil, qual seja, a garantia do desenvolvimento nacional, previsto no inciso II, do art. 3º, da Constituição Federal.

Para regular estas relações, tem-se o Direito das Obrigações, consistente em “um conjunto de normas e princípios reguladores das relações patrimoniais entre um credor (sujeito ativo) e um devedor (sujeito passivo) a quem incumbe o devedor de cumprir, espontaneamente ou coativamente, uma prestação de dar, fazer ou não fazer” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 39-40)

Dentre este conjunto de normas e princípios, far-se-á uma abordagem mais específica acerca dos contratos, fazendo uma análise sobre a convergência deste instituto com o Cristianismo.

Sobre a origem desta relação, Carlos Alberto Bittar Filho (2004), fundamenta o nascedouro dos contratos nos valores ensinados pela doutrina cristã, afirmando que da obrigação do amor e da piedade é que surgiram os contratos, na forma que atualmente são concebidos, os quais visam a igualdade das partes, a livre manifestação da vontade, sendo o Cristianismo influência, inclusive, na forma das penalidades impostas pelo descumprimento contratual. Neste sentido, veja-se:

Assim, em um mundo rígido e duro, o Cristianismo acabou por introduzir o conceito fundamental de caridade. E foi exatamente o Cristianismo que fez com que se adentrasse, no mundo jurídico, a obrigação do amor e da piedade entre os homens (René Savatier).[...] Dessa maneira, inaceitável tornou-se o caráter inteiramente estrito dos contratos. Foi assim que as noções de lesão contratual e de ilegitimidade da usura puderam ganhar corpo, com vistas à proteção da parte prejudicada. De modo geral, aliás, toda exploração do fraco pelo forte passou a representar uma violação não apenas da caridade, mas também da própria justiça, pois que esta e aquela acabaram por confundir-se. (BITTAR FILHO, 2004)

De acordo com Carlos Alberto Bittar Filho (2004), é devido a direta influência do Cristianismo que se cria a necessidade de proteção da parte hipossuficiente do contrato. Através da mensagem cristã se pode extrair os limites do direito do credor, a obrigação de proteger os que estão de boa fé, e de castigar os que agem com malícia, utilizando-se de meio fraudulentos.

No que tange ao posicionamento do autor, defende-se que os deveres civis consubstanciados na disciplina dos contratos, muitas das vezes nada mais são do que um dever moral, impondo aos contratantes a observância de valores com caráter cristãos, no intuito de se proteger a relação obrigacional, conforme assevera na seguinte passagem:

Outrossim, como elegantemente defende Ripert, a regra moral entra no mundo jurídico quando procura encarnar-se numa regra obrigatória de conduta, requisitando auxílio ao poder civil. Destarte, o dever de não fazer mal injustamente aos outros é o fundamento do princípio da responsabilidade civil; o dever de não se enriquecer à custa dos outros, a fonte da ação por enriquecimento ilícito, ou sem causa. Em síntese, converteram-se em obrigações civis os mais imperiosos deveres morais: dever de não prejudicar a outrem, de não se enriquecer injustamente à custa alheia e, em certos casos (verbi gratia, obrigação alimentar, acidentes de trabalho, etc.), de prestar assistência a outrem. (BITTAR FILHO, 2004)

Por fim, ressalta o autor que inevitável é concluir que o ramo do Direito que trata das obrigações, onde se incluem os contratos, buscou suas origens no processo de Cristianização. Explica que a mensagem cristã baseada na obrigação da prática do amor e da caridade, ensejou, no âmbito do Direito das Obrigações, a tutela da parte mais vulnerável do contrato e tornou vinculante todos os pactos, com base no caráter moral da promessa. (BITTAR FILHO, 2004)

Destarte, constata-se que há uma relação do Cristianismo com institutos civis, como os que ora foram tratados, de forma que, direta ou indiretamente, os valores apresentados como deveres aos cristãos acabam por ser impostos como conduta moral a ser observada no âmbito das obrigações, objetivando manter a igualdade na relação obrigacional e a proteção ao hipossuficiente.

Assim, apresentas as influências que os valores cristãos trouxeram para a seara obrigacional do Direito, pode-se afirmar que as relações contratuais atuam como meio de se promover um desenvolvimento nacional sustentável, a fim de se consolidar o objetivo constitucional previsto no art. 3º, II, da Constituição Federal.

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