O Brasil e o preconceito: uma análise teórica e crítica da Lei nº 7.716/89 frente à realidade brasileira

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09/01/2015 às 16:17

Resumo:


  • A Lei 7.716/89, conhecida como "Lei Antipreconceito", foi criada para combater o racismo e outras formas de discriminação em diversos contextos sociais no Brasil, incluindo acesso a empregos, educação e serviços públicos, baseando-se em características como raça, cor, etnia, religião e procedência nacional.

  • Apesar de sua importância, a aplicação prática da lei muitas vezes é limitada, com poucos casos efetivamente levando a condenações, o que pode ser atribuído a dificuldades na obtenção de provas e na interpretação de seus dispositivos.

  • Recentemente, tem havido um aumento nas denúncias de racismo, o que pode indicar uma maior conscientização sobre o problema, embora ainda haja muito a ser feito para garantir a efetividade da lei e a igualdade de tratamento entre os cidadãos brasileiros.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O Brasil é um país dito “de todos”, aqui mais de metade da população brasileira admite que existe preconceito, no entanto menos de cinco por cento da população diz ser preconceituosa. Neste artigo analisaremos a Lei 7716/89 e sua aplicabilidade prática.

INTRODUÇÃO

Uma pesquisa realizada em 2010 no nosso país revelou que 91% dos entrevistados reconheciam que existe preconceito no Brasil, embora só 3% desses se julgavam preconceituosos.

Não há dúvidas de que existe preconceito no Brasil, além das recentes criações de comissões que visam combater essa espécie de crime, constantemente ficamos sabendo por meio da mídia de casos em que crianças, idosos, jovens ou adultos foram vítimas de alguma forma de discriminação.

O preconceito é um mal que atinge pessoas de diversas classes sociais e pessoas com diferentes níveis de instrução.

É bem verdade, que as primeiras leis penais brasileiras puniam aqueles que não eram preconceituosos, no entanto, felizmente, com o passar do tempo o legislador mudou este conceito e passou a criminalizar condutas racistas e preconceituosas.

O que se questiona é: será que em razão dessa cultura que incentivava uma população preconceituosa, o brasileiro hoje tem uma pré-disposição a ser preconceituoso, o que justificaria a criação de tantos crimes desta espécie? Ademais, em razão da lei não ter previsto expressamente hipóteses de bullyng e homofobia, esta necessitaria de reformas urgentes?

Por outro lado, alguns podem defender a idéia de que o legislador não precisa descrever e incriminar toda conduta. Alguns preceitos básicos de convivência e educação são inerentes à própria condição humana de modo que não precisam ser incriminados pelo legislador, pois constituem regras básicas da humanidade. Sob esta ótica, a lei de preconceito (lei 7716/89) e outras já existentes seriam suficientes para punir e incriminar toda forma de preconceito divulgada e praticada hoje em dia.

A verdade é que o nível cultural de um povo se mede pela quantidade de dispositivos penais que este povo possui. Neste trabalho, abordaremos não só a lei 7716/89 em si, no aspecto jurídico e didático, mas também teceremos algumas críticas a essa, bem como comentaremos certos projetos de lei que visam modificar o Código Penal e a própria Lei 7716/89 para que ao final possamos tecer algumas conclusões sobre a efetividade prática da referida lei.

Obviamente não deixaremos de esclarecer alguns conceitos fundamentais para a compreensão da lei, nem deixaremos de abordar algumas discussões penais/processuais que envolvem a mesma.


1DO CONCEITO DE RACISMO, PRECONCEITO E SUAS VARIANTES

         Conforme salientado na nota introdutória deste trabalho, o presente estudo tem como objetivo a análise da lei 7.716/89 que trata basicamente dos crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor. Assim, é fundamental a definição de alguns termos a fim de que o leitor possa compreender melhor o que se falará nos próximos capítulos.

As ideias de racismo e preconceito estão diretamente ligadas aos conceitos de discriminação, raça e etnia.

A palavra “raça” derivada do italianismo razzae este do latim ratio, segundo o dicionário da língua portuguesa, pode ser definida como o conjunto de indivíduos cujos caracteres corporais são semelhantes e se transmitem por hereditariedade.[1]

Etnia, por sua vez, pode ser definida como o agrupamento humano que possui uma estrutura familiar, econômica e social homogênea, e cuja unidade repousa na comunhão de língua cultura e de consciência grupal.[2]

A medicina legal classifica a humanidade basicamente em cinco tipos étnicos fundamentais, quais sejam: tipo caucásico (pele branca), tipo mongólico (pele amarela), tipo negróide (pele negra), tipo indiano (pele amarelo-trigueira) e tipo australóide (pele trigueira).

Embora biologicamente não há que se falar em raça superior, é certo que, conforme se verificará mais adiante, houve na história mundial como um todo um período em que se pregou a superioridade de algumas raças frente a outras o que ensejou inclusive a criação da lei objeto deste trabalho.

Feitas essas breves considerações acerca dos termos raça e etnia, podemos passar à análise dos conceitos de racismo, preconceito e discriminação.

O dicionário Michaelis[3] define preconceito como:

conceito ou opinião formados antes de ter os conhecimentos adequados; superstição que obriga a certos atos ou impedem que eles se pratiquem; antipatia ou aversão a outras raças, religiões, classes sociais etc.        

Em outras palavras, podemos dizer que preconceito é a intolerância, o ódio irracional ou o prejuízo formado antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos.

O professor Christiano Jorge Santos, citando Fabio Medina Osório e Jairo Gilberto Schafer, comenta que “o preconceito representa uma idéia estática, abstrata, pré-concebida, traduzindo opinião carregada de intolerância, alicerçada em pontos vedados na legislação repressiva”.[4]

Discriminar significa diferenciar, distinguir ou separar. No tocante à discriminação racial, podemos defini-la como o “tratamento diferenciado, para pior, dado a pessoas de outra raça”.[5]

A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, promulgada no Brasil pelo Decreto 65.810 de 8 de dezembro de 1969, considera que “discriminação racial” significa

qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de sua vida.

Já o racismo, pode ser conceituado como a doutrina que prega a superioridade de uma raça sobre as demais.

Claude Lévi-Strauss[6] aduz que o racismo pode ser definido como uma doutrina segundo a qual todas as manifestações culturais, históricas e sociais do homem e os seus valores dependem da raça. Ainda, segundo essa doutrina, existe uma raça superior (ariana ou nórdica) que se destina a dirigir o gênero humano.

A declaração da Organização das Nações unidas sobre “A Raça e os Preconceitos Raciais”, de 27 de novembro de 1978, preceitua em seu artigo segundo, in verbis, que:

O racismo engloba ideologias racistas, atitudes motivadas por preconceitos raciais, comportamentos discriminatórios, disposições estruturais e práticas institucionalizadas causadoras de desigualdade racial, bem como a noção falaciosa de que as relações discriminatórias entre grupos são moral e cientificamente justificáveis; manifesta-se através de disposições discriminatórias na legislação e regulamentos, bem como de convicções e actosanti-sociais; compromete o desenvolvimento das suas vítimas, perverte quem o pratica, divide internamente as nações, impede a cooperação internacional e dá origem a tensões políticas entre os povos; é contrário aos princípios fundamentais do direito internacional e, consequentemente, perturba seriamente a paz e a segurança internacionais.

Maria Luiza Tucci Carnieiro ensina que racismo é algo muito mais grave do que apenas uma discriminação ou preconceito racial, uma vez que é uma doutrina que afirma haver relação entre características raciais e culturais, na qual algumas raças são, por natureza, superiores a outras. Afirma ainda a autora, que as principais noções teóricas do racismo moderno derivam das ideias desenvolvidas por Arthur de Gobineau e que o racismo deforma o sentido científico do conceito de raça, utilizando-o para caracterizar diferenças religiosas, linguísticas e culturais[7].

Definidos os conceitos que permeiam todo o conteúdo deste trabalho, o leitor pode estar se perguntando: como se desenvolveu o preconceito e o racismo? De onde eles surgem? Qual o fator ou fatores que contribuíram para a disseminação do preconceito? Essas e outras perguntas serão analisadas no próximo capítulo.


2 DAS POSSÍVEIS ORIGENS DO PRECONCEITO E DO RACISMO

2.1 DA QUESTÃO HISTÓRICA E ANTROPOLÓGICA

Numa concepção cristã, todos os humanos descenderam de um único casal criado por Deus, Adão e Eva. Estes tiveram filhos, povoaram a terra e assim seriam os originadores de todas as raças e etnias existentes no mundo.

Para uma concepção evolucionista, embora por muito tempo tenha se acreditado que cada tipo étnico tenha se desenvolvido independentemente, o que justificaria a existência dos chamados “genes brancos”, “genes negros” ou “genes amarelos”, estudos mais recentes comprovam que brancos, negros, índios e amarelos são todos parentes. Apesar das diferenças de cor e de traços, cada dia mais cientistas apostam na tese de que somos descendentes de um único ancestral, que há dez mil anos deixou a África para colonizar o mundo.

Os dois maiores especialistas no assunto, os geneticistas André Langaney, chefe do laboratório de Biometria de Genética da Universidade de Genebra e o célebre italiano Luigi Luca Cavalli-Sforza, após anos de pesquisas puderam afirmar que jamais encontraram genes que pudessem ser considerados característicos de uma única população, por mais isolada que ela fosse. Ou seja, os três bilhões de componentes do patrimônio genético são compartilhados pelos mais de sete bilhões de homens que ocupam a terra.

Tanto Langaney quanto Sforza puderam concluir que se existem diferenças genéticas entre os grupos étnicos, elas estão somente na frequência com que cada gene ou grupos de genes se apresentam nas diversas populações. Uma simples questão de clima poderia ser a responsável pelo fato dos etíopes terem pele escura e os belgas terem pele clara. Langaney explica que, do ponto de vista bioquímico, por exemplo, não existem classificações como brancos, negros e amarelos: apenas pessoas com menos ou mais melanina. É essa substância, presente nas camadas profundas da epiderme, que responde pela coloração da pele, dos cabelos e dos olhos. Quanto mais melanina, mais escura a pele.

Assim, em que pese sejamos todos descentes de um mesmo ancestral e o fato de sermos “brancos” hoje não impede que nossas futuras gerações sejam “negras”, o que nos tornam todos iguais. Mas então como surge o preconceito e porque determinados grupos étnicos tornaram-se alvos constantes dessa prática?

Os primeiros estudos antropológicos somente começaram a ser desenvolvidos no século XVI na Europa, época em que a mesma foi invadida por escritos e crônicas a respeito dos povos até então desconhecidos. Em resumo, tais escritos giravam em torno de afinidades e diferenças entre os homens e seus mundos sociais e culturais, nos quais considerações precipitadas e idéias preconcebidas eram constantes.

Os homens da Renascença desenvolvem a denominada técnica do estranhamento que significa a perplexidade diante de uma cultura diferente. Segundo os professores Olney Queiroz Assis e Vitor Frederico Kümpel, essa perplexidade implica em reconhecer que algo, antes considerado natural, passa a ser problemático.[8]

Da técnica do estranhamento, derivam duas ideologias: a) o fascínio pelo estranho que significa enaltecer a cultura das sociedades primitivas, e a b) recusa do estranho que significa censurar e excluir tudo o que não seja compatível com a cultura europeia.

Essa segunda ideologia é a que especialmente nos interessa uma vez que muitos de seus idealizadores fizeram comentários desvalorizando outros povos, os quais serviram para dogmatizar preconceitos, justificar a colonização e suas práticas violentas, submeter os negros à escravidão e fundar doutrinas racistas.[9]

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Stanley, no século XIX, chegou a afirmar que os africanos eram “macacos de um jardim zoológico”. Hegel, também no século XIX, em seu livro Introdução à história da filosofia, assevera que os nativos africanos viviam em estado de selvageria e em situação deplorável, sendo que suas religiões não passavam de meras superstições razão pela qual vacas e macacos seriam adorados.

Ainda que por essa simples análise superficial, podemos perceber que a ideologia da recusa do estranho forneceu uma justificativa para a desvalorização de determinados povos e para negar humanidade aos negros africanos, submetendo-os ao regime de escravidão e embora as concepções racistas sejam um fenômeno antigo, sua arquitetura teórica tem início no final do século XIX com o francês Gobineau, considerado o fundador da teoria racista.

Basicamente, as teorias racistas pretendem provas que: a) existem raças; b) que as raças são biológicas e geneticamente diferentes; c) que há raças atrasadas e adiantadas, inferiores e superiores; d) que as raças atrasadas e inferiores não são capazes de desenvolvimento intelectual e estão naturalmente destinadas ao trabalho manual, pois sua razão é muito pequena e não conseguem compreender as ideias mais complexas e avançadas; e) que as raças adiantadas e superiores estão naturalmente destinadas a dominar o planeta e que, se isso for necessário para seu bem, têm o direito de exterminar as raças atrasadas e inferiores; f) que, para o bem das raças inferiores e das superiores, deve haver segregação racial (separação dos locais de moradia, de trabalho, de educação, de lazer, etc.), pois a não segregação pode fazer as inferiores arrastarem as superiores para o seu baixo nível, assim como fazer as superiores tentarem inutilmente melhorar o nível das inferiores.[10]

As teorias racistas não são cientificas e sim falsas e irracionais, pois implicam práticas culturais, econômicas, sociais e políticas para justificar a violência contra seres humanos. Ainda que a ciência moderna conteste a existência de raças e a superioridade de umas sobre as outras, infelizmente é possível notar que a doutrina racista continua em evidência uma vez que a mesma além de ter sido o “carro-chefe” para implantação de determinadas políticas e regimes (à exemplo do que ocorreu na Alemanha com o nazismo), constantemente somos informados de situações em que determinada pessoa ou grupo foi discriminado por motivos banais tais como a cor da pele, a vestimenta ou a religião que segue. 

2.2 O NEGRO E A ESCRAVIDÃO

Embora a lei 7.716 de 1989 não tenha sido criada especificamente para proteger determinada “raça”, é certo que até hoje os negros são os que mais sofrem com práticas racistas e preconceituosas razão pela qual se fez necessário a inclusão deste tópico no presente estudo a fim de que pudéssemos compreender melhor algumas questões legislativas que serão abordadas mais adiante.

Em 2010, o Brasil contava com uma população de aproximadamente 190.755.799 habitantes, dos quais 50,7% (cerca de 97 milhões de pessoas) se declaravam negros os pardos. Não obstante a superioridade numérica dos negros no Brasil e o fato do preconceito ser algo velado e subjetivo, as consequências dele são evidenciadas em diversas pesquisas.

Apenas para se ter uma idéia, o Mapa da Violência de 2012 constatou que 75% dos jovens vítimas de homicídios no Brasil em 2010 eram negros, ou seja 34.983 pessoas. O censo de 2010 verificou ainda que das 13,1 milhões de pessoas que possuem ensino superior completo no Brasil, somente 3,3 milhões são negros (menos de 26%). Já em relação às pessoas sem instrução ou com ensino fundamental incompleto, os números se invertem, pois são 40 milhões de negros contra 26,3 milhões de brancos. Atualmente, negros e pardos representam mais de 70% dos 10% mais pobres de nossa população. No mercado de trabalho, com a mesma qualificação e escolaridade, eles recebem em média quase a metade do salário pago aos brancos, e as mulheres negras, até metade da remuneração dos trabalhadores negros.

Na Universidade de São Paulo, a maior universidade da América Latina, os alunos negros não ultrapassam 2%, e, dos 5.400 professores, menos de dez são negros.

Não há dúvidas de que o preconceito no Brasil existe e os números supramencionados evidenciam isto. Podemos asseverar que a desvalorização o negro no Brasil tem origem na escravidão, que em que pese tenha sido abolida há mais de 125 anos, ainda gera consequências devastadoras.

Conforme analisado no tópico anterior, no século XIX começaram a se desenvolver várias ideologias racistas as quais serviram de justificativa para a desvalorização de determinados povos.

A escravidão era uma prática aceita nas antigas culturas do Egito, Grécia e Roma. Os antigos egípcios impunham a escravidão aos prisioneiros dos povos conquistados independentemente das características físicas ou raciais dos mesmos, assim como faziam os romanos e os gregos. Tal prática ocorria desde 3200 antes da era cristã.

A escravização dos negros e a ideia de superioridade branca começa a concretizar-se entre os séculos XV e XVI com a conquista da África. Naquela época, os negros passam a ser considerados como “objeto”, não sendo mais “gente”.

Diferentemente do que se possa imaginar, entre os anos de 1200 e 1500 vários reinos negros africanos eram bem desenvolvidos e já existiam há centenas de anos. Alguns desses reinos e seus nobres viviam em grande opulência e esplendor, sendo que suas capitais às vezes se tornavam centros de cultura e comércio. Há relatos inclusive do desenvolvimento de uma universidade negro-árabe em Tombucto que tornou-se famosa por toda a Espanha e Oriente Médio.

Com a conquista do continente africano pelos europeus e a escravização do povo, houve uma desorganização cultural negra, parou-se o desenvolvimento da arte, derrubou os governos locais o que acabou ocasionando uma estagnação cultural desde 1600.

Aos serem capturados, os africanos eram entregues primeiro nas Índias Ocidentais, onde eram “adaptados” e reduzidos a escravos, antes de serem enviados para as Américas. Nesta etapa, havia uma preocupação em separar as pessoas da mesma origem tribal para impedir qualquer insurreição em massa.

Começava-se aí, a desenvolver-se um comércio escravista de ampla escala e altamente lucrativo.

A Enciclopédia Americana[11] afirma que nesta época foram formulados diversos códigos escravistas para garantir sua completa subordinação. Os escravos não podiam ter propriedades, possuir armas de fogo, empenhar-se no comércio, deixar a plantação sem permissão de seus donos, testemunhar num tribunal exceto contra outro negro, fazer contratos, aprender a ler e escrever, ou mesmo realizar reuniões sem a presença de pessoas brancas. O homicídio ou o estupro de um escravo ou de um africano livre por uma pessoa branca não era considerado crime grave.

O leitor talvez esteja se perguntando onde ficava a igreja ou a religião frente a toda esta brutalidade, afinal como justificar a escravidão dos negros se segundo as escrituras bíblicas e os ensinamentos cristãos seriamos todos criados à imagem de Deus e deveríamos amar ao próximo como a nós mesmos?

É fato que mesmo antes do começo da cristandade, rabinos judeus ensinavam uma “história” sobre a origem da pele negra. Segundo tais rabinos, o descendente de Cã, Cus, tinha a pele negra como castigo por Cã ter tido relações sexuais na arca de Noé.

Obviamente essa suposta “maldição” dos negros serviu para mais uma vez justificar a escravização dos africanos, com a consequente desvalorização dos mesmos. Por mais absurda que possa ser esta concepção, os clérigos e religiosos dos séculos XV e XVI trataram de enriquecer essa ideia, pois a superioridade branca era agora “divina” e “aprovada” por Deus.  

O ensino da maldição de Deus sobre os negros pautava-se no livro de gênesis, capítulo 9, versículos 21 a 27, que reza:

“E [Noé] bebeu do vinho, e embebedou-se; e descobriu-se no meio de sua tenda. E viu Cão, o pai de Canaã, a nudez do seu pai, e fê-lo saber a ambos os seus irmãos fora. . . . E despertou Noé do seu vinho, e soube o que seu filho menor lhe fizera. E disse: Maldito seja Canaã; servo dos servos seja aos seus irmãos. E disse: Bendito seja o Senhor Deus de Sem; e seja-lhe Canaã por servo. Alargue Deus a Jafé, e habite nas tendas de Sem; e seja-lhe Canaã por servo[12]”

Embora a bíblia não mencione a cor da pele de Canaã nem mencione que os descendentes de Canaã seriam amaldiçoados com a negritude da pele, entendeu-se que a escravização dos negros e a sua cor preta cumpriam tal maldição bíblica.  Desta forma, muitos brancos foram levados a presumir que os negros eram inferiores e que Deus propôs que eles fossem servos dos brancos.

Diversas pesquisas históricas puderam constatar que Canaã não tinha a pele negra e nem seus descendentes, que se fixaram na terra que posteriormente se tornou conhecida como Palestina. Os cananeus, com o tempo, foram subjugados pelos israelitas, descendentes de Sem, e, mais tarde, pela Medo-Pérsia, Grécia e Roma, descendentes de Jafé. Tal subjugação dos cananeus cumpriu a maldição profética sobre seu ancestral, Canaã. A maldição, assim, nada teve que ver com a raça negra.

Ao contrário do que os clérigos e religiosos ensinavam, a raça negra proveio dos outros filhos de Cã, Cus e provavelmente de Pute, cujos descendentes se fixaram na África. De todo modo, embora a Bíblia nada diga a respeito dos descendentes negros serem amaldiçoados, ela mesma foi usada e interpretada por alguns religiosos como lei para aprovar e justificar as mais severas atrocidades contra os negros.

No Brasil, por volta do ano de 1700, somente na cidade de Salvador, 57% da população eram escravos (mais de 22.800 pessoas). Estima-se que mais de 6 (seis) milhões de escravos africanos tenham sido trazidos para o Brasil, embora avaliações mais conservadoras afirmem que na verdade o número tenha sido de 3,5 milhões.

Os escravos no Brasil trabalhavam até 16 horas por dia, eram punidos com até 300 (trezentas) chibatadas por dia, em que pese o Código Criminal do Império só permitir cinquenta. 

O tempo de vida do escravo brasileiro nunca ultrapassou 12 anos, e a mortalidade sempre superou a natalidade. Razão pela qual era constante incentivo ao tráfico negreiro.

O fato é que embora tenhamos abolido a escravidão em 13 de maio de 1888, as consequências desta permanecem marcadas até hoje, seja em nossos costumes, mentalidade social e relações econômicas. A simples menção aos números apresentados no início desse tópico já são suficientes para demonstrar as consequências que os negros sofrem até hoje decorrentes da escravidão.

A este respeito, imperioso destacar o comentário feito pelo ilustre Doutor Fábio Konder Comparato[13]:

(...) o preconceito que tisna os brasileiros de origem africana não é neles marcado apenas fisicamente, como se fazia outrora com ferro em brasa. Ele aparece registrado como uma degradação social permanente em todos os levantamentos estatísticos.

Que as nossas classes dominantes tenham, enfim, a mínima hombridade de reconhecer que esse colossal passivo de nossa herança histórica ainda nem começou a ser pago!

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Sobre a autora
Aline Albuquerque Ferreira

Delegada de Polícia do Estado de São Paulo. Ex-Advogada. Pós-graduada em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público. Pós- graduanda em Direito Público. Possui graduação em direito pela Universidade Paulista (2011). Aprovada no IV Exame da Ordem. Tem experiência em direito, com ênfase em direito penal e direito do consumidor.Foi estagiária concursada do Ministério Público Estadual (área criminal) e Ministério Público Federal (área: tributária, constitucional). Foi estagiária da magistratura estadual de São Paulo na área criminal, estagiária na vara das execuções criminais de São Paulo e Vara das Execuções Fiscais.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Publicação anterior: FERREIRA, Aline Albuquerque. A aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra o patrimônio do Código Penal Brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3263, 7 jun. 2012. Disponível em: .

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