Análise crítica do art. 479, do Código de Processo Penal e o amesquinhamento do direito à plenitude de defesa

22/01/2015 às 22:08
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Estudo casuístico sobre a processualística própria do Tribunal do Júri e sua repercussão processual.

Interessa salientar que a Constituição Federal faz uma distinção evidente entre os conceitos de “ampla defesa” (CF, art. 5.º LV), e, “plenitude de defesa” (CF, art. 5.º, XXXVIII);

A ampla defesa, exercida nos processos judiciais e administrativos, compreende a defesa técnica em sentido estrito; sendo, portanto, o direito de trazer ao processo todos os elementos necessários a esclarecer a verdade, o direito de omitir-se, calar-se, produzir provas, recorrer de decisões, contraditar testemunhas, conhecer de todos atos e documentos do feito;

Por seu turno, a plenitude de defesa é aquela atribuída ao acusado de crime doloso contra a vida, no Plenário do Júri e, vale dizer, tem maior incidência do que a ampla defesa. É correto afirmar que a ampla defesa está contida na plenitude de defesa!

Logo, a imagem simbólica de que a “plenitude de defesa é um círculo grande que contém o círculo menor chamado ampla defesa” – é uma parábola perfeita;

Ao nosso ver, defesa plena, é ir além das amaras legais com o móbil de demonstrar a verdade; não é pura e simplesmente a somatória, quase mecânica, da defesa técnica, autodefesa, e, argumentos supra-legais (morais, religiosos, políticos, analogias, etc);

Exercer a defesa com plenitude é vencer o sistema de “pré-nulidades” formatado, transmutando o conhecimento técnico, jurídico e científico em informação útil a formação do convencimento dos jurados;

Para tanto, imprescindível a análise crítica do art. 479, do Código de Processo Penal, e, seu amesquinhamento perante o princípio constitucional da plenitude de defesa;  

A título de contextualização do tema vale a transcrição prévia dos artigos 475 (antigo) e o 479 (novo), do procedimento do Tribunal do Júri:

Art. 475 – Durante o julgamento não será permitida a produção ou leitura de documento que não tiver sido comunicada à parte contrária, com antecedência, pelo menos, de três dias, compreendida nessa proibição a leitura de jornais ou qualquer escrito, cujo conteúdo versar sobre matéria de fato constante do processo.

Art. 479. Durante o julgamento não será permitida a leitura de documento ou a exibição de objeto que não tiver sido juntado aos autos com a antecedência mínima de 3 (três) dias úteis, dando-se ciência à outra parte. (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008)

Parágrafo único. Compreende-se na proibição deste artigo a leitura de jornais ou qualquer outro escrito, bem como a exibição de vídeos, gravações, fotografias, laudos, quadros, croqui ou qualquer outro meio assemelhado, cujo conteúdo versar sobre a matéria de fato submetida à apreciação e julgamento dos jurados. (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008) (destacamo

Diz o conhecido brocardo do Direito: “a lei não contem palavras inúteis”;

In casu – nos parece que a “vírgula” tem um papel preponderante na interpretação legal;

A bem da verdade – a aparente simplicidade hermenêutica da referida legislação, esconde mistérios que pretendemos desvelar;

Vejamos o amesquinhamento do Direito a PLENITUDE DE DEFESA, transcrita no livro Código de Processo Penal:

“Jornais, revistas, vídeos, fitas gravadas, entre outras, contendo reportagens sobre o caso em julgamento: podem ser exibidas em plenário, desde que respeitado o disposto neste artigo (prazo e ciência da parte contrária). Em que pese haver emotividade e parcialidade nessas reportagens, não há como impedir a sua exibição aos jurados, merecendo, no entanto, que o juiz presidente advirta o Conselho de Sentença da sua característica peculiar. Esse procedimento já foi adotado e confirmado, como correto, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo: “(...) a divulgação sonora de fita magnética é permitida em Plenário do Júri. O conteúdo de fita de vídeo se constitui em modalidade de prova como outra qualquer e, como tal, deve ser aceito, desde que, obtida de forma lícita e legitimamente introduzida no processo. (...) Desta forma, nada impedia fossem as mesmas reproduzidas em plenário e não apenas a simples leitura da transcrição, como pretendido pela ilustre Defesa, posto que, em se tratando de delitos dolosos contra a vida, é o Tribunal do Júri o destinatário de toas as provas (...). Deve também ser ressaltado, que após a exibição das fitas de vídeo, o d. Magistrado ‘alertou os jurados de que as reportagens envolvem opiniões de repórteres, que devem ser vistas e analisadas dessa forma e não como depoimentos oficiais, produzidos no processo. Assim também devem ponderar que as entrevistas foram feitas com parentes e amigos da vítima, contando com certa dose de emotividade” (Ap. 221.881-3, São Paulo. 6.° C., rel. Augusto César, 22.05.1997, v.u) [1]

A interpretação supramencionada restringe, obsta, fere de morte o direito fundamental relativo à plenitude de defesa (CF, art. 5.º, XXXVIII); sim, pois sugere, ser obrigatória a ingerência, e, consequentemente manipulação da vontade dos Jurados, acerca da interpretação de determinada prova, feita exatamente por quem deveria ser absolutamente imparcial, ou seja, o Juiz Presidente do Tribunal do Júri.

Por outro lado – é também preconceituosa a advertência, tendo em vista que “supõe” que o Jurado não teria capacidade intelectual (não técnica), de fazer uma diferenciação entre conteúdo probatório e informativo;

Fazendo uma analogia rasteira, seria o mesmo que manipular a vontade de um eleitor antes de depositar o seu voto na urna, esclarecendo, com argumento de autoridade inatacável - quem mereceria seu voto;

Passando o jurado por um severo processo de seleção, e, sendo ele a “nata da sociedade” e também o reflexo direito da vontade popular; não é justo, nem jurídico, na fase processual do Tribunal do Júri a pretensão de manipular a vontade do Jurado sobre tudo que ali viu, ouviu e sentiu; caracterizando essa “pretensão” um golpe ao direito fundamental da plenitude de defesa;

Ao contrário, defendemos o entendimento que o Jurado é mais do que capacitado para ouvir Acusação e Defesa, e, a partir da dialética travada lealmente entre as partes formar o seu convencimento;

   Cabe as exclusivamente as partes explicar as provas licitamente introduzidas nos autos, e, não ao Juiz Presidente; que apenas deve regular os debates – “sem emitir ou dar a entender sua opinião”.

O doutrinador João Meireles Camara, na  obra No Plenário do Júri - analisando um caso prático, explicou o seguinte:

“A defesa preparara para o desfecho um recorte de jornal, uma entrevista do Procurador Geral dos Presídios, onde ele afirmava que o sistema carcerário não tem condições de recuperar presidiários.

(...)

ACUSAÇÃO (levantou-se e sem pedir aparte foi gritando) – É demais. V. Exa. Está brincando com minha paciência. V. Exa. Está apresentando provas intempestivamente. A acusação protesta e não vai permitir que tais provas sejam apresentadas agora.

(...)

DEFESA – Vejam, senhores jurados. A proibição contida neste artigo refere-se à leitura de jornais ou qualquer escrito, cujo conteúdo versar sobre matéria de fato constante do processo.

O Advogado dirige-se à sua mesa, põe o Código em cima, pega os autos e vai para perto dos jurados.

DEFESA – V. Exas., senhores jurados, têm os autos aqui presentes. Peço que o examinem. Constatarão que a matéria do jornal não tem nada que ver com os fatos aqui descritos. Trata-se de uma entrevista de autoridade ligada ao sistema carcerário.

Agora, senhores jurados, podemos identificar quem foi que fugiu da escola entre nós. Passo o Código às mãos do nobre acusador, para que ele mesmo faça a leitura, se o desejar. A defesa, MM. Juiz, para que não tenha sua atuação cerceada neste Tribunal, passa a fazer a leitura do recorte.

ACUSADOR (abriu o código, verificou o artigo) – Disse, realmente, eu não li com atenção este artigo.[2]

O artigo deixa bem claro que poderão ser levados ao conhecimento dos jurados qualquer outro documento, sem apresentação prévia de 3 (três) dias, todo o “conteúdo que não versar sobre a matéria de fato submetida à apreciação e julgamento dos jurados”;

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Ad exemplum – “A” efetua disparos de arma de fogo em “B” – eis a matéria de fato;

“B” – é morto por “C”; esse fato, não submetido a apreciação dos jurados é amplamente divulgado na mídia;

Significa dizer – que é legal explorar esse “fato” (público e notório), diverso do fato sub judice – sem a necessidade de apresentar o documento ou mídia a parte contrária;

Qualquer ressalva ao referido entendimento é causticar a interpretação do artigo sob comento, e, ferir de morte o direito fundamental a plenitude de defesa;

Vejamos o seguinte caso prático:

Processo 1:     “A” efetua disparos de arma de fogo em “B” e “C” – (configurando tentativa de homicídio) – eis a matéria de fato submetida ao crivo dos Jurados;

"B” e “C”, são policiais militares investigados pela Corregedoria da Polícia Militar, por existirem indícios de integralizarem grupo de extermínio – a referida informação é largamente divulgada por diversos canais de mídia;

Processo 2:     “B” e “C” são vítimas de disparos de arma de fogo, vindo a óbito – eis a matéria de fato relacionada a esse processo; não guarda conexão com o processo 1;

Os fatos tratados no Processo 2, são largamente difundidos por diversos canais de mídia – sendo o motivo do crime, os fortes indícios de “B” e “C” fazerem parte de grupo de extermínio da Polícia Militar;

Existe limitação (pré-nulidade) de apresentação de jornais, escritos, vídeos, fotos ou qualquer material relativo ao Processo 2, a apreciação e julgamento dos jurados no Tribunal do Júri que estão julgando o Processo 1?

Evidentemente que não!

Versar sobre conteúdo – significa dizer estar DIRETAMENTE RELACIONADO. Ainda que no exemplo acima, a matéria possa estar “indiretamente” relacionada ao conteúdo fático – a Lei Ordinária não fez essa distinção; e, onde o legislador não faz distinção não cabe ao exegeta fazê-lo!

Em resumo conclusivo: Todo e qualquer material que colaborar na formação da convicção dos jurados no Tribunal do Júri, cujo conteúdo não versar diretamente sobre a matéria submetida à apreciação e julgamento – poderá ser exibida sem apresentação prévia a parte contrária, máxime tratar-se de material defensivo em razão do princípio fundamental da plenitude de defesa.

Notas:

[1] NUCCI. Guilherme de Souza. Código de Processo Penal, ed. RT. Pag. 886-7, 2013.

[2] CAMARA. João Meireles. No Plenário do Júri. Ed. Saraiva. P. 158 e 161. 2. ed. 1982.

Referências:

CAMARA. João Meireles. No Plenário do Júri. Ed. Saraiva. P. 158 e 161. 2. ed. 1982.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução Ana Paula Zomer Sica; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares e Luiz Flávio             Gomes. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

GUIMARÃES, Luiz Carlos Forguieri. Direitos Fundamentais e Relações          Desiguais nos contratos bancáriosed. Letras Jurídicas, 2009;

LOPES JUNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 3. ed. ver., atual e ampl. Rio de Janeiro: LumenJúris, 2005.

MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Tradução da 3. ed. de 1912, de Waleska Girotto Silveberg. São Paulo: Conan, 1995.

MEDEIROS, Júlio. O Tribunal do Júri e suas polêmicas sob a ótica de um advogado criminalistaJus Navigandi, Teresina, ano 17n. 3212[17] abr. [2012] . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21538>. Acesso em:  8 jul. 2013.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de processo penal interpretado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1995.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 3. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

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Sobre o autor
Henrique Perez Esteves

Advogado Criminalista com atuação no Tribunal do Júri. Mestre em Direito Público, Pós-graduado em Processo em Processo Penal. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Prática Penal Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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