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Os crimes contra o sentimento religioso

21/01/2015 às 12:55

Resumo:


  • A Constituição de 1988 garante a liberdade de consciência e crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e suas liturgias.

  • O Código Penal Brasileiro, em seu artigo 208, prevê punições para atos de escárnio, impedimento ou perturbação de culto religioso e vilipêndio a ato ou objeto de culto religioso, com penas que podem ser agravadas se houver emprego de violência.

  • Os crimes contra o sentimento religioso e a liberdade de culto são considerados ofensas ao sentimento ético-social, com a lei penal visando proteger o indivíduo e a coletividade, admitindo transação penal e suspensão condicional do processo em determinadas situações.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Estudam-se os tipos penais que constituem os crimes contra o sentimento religioso.

A Constituição de 1988, em seu artigo quinto, inciso VI, dispõe “ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção de culto e suas liturgias”.

Dispõe o Código Penal, no artigo 208:

Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:

Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.

Parágrafo único - Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.

Na Idade Média, os crimes contra o sentimento religioso multiplicavam-se. O direito canônico impunha penas leves, mas o “braço secular”, a serviço da Igreja, aplicava penas terríveis e bárbaras, que, como bem lecionou Heleno Cláudio Fragoso(Lições de direito penal, parte especial, 7ª edição, pág. 575), escreveu negra página na história do direito penal. A blasfêmia era punida com o corte e a perfuração da língua, a fustigação, o exílio, o cárcere e a morte.

Na lição de Nelson Hungria (Comentários ao código penal, VIII, pág. 53), referindo-se a essa época, “as penas mais severas eram editadas ad terrorem. O Estado, no sistema político unitário entre ele e a Igreja Católica, fazia-se guardião dos desígnios de Deus na terra”. O pecado confundia-se com o crime.

No direito penal moderno, a partir do iluminismo, tem-se que a ideia não é mais outorgar proteção penal a Deus ou à religião, mas, ao livre exercício do culto e ao sentimento religioso.

Porém, veja-se que o Código Penal de 1830 incriminava o culto de qualquer religião que não fosse a do Estado (artigo 276) e a a propagação por meio de impressos ou reuniões públicas, “de doutrinas que destruam as verdades fundamentais da existência de Deus e da imortalidade da alma”.

Com a separação da Igreja do Estado, o Código de 1890 incluía os crimes contra o livre exercício dos cultos, estendendo a tutela penal a qualquer confissão religiosa.

Em verdade, a lei penal, com o vigente artigo 208, assegura a liberdade individual no que concerne ao livre exercício dos cultos. Tem-se em mira o sentimento religioso, como sentimento ético-social em si mesmo, e, de forma secundaria, a liberdade de culto.

Crença é fé religiosa e função religiosa é o ministério ou a incumbência de alguém de divulgar a religião (pastor, padre, bispo, rabino etc).

Ao contrário do Código Penal Suíço, o ordenamento penal vigente não situa tais crimes contra a paz pública.

Como bem explicou Guilherme de Souza Nucci (Código penal comentado, 8ª edição, pág. 852), trata-se de tipo penal que contém três figuras criminosas autônomas, de modo que a prática de mais de uma implica na punição por mais de um crime. Nessa linha de raciocínio, o agente poderá responder, em concurso material, por escarnecer de alguém, por perturbar culto e por vilipendiar objeto religioso.

Qualquer pessoa pode praticar esse crime. Quanto ao sujeito passivo, há de existir alguma pessoa determinada que preencha o elemento descrito “alguém”, como bem disse Guilherme de Souza Nucci (obra citada, pág. 852), não sendo possível tratar-se de um grupo de pessoas indeterminado. Mas traga-se, mais uma vez, a lição de Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 577), quando disse que “estes crimes violam diretamente interesses coletivos, motivo pelo qual sujeito passivo deles é, primariamente, o corpo social. Será sujeito passivo particular ou secundário, qualquer pessoa física ou jurídica que sofrer a ação incriminada”. Bem se diz que há casos em que o crime não tem sujeito  passivo particular.

O elemento subjetivo do tipo é o dolo, o dolo específico. É o ato de deboche voltado contra alguém, em público, por motivação religiosa, objetivando desrespeitar o culto ou a função religiosa alheia.

Assim a zombaria há de ser feita em local público ou de acesso público, pois a lei quer impedir que várias pessoas tomem conhecimento da manifestação desairosa. Trata-se de circunstância especial da conduta.

Especificamente com relação ao ultraje por motivo de religião, que envolve, escarnecer (troçar, zombar, motejar) de alguém, por motivo de crença ou de religião, tem-se que o achincalhe ou zombaria deve ser motivado pelo fato da crença ou da função pública. Repita-se que é indispensável que se trate de escarnecimento público, praticado diante de várias pessoas ou por meio que o transmita a várias pessoas (imprensa, internet etc). Nesse tipo penal exige-se o dolo, com especial motivação de agir de forma a ridicularizar ou fazê-lo em razão de sua crença ou função religiosa. Sendo assim o crime consuma-se sem qualquer outro resultado e, em sendo verbal, não haverá tentativa, uma vez que se tratará de crime unissubsistente. De toda sorte, é crime comum, formal, instantâneo. Se há emprego de violência (física) a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da pena corresponde à violência, parágrafo único do artigo 208 do Código Penal. Já  se entendeu que quanto a esse crime, para a sua configuração, é necessário que o escárnio seja dirigido à determinada pessoa, sendo que a assertiva de que determinadas religiões traduzem “possessões demoníacas” ou espíritos imundos”, espelham tão-somente posição ideológica dogmática de crença religiosa(RJDTACr 23/374).

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Quanto ao crime de impedimento de culto religioso, tem-se que a ação física consiste em impedir (paralisar, suspender) ou perturbar (alterar, atrapalhar) cerimônia ou prática religiosa, como é o caso da missa ou qualquer outra cerimônia religiosa. É crime comum, formal. Basta o dolo eventual sendo irrelevante o fim visado pelo agente (TACrSP, RT 491/318).

Por certo, Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 578) ensinou que “o que se protege aqui é o interesse ético-social do sentimento religioso, o que exige que se trate de religião admitida pelo Estado, com considerável número de adeptos e que não viole a ordem pública e os bons costumes, tendo, pois, uma função ético-social a cumprir”.

Por fim, há o tipo envolvendo vilipêndio de ato ou objeto de culto.

Vilipendiar é considerar como vil, desprezar ou ultrajar injuriosamente. Isso é mais que ofender.

Para Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 579), o tipo exige seja praticado publicamente, isto é, na presença de várias pessoas. Assim o vilipêndio deve recair sobre ato (cerimônia ou a prática de culto religioso) ou objetivo (qualquer coisa, bem corpóreo) de culto religioso. O crime é comum, formal. O crime se consuma com o vilipêndio e se for verbal, não irá admitir tentativa. O elemento subjetivo é o dolo que exige a ação desrespeitosa ou objetivamente ofensiva ao sentimento religioso praticada com o fim de ultrajar e vilipendiar (dolo específico).

A causa de aumento é válida para as três figuras, caso o autor empregue qualquer forma de violência(física).

Os crimes previstos no caput do artigo 208 do Código Penal comportam transação penal e suspensão condicional do processo.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Os crimes contra o sentimento religioso . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4221, 21 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35695. Acesso em: 26 dez. 2024.

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