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Solidariedade entre espécies naturais?

O alargamento da moldura axiológica do princípio da solidariedade ambiental

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19/08/2016 às 14:48
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3 A  Solidariedade  Intergeracional  no  Direito  Ambiental:   O Fortalecimento dos Ideários de Fraternidade nos Direitos de Terceira Dimensão 

Em sede de comentários introdutórios, ao volver um olhar analítico para o tema colocado em debate, forçoso é reconhecer que o corolário da solidariedade intergeracional apresenta-se como reflexo de direitos de terceira dimensão, denominados direitos de solidariedade ou fraternidade. Com destaque, os direitos encampados pela denominação ora expendida encontra como alicerce de sustentação o ideário de fraternidade e tem como exemplos o direito ao meio ambiente equilibrado, à saudável qualidade de vida, ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos, a  proteção  e defesa do consumidor, além de outros direitos considerados como difusos. “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo”[17] ou mesmo de um Ente Estatal especificamente. Ainda nesta esteira, é possível verificar que a construção dos direitos encampados sob a rubrica de terceira dimensão tende a identificar a existência de valores concernentes a uma determinada categoria de pessoas, consideradas enquanto unidade, não mais prosperando a típica fragmentação individual de seus componentes de maneira isolada, tal como ocorria em momento pretérito. Com efeito, está-se diante de valores transindividuais, eis que os direitos abarcados pela dimensão em comento não estão restritos a determinados indivíduos; ao reverso, incidem sobre a coletividade. Ao lado disso, os direitos de terceira dimensão são considerados como difusos, porquanto não têm titular individual, sendo que o liame entre os seus vários titulares decorre de mera circunstância factual.

Nesta feita, importa acrescentar que os direitos de terceira dimensão possuem caráter transindividual, o que os faz abranger a toda a coletividade, sem quaisquer restrições a grupos específicos. Ora, o ideário de solidariedade alberga justamente um sucedâneo de direitos que contemplam a coletividade enquanto unidade, não se atendendo a característicos diferenciadores ou mesmo particularidades segregadoras. Neste sentido, pautaram-se Motta e Motta e Barchet, ao afirmarem, em suas ponderações, que “os direitos de terceira geração possuem natureza essencialmente transindividual, porquanto não  possuem destinatários  especificados, como  os  de  primeira  e  segunda geração, abrangendo a coletividade como um todo”[18]. Desta feita, são direitos de titularidade difusa ou coletiva, alcançando destinatários indeterminados ou, ainda, de difícil determinação. Nesta esteira de exposição, os direitos em comento estão vinculados a valores de fraternidade ou solidariedade, sendo traduzidos de um ideal intergeracional, que liga as gerações presentes às futuras, a partir da percepção de que a qualidade de vida destas depende sobremaneira do modo de vida daquelas. Dos ensinamentos dos célebres doutrinadores, percebe-se que o caráter difuso de tais direitos permite a abrangência às gerações futuras, razão pela qual, a valorização destes é de extrema relevância. “Têm primeiro por destinatários o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”[19]. A respeito do assunto, com bastante pertinência, Motta e Barchet[20], em seu magistério, ensinam que os direitos de terceira dimensão surgiram como “soluções” à degradação das liberdades, à deterioração dos direitos fundamentais em virtude do uso prejudicial das modernas tecnologias e desigualdade socioeconômica vigente entre as diferentes nações.

Tecidos estes comentários, ao esmiuçar o corolário da solidariedade intergeracional, também denominado de princípio da equidade ou princípio do acesso equitativo dos recursos naturais, salta aos olhos sua íntima relação com a temática dos espaços protegidos, eis que configura um dos baldrames robustos para a sua estruturação. Afora isso, é possível verificar a materialização do dogma em comento no caput do artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[21]. Assim, a atual geração, ao instituir os espaços protegidos, furta-se à sua utilização normal (aqui considerada aquela utilização encontradiça fora desses espaços) para garantir as presentes gerações e, sobretudo, às futuras, o equilíbrio do meio ambiente, mediante a manutenção da biodiversidade. Logo, a adoção do termo “solidariedade intergeracional” busca, justamente, destacar esse elo de responsabilidade da atual geração pela existência das futuras. Neste sentido, é possível trazer à colação o paradigmático entendimento jurisprudencial construído, no qual acena, com clareza solar, que:

Ementa: Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Adequação. Observância do princípio da subsidiariedade. Arts. 170, 196 e 225 da Constituição da República. Constitucionalidade de atos normativos proibitivos da importação de pneus usados. Reciclagem de pneus usados: ausência de eliminação total de seus efeitos nocivos à saúde e ao meio ambiente equilibrado. Afronta aos princípios constitucionais da saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Coisa julgada com conteúdo executado ou exaurido: impossibilidade de alteração. Decisões judiciais com conteúdo indeterminado no tempo: proibição de novos efeitos a partir do julgamento. Arguição julgada parcialmente procedente. 1. Adequação da arguição pela correta indicação de preceitos fundamentais atingidos, a saber, o direito à saúde, direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (arts. 196 e 225 da Constituição Brasileira) e a busca de desenvolvimento econômico sustentável: princípios constitucionais da livre iniciativa e da liberdade de comércio interpretados e aplicados em harmonia com o do desenvolvimento social saudável. Multiplicidade de ações judiciais, nos diversos graus de jurisdição, nas quais se têm interpretações e decisões divergentes sobre a matéria: situação de insegurança jurídica acrescida da ausência de outro meio processual hábil para solucionar a polêmica pendente: observância do princípio da subsidiariedade. Cabimento da presente ação. [...] 4. Princípios constitucionais (art. 225) a) do desenvolvimento sustentável e b) da equidade e responsabilidade intergeracional. Meio ambiente ecologicamente equilibrado: preservação para a geração atual e para as gerações futuras. Desenvolvimento sustentável: crescimento econômico com garantia paralela e superiormente respeitada da saúde da população, cujos direitos devem ser observados em face das necessidades atuais e daquelas previsíveis e a serem prevenidas para garantia e respeito às gerações futuras. Atendimento ao princípio da precaução, acolhido constitucionalmente, harmonizado com os demais princípios da ordem social e econômica [...] (Supremo Tribunal Federal – Tribunal Pleno/ ADPF nº 101/ Relatora:  Ministra Cármen Lúcia/ Julgado em 24.06.2009/ Publicado no DJe em 01.06.2012).

Observar-se-á a existência de duas espécies de solidariedade intergeracional, tais sejam: uma pautada na atual geração, denominada, em razão disso, de sincrônica; e, outra voltada para as futuras gerações, chamada anacrônica. Com destaque, assinalar faz-se imprescindível, consoante entendimento explicitado por Andréia Minussi Facin[22], que é possível enumerar três formas distintas de acesso a bens materiais, quais sejam: acesso visando o consumo do bem, tal como ocorre com a captação de água e instrumentos predatórios de caça e pesca; acesso causando poluição ao meio ambiente, a exemplo do que se denota no acesso à água ou ao ar, lançando, para tanto, poluentes ou emitindo poluição sonora; e, acesso ao meio ambiente para a contemplação de seus elementos e paisagem. Verifica-se, deste modo, a existência do meio ecologicamente equilibrado não se traduz somente na preservação para a geração atual, mas, também, para as gerações futuras. Logo, se o pavilhão desfraldado tremula em direção ao desenvolvimento sustentável, patente faz-se que a concepção albergue o crescimento econômico como garantia paralela e superiormente respeitada da saúde da população, cujo acervo de direito devem ser observados, tendo-se em vista não apenas as necessidades atuais, contudo, também, as que são passíveis de prevenção para as gerações futuras. Neste sedimento de exposição, cuida apontar, com ênfase, que está diretamente vinculado ao corolário em comento o preceito da precaução, já que a necessidade de afastamento de perigo, tal como a adoção de instrumentos que busquem a promoção da segurança dos procedimentos adotado para a garantia das gerações futuras, efetivando-se apenas por meio da sustentabilidade ambiental das nações humanas.

Denota-se, destarte, que o princípio em comento torna efetiva a busca incansável pela proteção da existência humana, seja tanto pela proteção do meio ambiente como pela estruturação de condições que salvaguardem a saúde e a integridade física, considerando-se o indivíduo em sua inteireza. Gize-se que tal fato decorre da nova visão reinante, na qual há que se adotar, como política pública, o que se faz imprescindível para antecipar os riscos de danos que sejam passíveis de materialização em relação ao meio ambiente, tanto quanto o impacto que as ações ou as omissões possam produzir. Ora, o artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[23]., ao estabelecer o ônus em relação à coletividade e ao Poder Público, na condição de dever, de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações,   inaugura  um   dever   geral   arrimado   na   prevenção   de   riscos ambientais, no patamar de um ordem normativa objetiva de antecipação de futuros danos ambientais, os quais encontram como sustentáculos os dogmas da prevenção, quando tratar de riscos concretos, e da precaução, quando estiver diante de riscos abstratos.

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No mais, cuida colocar em destaque que a reserva dos bens ambientais, com a sua não utilização atual, passaria a ser equitativa se fosse demonstrado que ela ocorrera com o escopo de evitar o esgotamento dos recursos, com a guarda desses bens para as futuras gerações. Neste passo, ao se considerar a densidade da moldura de fraternidade e solidariedade que reveste o acesso ao meio ambiente, em especial devido ao status de elemento que assegura o alcance da dignidade da pessoa humana, considerando o indivíduo em todas as suas potencialidades e complexidades, não é possível suprimir que a manutenção da preservação dos bens ambientais refoge ao ideário ingênuo de meio ambiente intocável, mas sim lhe confere à contemporaneidade ao tema. “A equidade no acesso aos recursos ambientais deve ser enfocada não só com relação à localização especial dos usuários atuais, como em relação aos usuários potenciais das gerações vindouras”[24].

Com efeito, um posicionamento equânime não é fácil de ser construído, vindicando considerações dotadas de ordem ética, científica e econômica das gerações atuais e uma avaliação prospectiva das necessidades futuras, nem sempre possíveis de serem conhecidas e medidas no presente. Neste aspecto, é possível colocar em destaque que o aspecto intergeracional que tende a caracterizar o discurso de proteção e preservação ambiental ambiciona conferir concreção ao ideário de solidariedade que caracteriza o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado enquanto direito de terceira dimensão.  Supera-se, com efeito, a essência de individualidade que caracterizou os direitos humanos, adotados uma ótica na qual a preocupação com o semelhante, mesmo em se tratando de uma geração futura, é dotada de grande proeminência, analisando-se a coletividade na condição de unidade, na qual cada um dos indivíduos é dotado de relevância e substancial atenção. Tal fato decorre, notadamente, do superprincípio da dignidade da pessoa humana, o qual só alcança sua materialização por meio da conjunção de inúmeros, porém carecidos, direitos, os quais, em um fim último, proporcionam a realização de todas as complexidades encerradas no ser humano.

Ademais, um aspecto característico proeminente da sociedade contemporânea está assentado na sua paradoxal capacidade de controlar e produzir indeterminações. Entrementes, a forma como esse dever será atendido constitui tarefa inafastável dos órgãos estatais, os quais dispõem de ampla liberdade de conformação, atentando-se para os limites constitucionais consagrados. Com efeito, as mencionadas determinações constitucionais objetivam evitar riscos, encontrando assento, para tanto, no próprio Texto Constitucional, o que autoriza o Estado a atuar de modo a evitar riscos para o cidadão em geral, por meio da adoção de medidas de proteção ou de prevenção da saúde e do meio ambiente, notadamente em relação ao desenvolvimento técnico ou tecnológico e suas consequências para as presentes e futuras gerações. No controle judicial de políticas públicas do meio ambiente, a atuação do Poder Judiciário deve buscar a garantia, inclusive, o mínimo existencial ecológico dos indivíduos atingidos diretamente e indiretamente em seu patrimônio de natureza material e imaterial, neste sentido, visando garantir a inviolabilidade do direito fundamental à sadia qualidade de vida, bem assim a defesa e preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, em busca do desenvolvimento sustentável para as presentes e futuras gerações.

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Sobre o autor
Tauã Lima Verdan Rangel

Mestre (2013-2015) e Doutor (2015-2018) em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especialista Lato Sensu em Gestão Educacional e Práticas Pedagógicas pela Faculdade Metropolitana São Carlos (FAMESC) (2017-2018). Especialista Lato Sensu em Direito Administrativo pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante (FAVENI)/Instituto Alfa (2016-2018). Especialista Lato Sensu em Direito Ambiental pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante (FAVENI)/Instituto Alfa (2016-2018). Especialista Lato Sensu em Direito de Família pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante (FAVENI)/Instituto Alfa (2016-2018). Especialista Lato Sensu em Práticas Processuais Civil, Penal e Trabalhista pelo Centro Universitário São Camilo-ES (2014-2015).. Produziu diversos artigos, voltados principalmente para o Direito Penal, Direito Constitucional, Direito Civil e Direito Ambiental.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RANGEL, Tauã Lima Verdan. Solidariedade entre espécies naturais?: O alargamento da moldura axiológica do princípio da solidariedade ambiental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4797, 19 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35717. Acesso em: 23 abr. 2024.

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