O Projeto de Lei do Senado 292/2013 prevê o acréscimo de uma qualificadora para o crime de homicídio, mediante a inclusão de dois parágrafos no art. 121 do Código Penal, quais sejam:
«Parágrafo 7º - Denomina-se feminicídio à forma extrema de violência de gênero que resulta na morte da mulher quando há uma ou mais das seguintes circunstâncias:
I – relação íntima de afeto ou parentesco, por afinidade ou consanguinidade, entre a vítima e o agressor no presente ou no passado;
II – prática de qualquer tipo de violência sexual contra a vítima, antes ou após a morte;
III- mutilação ou desfiguração da vítima, antes ou após a morte.
Pena – reclusão de doze a trinta anos.
Parágrafo 8º - A pena do feminicídio é aplicada sem prejuízo das sanções relativas aos demais crimes a ele conexos.»
A Justificativa do PL traz dados sobre a violência contra mulher consoante estimativas da ONU; afirma que:
«O assassinato de mulheres pela condição de serem mulheres é chamado ‘feminicídio’ ... ‘femicídio’ ou ‘assassinato relacionado a gênero’ – e se refere a um crime de ódio contra as mulheres, justificada (sic) socioculturalmente por uma história de dominação da mulher pelo homem e estimulada pela impunidade e indiferença da sociedade e do Estado. ...».
(...)
«Nas conclusões Acordadas da 57ª Sessão da Comissão sobre o Status da Mulher da ONU, texto aprovado em 15 de março de 2013, aparece pela primeira vez em documento internacional acordado (aprovado pelos países membros da Comissão) o termo feminicídio, com uma recomendação expressa aos países membros para ‘reforçar a legislação nacional, onde (sic) apropriado, para punir assassinatos violentos de mulheres e meninas relacionados a gênero ...»
Diga-se de passagem, o termo recém-inventado (incipiente neologismo) se abstraído do contexto do art. 121 do CP seria mais adequado para definir o assassinato de fêmeas em geral do que propriamente de mulheres. Seja como for, o fato é que, a vingar o PLS 292, teremos uma nova qualificadora no homicídio, decorrente de «violência extrema contra a mulher» (atendidos certos requisitos), denominada «feminicídio».
O PLS 292/2013
De início, o mencionado PL chama atenção por sua redação, medonha. A começar pelo § 7º vimos que: «denomina-se feminicídio à forma extrema de violência de gênero que resulta na morte da mulher quando há uma ou mais das seguintes circunstâncias:». Deixando de lado o ruído ideológico, o que se quer dizer com a primeira parte do referido parágrafo (em itálico) seria algo como «denomina-se ‘feminicídio’ o homicídio contra a mulher quando há uma ou mais das seguintes circunstâncias:». Ou seja, apesar desta redação sofrível, é isso o que prevê o projeto.
Ressalte-se que no caso, como visto acima, a violência de que resulta morte outra coisa não é senão o próprio crime de homicídio.
Outra questão, agora imbricada com a redação do projeto, mas já tangenciando o mérito, refere-se à fórmula no mínimo atípica utilizada pelo legislador para estabelecer a qualificadora: «Denomina-se feminicídio ...». Esta não é a forma de descrição dos tipos penais ou de suas qualificadoras. Tanto não é que a expressão «denomina-se ...» simplesmente não existe no Código Penal.
Ademais, se estamos a falar do crime previsto no art. 121 do Código Penal, estamos falando de homicídio, seja ele simples, privilegiado, qualificado, mas sempre homicídio. E ainda, se o PLS cria uma qualificadora do homicídio, seria paradoxal se lhe subtraísse a própria denominação, substituindo-se assim à figura típica que pretende qualificar. Não se infira, porém, que a solução seria a criação de um tipo autônomo, em um art. 121-A, pois então haveria um incoerente desmembramento do tipo (homicídio) em função do sexo da vítima – com todos os inconvenientes daí decorrentes.
Como se nota, os parágrafos anteriores ainda estão na superfície da questão, não obstante, já prenunciam estranhezas.
O busílis da questão: qual o avanço representado pelo PL 292/13 no que se refere ao incremento da proteção da mulher? Sim, porque é desejo de toda pessoa de bem ver reduzida a violência contra as mulheres (na verdade, contra quem quer que seja). O avanço, segundo nos parece, é enorme. Mas apenas no campo da demagogia.
O PL 292 prevê um aumento de pena que passa a ser de doze a trinta anos nas hipóteses dos incisos I a III do § 7º, i.e., nos casos de «feminicídio». Que mudança isso representa em relação à atual redação do art. 121CP? Ou de outro modo, o que aconteceria hoje se Cláudio desse cabo da vida de Messalina por alguma das circunstâncias previstas no PL? Ora, neste caso haveria um aumento da pena, de doze a trinta anos, pela qualificadora do motivo torpe, ou outra a depender do caso concreto.
O que muda na prática então? Salvo melhor juízo, nada. Ao menos nada em prol da causa que se quer(?) defender. Em contrapartida, corre-se o risco de a qualificadora criar dificuldades (onde antes não havia) no que tange à aplicação da lei.
Por exemplo, dentre as hipóteses da qualificadora viu-se que está a violência sexual, a mutilação ou desfiguração da vítima, «antes ou após a morte». Em termos simples e objetivos isso significa que a vítima, a mulher, já está morta, mas não se verificou nenhuma das hipóteses do «feminicídio». Na sequência, o até então homicida decide praticar uma violência sexual contra o cadáver, ou destrinchá-lo para ser colocado numa mala. Agora, somente agora, restará caracterizado o «feminício». Ou seja, um «feminicídio» muito curioso, pois sua vítima não é uma mulher, mas um cadáver. Essa hipótese talvez pudesse ser denominada feminicídio zumbi.
Não há dúvida, porém, que cadáver não é pessoa, não é sujeito. E se não é sujeito, não pode ser sujeito passivo, pois não pode ser vítima de nada. Como se sabe, nem mesmo no crime de vilipêndio o cadáver é vítima, sendo a sociedade o sujeito passivo nessa hipótese.
Verifica-se ainda, ao que parece por contaminação ideológica, a utilização de termos de pouco ou nenhum significado jurídico, a exemplo da expressão «violência de gênero».
Tudo está a indicar, assim, que o «feminicídio» é uma qualificadora «para inglês ver». No campo político, seria sinônimo de demagogia; no campo jurídico, uma pedra de tropeço, ou uma obra de direito penal simbólico (assim em minúsculas).
Sobre o direito penal simbólico, a propósito, não faltam críticas na doutrina, do que é exemplo o seguinte excerto da lavra do Procurador de Justiça aposentado José Carlos de Oliveira Robaldo:
«O simbolismo do Direito Penal está justamente no fato da sua utilização, não como meio de contribuição efetiva para uma convivência pacífica, e sim, como uma forma enganosa dessa proteção, própria do político que se apresenta como ‘salvador da pátria’. ...
Aliás, (...) o momento é altamente propício para o ‘legislador simbólico’, para não dizer ‘estelionatário’ ou enganador. ...
É necessário que fique bem claro à população que leis penais, conquanto importantes para a tranqüilidade social, não são suficientes para tal. Se a lei penal, por si só, resolvesse os problemas cruciais de segurança pública, a solução para essas questões já teriam surgido há tempo! O Direito Penal nesse contexto é importante, porém, insuficiente.»
Na mesma linha o escólio de José Nabuco Filho:
«O Direito Penal simbólico, geralmente, se manifesta mediante propostas que visam explorar o medo e a sensação de insegurança. A intenção do legislador não é a real proteção dos bens jurídicos violados com o crime, mas uma forma de adular o povo, dizendo o que ele quer ouvir, fazendo o que ele deseja que se faça, mesmo que isso não tenha qualquer reflexo na diminuição da criminalidade.»
Assim, em linha de conclusão, entendemos que o PLS 292/13 não contribuirá para minorar a violência contra a mulher, trazendo quando muito, se aprovado, uma sensação momentânea de segurança, como um fogo-fátuo, típico do direito penal simbólico. Não devemos, no entanto, radicalizar, pois é certo que o PL em questão trará também benefícios às mulheres, mas não àquelas que são vítimas de violência.