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A Convenção de tortura: caso Hissène Habré e o Direito Internacional

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01/11/2016 às 18:10
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Este artigo aborda a Convenção de Tortura das Nações Unidas, sua criação, focando especificamente o caso do Pinochet da África, Hissène Habré, homem que em menos de uma década dizimou mais de quarenta mil compatriotas, através da tortura.

RESUMO: Este artigo aborda a Convenção de Tortura das Nações Unidas, sua criação, focando especificamente o caso do Pinochet da África, Hissène Habré, homem que em menos de uma década dizimou mais de quarenta mil compatriotas, utilizando-se para tal da prática da tortura, sendo exposto o desejo da Bélgica em extraditá-lo do Senegal, país que o acolheu, que apesar de signatário da Convenção de Tortura da ONU ficou inerte em não proceder ao julgamento de Habré, levando a que a Corte Internacional de Justiça, por ação da Bélgica, se manifestasse sobre tal situação.

PALAVRAS-CHAVE: Convenção de Tortura da ONU - Hissène Habré - Direito Internacional – 0NU.

ABSTRACT: ABSTRACT: This article addresses the Torture Convention of the United Nations, its creation, focusing specifically on the case of Pinochet Africa, Hissène Habré, man who in less than a decade wiped out more than forty thousand compatriots, using for that the practice of torture, being exposed to the desire of Belgium in extraditing him from Senegal, a country that welcomed him, that although a signatory to the UN torture Convention was not inert Habré to trial, leading to the International Court of Justice by action of Belgium, is manifest on such a situation.

KEYWORDS: UN Torture Convention - Hissène Habré - International law - UN.

SUMÁRIO: Introdução; 1 – Embasamento Histórico; 2 – Convenção de Tortura das Nações Unidas; 3 – Ações das vítimas; 4 – O julgamento perante a Corte Internacional de Justiça; 5 – A manifestação da Corte Internacional de Justiça; 6 – O voto em separado do juiz Cançado Trindade; Considerações Finais; Referencias Bibliográficas.


INTRODUÇÃO

A Convenção de Tortura da ONU, de 10 de dezembro de 1084 teve por objeto sanear e inibir a ocorrência de fatos tão obscuros de nossa sociedade civilizada, ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, onde foram ceifadas milhões de vidas humanas através da pratica da tortura, sendo que o Brasil veio a ratificar tal Convenção em 1989, mas percebemos nos noticiários em todo mundo a persistência da ocorrência de tais atos.

Este artigo apresentará as barbáries praticadas por Hissène Habré no período em que este a frente do governo do Chade, tentando apresentar o seu roteiro criminoso.

Na segunda parte do artigo será apresentado um pequeno histórico do caminho percorrido até a elaboração da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

O terceiro capítulo será focado na ação da vítimas e seus familiares, visando que os crimes de Hissène Habré não fiquem impunes.

O quarto capítulo aborda o julgamento do pedido de extradição de Hissène Habré, feito pela Bélgica junto a Corte Internacional de Justiça e o seu desfecho.

O quinto capítulo trata da manifestação da Corte Internacional de Justiça ante ao pedido da Bélgica e os argumentos apresentados pelo Senegal para explicar a não realização do julgamento de Hissène Habré.

O capítulo seguinte traz o voto de Cançado Trindade que fica temeroso de que as vítimas e seus familiares não assistam ao julgamento de seu algoz, frisando o juiz, em seu voto, que o tempo dos seres humanos certamente não parece ser o tempo da justiça humana.

Por derradeiro temos as considerações finais, onde são delineados as possíveis soluções para o impasse reinante ante a Bélgica que quer a extradição de Hissène Habré, em face da inércia de Senegal, calcado aquele no brocardo de Hugo Grotius, aut dedere aut judicare.


1 - EMBASAMENTO HISTÓRICO

O presente artigo tem por objeto a apresentação de uma decisão proferida pela Corte Internacional de Justiça, no ano de 2009, onde o agente provocador foi a Bélgica, que tentava conduzir ao Tribunal o presidente do Chade, Hissène Habré pela prática de crimes punidos pela Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura de 1984, tratado de direitos humanos que incorpora o princípio da jurisdição universal. 

Hissène Habré, conhecido como “Pinochet da África”, foi presidente do Chade no período de 1982-1990, quando, por um golpe, foi sucedido pelo presidente Idriss Déby, que nunca tentou extraditar Habré do Senegal, local onde se refugiou, ou tomar medidas legais contra os seus cúmplices que permaneceram no Chade.

Conforme documentado no Relatório da Comissão da Verdade do Chade, de 7 de maio de 1992, que abrangeu o período do regime (de 7 de junho de 1982 a 1º de dezembro de 1990), o ex-presidente Hissène Habré cometeu crimes sistematicamente contra a integridade física e mental das pessoas e seus bens durante o período acima referido. Determinou a morte de mais de 40 mil pessoas, resultando em mais de 80 mil órfãos, mais de 54 mil pessoas foram detidas arbitrariamente e 200 mil pessoas ficaram destituídas e privadas de apoio moral e material. A Comissão deixou claro que este foi o resultado de um padrão sistemático de ações fruto de detenções arbitrárias, de tortura, de condições subumanas durante as detenções sumárias ou arbitrárias ou extrajudiciais, massacres sucessivos ou execuções em massa, ocultação dos restos mortais, destruição de aldeias, perseguições, expulsões forçadas e pilhagens, adotando uma ditadura violenta, na qual por várias vezes promoveu violações aos direitos humanos. Foi considerado um dos mais violentos ditadores da história da África, tendo perseguido membros de quase todas as 200 etnias do país. No auge da ditadura, Habré cimentou uma grande piscina construída pelos colonizadores franceses e fez dela um centro de torturas[2].

O relatório ainda investigou o desvio de fundos públicos e concluiu que o regime de Habré deliberadamente aterrorizou a população, sendo tal atividade exercida pela polícia política, denominada de Direção de Documentação e Segurança (DDS) e pelo Serviço de Investigação Presidencial (SIP). A DDS, no início dos anos 1980, matou centenas de pessoas no episódio conhecido como “Setembro Negro”. A Comissão acrescentou que a comunicação entre o DDS e o presidente era direta, sem intermediários. O Estado-político, idealizado, ao mais alto nível do Executivo, de acordo com a Comissão da Verdade, foi realizado com predisposição à crueldade e ao desprezo pela vida humana. As execuções foram diretamente ligadas ao Presidente e os objetos recolhidos pela pilhagem foram levados diretamente para o escritório do Presidente.

Em suma, o regime de Habré, de acordo com a Comissão da Verdade do Chade, levou um reinado de oito anos de terror ao país, com pessoas que choram seus mortos em impotência completa, numa distorção abominável dos fins do Estado, e com a impunidade para tais crimes vigentes até hoje. O relatório da Comissão da Verdade do Chade foi apenas o início da saga das vítimas das atrocidades cometidas durante o regime de Habré no Chade. Sua busca por justiça tem seguido um longo caminho, tanto em nível nacional como internacional. 


2 – CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE TORTURA

Com o termino da Segunda Guerra Mundial houve uma preocupação, por parte da Organização das Nações Unidas, objetivando a eliminação da tortura na sociedade mundial, sendo tal preocupação delineada no artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Mas foi através da Resolução 39/46, da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1984 que foi promulga a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Tal dispositivo tem amparo na Carta da ONU, especialmente em seu artigo 55, de promover o respeito universal e a observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, levando, também, em conta o artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o artigo 7º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que estabelecem que ninguém será submetido à tortura ou a tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, Levando também em consideração a Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Assembléia Geral em 9 de dezembro de 1975. Tentou a Assembléia tornar mais eficaz a luta contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes em todo o mundo. A Convenção foi ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de [1989]{C}[3].

A definição de tortura pode ser encontrada no próprio corpo da Convenção, em seu artigo 1º:

Para fins da presente Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de Ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram. O presente artigo não será interpretado de maneira a restringir qualquer instrumento internacional ou legislação nacional que contenha ou possa conter dispositivos de alcance mais amplo.

A Convenção contra a Tortura (CT) materializa o entendimento a nível internacional de que a tortura ocorrida no Estado, através de seus funcionários civis, policiais, militares ou pela ação do próprio governo, sendo tal prática comum em determinados Estados, tendo conseqüências sinistras, cruéis e graves, devendo ser reprimida por leis nacionais, com maior rigor e de forma mais efetiva por todos os Estados que ratificaram ou aderiram a esta Convenção.

O artigo 2º da CT insta aos Estados a programarem todas as medidas necessárias objetivando inibir a prática de atos de tortura em seus respectivos territórios não dando margem a alegação de situações excepcionais como ameaça ou estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência, como justificação para tortura[4]{C}.

Conforme salientado pelo Protocolo Facultativo à Convenção da ONU sobre Tortura[5]{C} o artigo 1º apresenta três elementos fundamentais na definição da tortura como crime:

a) deve haver dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais;

b) as dores ou sofrimentos devem ser infligidos com um propósito ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; e

c) as dores ou sofrimentos devem ser infligidos por ou sob instigação de, ou com o consentimento ou aquiescência, de um funcionário público ou uma pessoa no exercício de funções públicas.

Muitos instrumentos nos âmbitos internacionais e regionais contêm definições alternativas de tortura. Entretanto, os três atributos acima elencados são comuns às três definições. O enfoque aceito sob o direito internacional tem buscado evitar a enunciação exaustiva de atos que podem ser considerados como característicos de tortura, devido à preocupação de que tal lista possa ser limitada em seu escopo e, portanto, falhe ao não responder adequadamente ao desenvolvimento tecnológico e dos valores das sociedades[6].

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No estudo em analise, neste artigo, temos como foco a atuação de Hissène Habré no seu governo como sendo um ato de tortura imposto a população civil de seu país e a reação das vítimas a impunidade das autoridades ao caso. 


3 - AÇÕES DAS VÍTIMAS

Este regime não seria conhecido pelo mundo, se um grupo de sobreviventes, mesmo sem nunca ter vivido um período democrático e sem conhecimento do Direito, não tivesse se unido para fazer o ditador pagar por seus crimes. Em 1999 eles formaram a Associação de Vítimas de Crimes e Repressões Políticas no Chade e procuraram a associação de direitos humanos Humans Rights Watch, sediada nos EUA, tendo o advogado Reed Brody decidido ajudá-los. Iniciou-se então, uma campanha internacional para julgar Habré. As vítimas, em parceria com organizações internacionais, iniciaram um caso contra Habré no Senegal, país signatário da Convenção contra Tortura, desde 1987, que, por este tratado, os países são obrigados a julgar ou extraditar torturadores que se encontram em seu território.

Em 25 de janeiro de 2000, em um juízo de instrução realizado em Dakar, foi feita uma reclamação por Suleymane Bale Guengueng e sete outros peticionários contra Habré, por crimes contra a humanidade, tortura, atos bárbaros, discriminação, assassinatos e desaparecimentos forçados. Ocasião em que os oito peticionários alegaram terem sido vítimas de crimes contra a humanidade e atos de tortura no Chade, entre junho de 1982 e dezembro 1990. Mas o processo foi arquivado na mesma data.

Em julho, do mesmo ano, o Senegal declarou-se incompetente para julgar Habré, sob o fundamento de que seu código penal não havia se adaptado às obrigações da Convenção contra Tortura e que assim não poderia julgar um presidente de outro país. Esta decisão foi confirmada pela mais alta corte senegalesa.

Com a intervenção do Secretário Geral da ONU, à época, o presidente do Senegal, Abdullah Wade, concordou em manter Hissène Habré sob custódia, sendo esta a terceira vez que o país se comprometera a levá-lo a julgamento. Habré foi preso em Dakar em 2005[7].

Em seguida, a Bélgica pediu a extradição de Habré, baseada em sua lei de jurisdição universal, o acusando de crimes contra a humanidade, sob o fundamento de que existiam vítimas do Regime Habré, sendo alguns com cidadania belga. Em setembro de 2005, a Bélgica expediu mandado de prisão contra Habré, solicitando sua extradição do Senegal. Em novembro do mesmo ano, a corte de cassação em Dakar, alegando que Habré como antigo chefe de Estado possuía imunidades, recusou-se a enviar o ditador à Bélgica.

O Senegal pediu que a União Africana decidisse o que deveria ser feito no caso Habré. A União Africana, em janeiro de 2006, criou uma Comissão de Notáveis Juristas Africanos para examiná-lo (Decisão 103 [VI]). No seu relatório à Assembleia de Chefes de Estado e de Governo da União Africana (2006), a Comissão, em julho de 2006, recomendou ao Senegal para processar e garantir que Hissène Habré fosse julgado, em nome da África, por um tribunal competente senegalês com garantias de um julgamento justo.

Em janeiro de 2007, o parlamento senegalês alterou o código penal para incluir os crimes contra humanidade em seu rol, abrindo uma porta para um possível julgamento de Habré. Mas no final de 2008, alegando falta de verba, não iniciou o processo, com custo estimado em 28 milhões de euros. Após muita pressão internacional, os EUA e a União Europeia concordaram em subsidiar o julgamento.

Em janeiro de 2008, a União Europeia enviou uma missão de experts ao Senegal para estudar a melhor forma de dar assistência técnica e financeira para a organização do processo, o primeiro em que um país em desenvolvimento julgará um presidente de outra nação por atos cometidos fora de seu território. Em 15 de agosto de 2008, um tribunal em N'Djamena, no Chade, julgou à revelia Hissène Habré a pena de morte por crimes contra a humanidade.

A Comunidade Econômica dos Estados do Oeste Africano (ECOWAS) é favorável a criação de um tribunal especial para julgar Habré, o qual, segundo o presidente do Senegal, se tornou um fardo muito pesado a ser carregado, compartilhando também da visão da ECOWAS, quanto à criação de um tribunal para o julgamento do antigo ditador.

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Sobre o autor
David Augusto Fernandes

Mestre e Doutor em Direito. Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, David Augusto. A Convenção de tortura: caso Hissène Habré e o Direito Internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4871, 1 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35797. Acesso em: 23 nov. 2024.

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