Democracia constitucional: tensão, elitismo, complexidade

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27/01/2015 às 23:49
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A tensão entre democracia e constitucionalismo é abordada a partir do conflito entre tirania da maioria e elitismo. O objetivo do texto é ressaltar a extrema complexidade do contexto em que essa tensão se situa e que se reflete na tensão em si.

1. Introdução

            O tema do presente artigo não é, de maneira alguma, inovador. São muitas as obras que versam sobre a tensão entre democracia e constitucionalismo, inúmeros são os autores que tratam do problema e propõem (ou não) soluções para o embate, e vários foram os trabalhos desenvolvidos nesse programa de pós-graduação abordando a questão. E esse não é um assunto apenas corrente, “da moda”: enseja a produção de tantos trabalhos justamente por sua complexidade. Por mais que se escreva sobre ele, nunca parece estar satisfatoriamente resolvido.

            Inserindo-se nesse cenário acadêmico, dificilmente esse artigo conseguiria lançar ideias de vanguarda e cheias de ousadia sobre o tema, seja pelo seu formato (artigo, e não tese de doutoramento), seja pelo número de respostas que já foram elaboradas antes. Modestamente, o presente trabalho não se volta à redescoberta da roda, mas simplesmente a (mais) uma abordagem e colocação do problema.

            A proposta se mostra interessante por dois aspectos: em primeiro lugar, pela relevância do assunto, não só para quem o pesquisa em exclusividade, mas para todos os pesquisadores do Direito. Tratar da tensão entre constituição e democracia é fundamental na definição das funções e dos limites da atuação do Direito na sociedade e no questionamento de sua legitimidade, de modo que o conhecimento da questão se revela essencial para o desenvolvimento de qualquer tese jurídica.[2]

            Em segundo lugar, pela sua já mencionada complexidade. Uma questão difícil comporta não só uma variedade de soluções possíveis, mas também um grande número de abordagens e pontos de vista. Sem pretensão de exaustividade, algumas dessas abordagens serão tratadas aqui.

            A união entre constitucionalismo e democracia tem sido tão aceita que por vezes parece absolutamente consolidada: há como pensar, nos dias de hoje, numa democracia que não seja constitucional ou vice-versa? Primeiramente, será abordada a grande aceitação desse casamento, que parece não comportar questionamentos. Em seguida, será feita uma (breve) descrição da formação dessa união, seguindo os passos trilhados por Pietro Costa,[3] já tratando de alguns dos pontos de tensão inerentes ao binômio constituição-democracia. Um desses pontos de tensão será abordado no ponto seguinte, em que será revelado o elitismo e a demofobia ocultados em muitas das preocupações teóricas acerca do tema. Por fim, serão expostos alguns dos problemas contemporâneos dessa relação, aprofundando sua complexidade. Dessa forma, talvez seja lançada mais uma luz sobre  a questão, demonstrando que aquilo que parece certo pode ser tão certo quanto uma soma matemática que não chega ao resultado esperado.[4]

2. Um problema central e inevitável: será?

            Inegavelmente, a tensão entre democracia política e Estado constitucional ocupa um lugar central em estudos de direito constitucional, ciência e filosofia política, dentre outros. Mas a centralidade do problema não implica sua inevitabilidade.

            De fato, o casamento entre as duas ideias parece ser tão perfeito que elas comumente são apresentadas numa forma indissociada. “Expressões do tipo ‘democracia constitucional’ ou Estado ‘democrático-constitucional’ parecem reforçar, com a unidade do ‘nome’, a coerência intrínseca da ‘coisa’”.[5] Como se houvessem nascido uma para a outra, constituição e democracia aparecem geralmente de mãos dadas.

            E a relação entre ambas por vezes parece óbvia:

O conceito da autoridade superior da Constituição é, por sua vez, intimamente ligada à ideia de soberania popular [...] É invocando o caráter da Constituição como uma expressão da vontade popular de limitar o exercício do poder, que sua força obrigatória sobre os diferentes ramos de governo, inclusive o legislativo, tem sido justificada e aplicada pela Suprema Corte dos EUA.[6] [grifou-se]

            Assim, é fácil encontrar manuais de Direito Público[7] que não fazem nenhuma referência ao embate constituição X democracia, simplesmente tratando as duas como inseparáveis.[8] Não se deseja criticar a escolha dos autores de tais obras, pois os assuntos abordados são resultado de opções metodológicas, mas simplesmente ressaltar que a união entre os dois termos está amplamente sedimentada, a ponto de não ser questionada por muitos.

            O mencionado casamento surgiu como “única alternativa viável” para os países ocidentais no contexto pós-Guerra Fria. Nas últimas décadas do século XX, com o término das ditaduras na Europa e na América Latina e o fim da União Soviética, o Estado democrático-constitucional consolidou-se em vários países, aceito como sistema de governo capaz de conjugar soberania popular e respeito aos direitos individuais.[9] Parecia uma resposta milagrosa a todas as inquietações políticas da humanidade (ocidental): “uma democracia que se realiza com a promoção dos direitos fundamentais e invioláveis da pessoa”.[10]

            Mas a mera afirmação de que as Democracias Constitucionais lograriam conciliar direitos individuais e soberania popular não basta para que isso se verifique na realidade. Trata-se, infelizmente, de conciliar o (ao menos inicialmente) inconciliável: a democracia parece requerer a ausência de restrições à vontade da maioria, enquanto a Constituição estabelece, necessariamente, limitações a essa vontade.[11]

            A abordagem dessa tensão, entretanto, torna-se evitável pela profunda aceitação do tal casamento. Mas a união entre democracia e constituição não nasceu no final do século XX: na verdade, a relação vem sendo construída pelo pensamento político ocidental há muito tempo. Essa construção será abordada no próximo ponto.

3. A construção do binômio democracia-constituição

            A relação entre os dois termos não surgiu repentinamente ou aleatoriamente. Pelo contrário: a ligação entre constituição e democracia foi erigida no pensamento filosófico-político ao longo do tempo. Embora não seja possível traçar uma linha de continuidade (que seria, certamente, artificial) entre as tentativas de conjugar as duas ideias, analisar a construção dessa relação traz revelações importantes.

            A palavra “democracia” surgiu na Grécia antiga e perpassou o pensamento político eurocêntrico desde os seus primórdios até a contemporaneidade. Ressalte-se que ela não pode ser pensada como um conceito eternizado, imutável no tempo, pois certamente as democracias contemporâneas não coincidem com a democracia grega – e nos mais diversos fatores (como, por exemplo, a definição do que seria o povo).[12] A palavra nem sempre foi utilizada em conotação positiva: os leitores medievais de Aristóteles frequentemente destacavam a interpretação negativa do governo democrático. O governo dos muitos (pobres) sobre os poucos (ricos) tenderia ao desequilíbrio e à anarquia.[13] Os muitos teriam propensão para se tornar uma massa irracional e incontrolável.

            Tal interpretação certamente não pode ser acusada de infundada,[14] mas não é a única possível. Dentre os leitores medievais, Pietro Costa destaca Marsilio di Padova, que optou por uma conotação positiva do termo, sustentando o primado dos muitos. Seu conceito de democracia, entretanto, também não coincide com a concepção moderna (e nem com a contemporânea), especialmente pela definição de povo.[15] O povo de Marsilio é o povo da sociedade do Antigo Regime,[16] uma entidade coletiva estruturada e diferenciada, organicamente definida.

O povo da modernidade, composto por sujeitos juridicamente iguais, soberano e fundador da ordem política, é descrito por Rousseau.[17] Ele “exprime o traço característico da democracia moderna (de conotação inegavelmente positiva): a ideia de autogoverno de um povo composto de indivíduos livres e iguais”.[18]

Mas essa é apenas a descrição da apreensão da democracia pela modernidade – que não diz nada sobre os direitos individuais protegidos pelo constitucionalismo.[19] Esses ingressam na cultura moderna pelo jusnaturalismo que, (numa definição extremamente simplificada) afirma a existência de direitos atribuídos ao homem pela natureza.[20] Existem diversos tipos de jusnaturalismo,[21] contudo, para demonstrar a entrada da temática dos direitos individuais na discussão política, não há como não falar em John Locke. A liberdade, a igualdade e a propriedade (que tem o trabalho como seu fundamento originário) são direitos que, para ele, preexistiam à sociedade e que não poderiam ser violados pelo Estado.[22] A liberdade-propriedade é a expressão jurídica da sociedade e também a condição de legitimidade do esquema político (sua violação tornaria o governo ilegítimo).[23]

É essa concepção jusnaturalista dos direitos que é defendida na Revolução Francesa. A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão é um ato de reconhecimento dos direitos atribuídos pela natureza, e não um ato que os cria e os funda despótica e artbitrariamente.[24]

            Assim, “democracia e direitos procedem por linhas distintas na árvore da modernidade, mas encontram nas revoluções no final dos Setecentos a oportunidade de uma intersecção reciprocamente fecunda”.[25] É estabelecida uma relação de complementaridade: de um lado, os direitos naturais como fundamentos da nova ordem, e do outro, o papel criativo do poder constituinte, que tem o povo como titular da soberania.

            Mas a complementaridade não elimina a tensão. Direitos fundamentais dos sujeitos e soberania do povo foram princípios irrenunciáveis da revolução, porém sua compatibilidade é problemática. A soberania popular não tolera limites e revela a ilegitimidade da existência de uma carta de direitos imodificável oponível a gerações futuras. Ao mesmo tempo, os direitos fundamentais (ainda vistos como naturais) são inegociáveis e indisponíveis.[26] Para os liberais oitocentistas, a balança pende para o lado dos direitos fundamentais, já que a democracia é a principal ameaça aos direitos. Ao conceder direitos políticos a indivíduos desprovidos de propriedade e de “qualidades”, funda a “tirania da maioria”, que tende ao caos.[27]

            No século XIX, o paradigma jusnaturalista será substituído pelo positivismo jurídico e pelo historicismo: os direitos fundamentais não são mais derivados da natureza, mas sim do direito positivo ou da história (respectivamente). Seja qual o fundamento adotado, ele recai na figura do Estado (como legislador ou como produto da história).[28] Nesse cenário, a obra de Hans Kelsen parece solucionar a tensão anteriormente mencionada. Se Estado e direito são a mesma coisa, pois o Estado é o ordenamento, atenua-se a oposição entre poder e direito. A essa ideia soma-se a formulação kelseniana do controle de constitucionalidade, que propicia a verificação da lei pelo Judiciário: a lei torna-se controlável e os arroubos da maioria podem ser contidos pelos julgadores.[29]

            Entretanto, a superação da tensão é apenas aparente. Mesmo que o controle de constitucionalidade assegure a possibilidade de controle da atividade legislativa, nada impede que a maioria modifique a constituição e altere o catálogo de direitos.[30] O problema persiste e adquirirá novamente posição central no século XX. Após a queda das ditaduras que marcaram esse século (sejam elas europeias ou latino-americanas), reforça-se a complementaridade entre democracia e direitos. Os direitos fundamentais são condições para uma completa realização humana e representam empecilhos ao “aniquilamento totalitário da autonomia individual”.[31]

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            Todavia, surge a necessidade de “descolar” tais direitos da figura estatal e, simultaneamente, retirá-los da disposição da maioria. Isso representou um certo retorno ao “jusnaturalismo em sentido amplo”, mediante a afirmação da origem inata dos direitos fundamentais (que derivariam da própria condição humana) e de seu caráter originário, o que determina seu funcionamento como critério de legitimidade do Estado.[32]

            Essa reelaboração, contudo, não escapa do problema anterior. Além disso, surgem outras questões, que serão expostas a seguir.

4. Por trás da tensão: tirania da maioria ou elitismo e demofobia?

            No ponto anterior, os perigos da “tirania da maioria” foram rapidamente mencionados. Os teóricos liberais oitocentistas trataram cuidadosamente do tema.

            Uma das primeiras abordagens do problema constava da série de ensaios que compõem “O Federalista”. Tais ensaios, obra conjunta de Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, foram publicados pela imprensa de Nova York em 1788 e defendiam a ratificação da Constituição dos EUA pelos Estados.[33]

            Em “O Federalista n. 10”, James Madison trata do mal das facções. Segundo ele, qualquer União deve poder quebrar e controlar a violência dessas facções. Existiram duas formas de lidar com elas: removendo as causas que levaram à sua formação ou lidando com seus efeitos. Madison descarta a primeira opção, pois a diferença de opinião faz parte da natureza humana, e considerando esse fato, a única maneira de impedir a formação das facções seria restringindo a liberdade de pensamento dos cidadãos, o que para ele era absolutamente inaceitável. Trata-se, portanto, de lidar com seus efeitos perniciosos.[34]

            Tais efeitos surgem quando a maioria constitui uma facção. Nesse caso, ela se torna opressora e pode sacrificar o direito dos demais cidadãos em seus próprios interesses. Como é inevitável a formação de facções e das paixões que as originam, “a maioria, coexistindo com tais paixões e interesses, deve ser incapacitada, quantitativa e localmente, de tramar e executar esquemas de opressão”.[35]

            Alexis de Tocqueville, em “A Democracia na América”, também aborda o problema da tirania da maioria, dedicando a ela um capítulo próprio.[36] Ele vê que a democracia pode facilmente se tornar tirania. A cultura igualitária de uma maioria, para ele, pode impedir a manifestação das minorias: ideias que escapassem ao considerado “normal” pela maioria não poderiam prosperar. Aqui, Tocqueville também está preocupado com o destino das artes, da filosofia e das ciências, e não só com questões políticas. Ele também alerta para o crescente desprestígio da ação política e de como a maioria pode se deixar governar.[37]

            Um terceiro teórico liberal que também abordou (em “Sobre a liberdade”) os perigos do governo majoritário foi John Stuart Mill. Afirmando que as democracias se estendiam, à época (meados do século XIX), por vários países, seus problemas não poderiam ser ignorados:

Agora era perceptível que frases como “autogoverno” e “o poder do povo sobre si mesmo”, não expressam o verdadeiro estado do caso. O “povo” que exerce o poder não é sempre o mesmo povo sobre o qual ele é exercido; e o “autogoverno” mencionado não é o governo de cada um por si mesmo, mas de cada um por todo o resto. A vontade do povo, ainda, praticamente significa a vontade dos mais numerosos ou da parte mais ativa do povo; a maioria ou aqueles que conseguem se fazer aceitos como maioria: o povo, consequentemente, pode desejar oprimir parte de seu contingente; e precauções são necessárias contra isso, tanto como o são contra qualquer abuso de poder.[38] [grifou-se]

Numa democracia, há sempre o risco da maioria eliminar a possibilidade de “autogoverno” das minorias. E essa tirania pode ser ainda pior que outras de suas formas, pois ela pode penetrar nos “detalhes da vida”, indo além do que seria alcançado pelas mãos dos funcionários do Estado.[39] Mill se preocupa em encontrar o limite da legítima interferência do coletivo sobre as vidas individuais dos cidadãos (ele é um liberal, afinal), mas sabe que a tarefa é árdua: normas de conduta precisam ser impostas pelo Estado, e o conteúdo dessas normas é variável no tempo e no espaço - nas diversas sociedades.[40] Por isso, não há como predeterminá-lo. Entretanto, o autor demonstra exemplos concretos dessas violações coletivas da liberdade individual, como em aspectos de liberdade religiosa, e isso a partir de diferentes religiões. Ele explana que até mesmo nos EUA (grande símbolo de democracia) essas violações são muito comuns.[41]

            Ora, diante de tantos problemas o delicado equilíbrio entre direitos fundamentais (e constitucionalismo) e democracia parece ganhar novas razões para existir, para ser mantido. Uma forma de conter a maioria tirânica seria justamente estabelecer limites para essa vontade popular, limites esses determinados pelo constitucionalismo.

Mas não há porque emitir julgamentos precipitados. Aparentemente, todos os perigos apontados pelos mencionados autores parecem seríssimos. Suas ponderações devem ser levadas em conta, sem dúvida, mas é preciso analisar o que estava “por trás” de todo esse medo da maioria. Roberto Gargarella trata do contexto social que antecedeu a confirmação da Constituição pelos Estados e os temores concretos que embasaram a teorização sobre a “tirania da maioria”.[42] Após a guerra da independência, muitos estadunidenses estavam endividados e não havia perspectiva de melhora, pois o período pós ruptura com a Inglaterra foi marcado por uma crise econômica. Sem uma autoridade central forte, as minorias temiam a anarquia.[43]

            O traço mais interessante apontado por Gargarella é justamente a determinação de quem era essa minoria. Ora, eram justamente os poucos grandes proprietários e credores.[44] Iniciou-se uma série de pequenas revoltas populares contra as Legislaturas que não aceitavam as demandas dos endividados e contra o Poder Judiciário, que havia estabelecido em vários Estados a pena de prisão para aqueles que não cumprissem com suas obrigações. As Legislaturas começaram a ceder e tomar medidas favoráveis ao povo, o que preocupou a mencionada minoria.[45]

Os delegados que integraram a constituinte foram influenciados por essas preocupações e se concentraram em alterar o processo de tomada de decisões para evitar a “traiçoeira usurpação do poder pelas Legislaturas”.[46]Assim, e buscando essa finalidade, foi elaborado o arranjo institucional dos EUA, tão copiado em todo o mundo: sistema de freios e contrapesos (dando poderes ao Executivo e ao Judiciário para coibirem os excessos do Legislativo) e Poder Legislativo bicameral (se a Câmara se perdesse nos arroubos majoritários, ainda poderia ser contida pelo Senado).

            Os antifederalistas, adversários dos federalistas (por óbvio), questionavam a justificativa de tantos entraves ao Legislativo, já que era nele que o poder do povo encontrava seu lugar. Qual a legitimidade dessa diluição da vontade coletiva ou do estabelecimento de filtros para distorcer a voz pública?[47]

Esse modelo parece estar baseado, finalmente, em supostos muito discutíveis: a ideia de que os representantes podem discernir com maior clareza que os cidadãos as causas e remédios dos males que acometem o povo; uma radical desconfiança dos órgãos coletivos; a certeza que nas assembleias públicas a “paixão sempre toma o lugar da razão”; etc.[48] [grifou-se]

             

            Por trás de uma aparente preocupação genuína com as minorias estava o elitismo. O arranjo estabelecido na Constituição estadunidense era de corte aristocrático, revelado especialmente pelo Senado, considerado uma reprodução da Câmara dos Lordes britânica.[49]

            O elitismo baseava-se tanto na crença de que uma minoria socialmente favorecida (aristocrática) estaria mais preparada para governar (intelectualmente, financeiramente...) que o povo; quanto no medo do que o povo poderia fazer se deixado a se autogovernar. Essa demofobia[50] esteve presente nos modelos constitucionais modernos (marcadamente as Constituições dos EUA e da França) e tem efeitos na contemporaneidade.

            O pensamento liberal oitocentista pode, nesse sentido, ser considerado elitista e demófobo.[51] Na verdade, o elitismo e a demofobia estão por trás não só do medo da tirania da maioria, mas também da própria tensão entre constitucionalismo e democracia. Nas entrelinhas do embate está o pânico da irracionalidade das massas, da ignorância do povo. E esse medo não está só nas teorias, sejam elas de constitucionalistas, cientistas políticos ou outros “das ciências humanas”, está também na boca do povo, no senso comum do dia-a-dia.[52]

Hoje, qualquer menção à tirania da maioria pode evocar ideias muito diversas daquelas que motivaram os pensadores mencionados. Um leitor inadvertido, num primeiro contato com tais obras, pode fazer uma relação com o cenário atual e preocupar-se com as minorias desprotegidas. Certamente ele acreditaria no “potencial democrático” de tantas preocupações com essa possível tirania.[53] Mas não há como aceitar e acatar as ideias desses teóricos sem conhecer as razões por trás das teorizações. Esse conhecimento é importantíssimo para a filtragem na análise dessas ideias e demanda grande cuidado nas aproximações com o contexto atual. Nada disso significa, porém, que todo o conteúdo exposto nesse ponto deve ser sumariamente descartado – o que leva à próxima etapa do presente trabalho.

5. Outros problemas contemporâneos (ou considerações nada finais)

            É possível ir além de todos os problemas já apontados na tortuosa relação entre democracia e constitucionalismo. A inegável tensão entre o governo democrático, que nega limites à soberania popular, e o constitucionalismo, que impõe limitações à vontade do povo, especialmente através da determinação de direitos fundamentais, torna-se ainda mais complexa na contemporaneidade.

            Um aspecto importantíssimo é que a Constituição e os direitos por ela protegidos adquirem seu fundamento, sua legitimidade e sua razão de ser justamente na democracia. O princípio democrático é, inclusive, definidor do que é o direito. Muitos buscaram outros fundamentos para as cartas constitucionais e o direito como um todo. Afirmou-se que o direito seria mais uma razão que uma vontade, e por isso não poderia ser confundido com a vontade do povo soberano. Mas para provar tal postulado seria necessário demonstrar a existência de processos internos (“substanciais”, e não só procedimentais, científicos) de controle de suas proposições – internos ao sistema jurídico. O conteúdo do direito deveria ser comprovadamente objetivo. Como não é possível a produção de tais provas, já que não há conclusões definitivas ou geralmente aceitas sobre conteúdos de direito objetivamente válidos, o princípio democrático continua ser um elemento relevante na caracterização do direito. É ele que autoriza o reconhecimento de algo como direito: o direito é aquele que é democraticamente produzido.[54]

            A partir da constatação dessa complexidade, é tentador buscar uma amálgama para a solução do binômio constitucionalismo-democracia: bastaria colocar ênfase nos denominadores comuns, destacar que a legitimidade de cada uma das partes do binômio se imbrica uma na outra. Em relação à Constituição (ao Direito), ressalta-se que sua legitimidade está no princípio democrático (conforme acima explicitado). Em relação à democracia, basta colocar os direitos fundamentais ou os direitos humanos[55] como patrimônio do Estado democrático. Esses direitos seriam, por sua vez, também legitimadores de todo o direito. O valor dos direitos humanos/fundamentais seria potencializado pelo valor “vontade popular” – presume-se um consenso sobre a importância, relevância e indispensabilidade de tais direitos (um consenso sobre a dignidade política desses direitos, em outras palavras).[56]

Outra forma de colocar essa relação de legitimação mútua é afirmar de que a participação democrática exige, como condição para o seu exercício pelos cidadãos, a garantia de alguns direitos. Não haveria como cogitar de participação na esfera política sem garantias mínimas de dignidade. Dessa forma, os direitos fundamentais seriam necessários à democracia ao mesmo tempo em que eles se fundamentariam no fato de serem requisitos para a discussão democrática.[57]

            Formalmente, tudo parece estar disposto numa legitimação circular, que conecta indissociavelmente os dois pólos do binômio. Porém, ao passar para um plano substancial esse frágil consenso desaparece. Não há uma enumeração universalista dos direitos fundamentais, não há consenso sobre quais são os direitos mínimos necessários para a participação democrática.

            A Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembleia Geral da ONU em 1948, traz direitos que, conforme seu título, deveriam ser universais, mas que são desrespeitados sempre, inclusive juridicamente - no sentido de que violações a eles são estabelecidas nas leis de muitos países. Alguns mantêm a pena de morte (como os EUA), alguns são governados de forma não democrática (como o Vaticano), outros estabelecem normas que discriminam em razão do sexo (Portugal, Espanha) ou da religião (de forma atenuada, em Portugal e na Inglaterra), e tantos outros “infringem as garantias individuais de segurança relativamente à prisão sem culpa ou às garantias básicas de defesa” (nos EUA, com o Patriot Act, e na Inglaterra).[58]

            Além disso, “não deixa de ser estranho que as culturas jurídicas não europeias não tenham conseguido introduzir no catálogo nem um único valor político próprio”.[59] O problema do conteúdo dos direitos fundamentais é complexo, extenso e vem sido amplamente discutido por pensadores de diferentes áreas. Obviamente, não há como esgotar o tema, mas não há como ignorá-lo ao tratar do binômio constitucionalismo-democracia.

A conquista da igualdade dos direitos não considerou e nem incentiva o reconhecimento das diferenças. O afã homogeneizador triunfou sobre a pluralidade e a diversidade.[60] O estabelecimento de um catálogo fixo e universal de direitos humanos acaba por não atender a nenhuma comunidade humana em concreto. E não há como alcançar esse objetivo: “Nada, nem a justiça, nem a dignidade, e muito menos os direitos humanos, procedem de essências imutáveis ou metafísicas que se situem mais além da ação humana para construir espaços onde desenvolver as lutas por dignidade humana”.[61]

Nos países latino-americanos, em que os direitos fundamentais estão constitucionalmente protegidos mas não são assegurados à maior parte da população, só  a sua efetivação já representaria um enorme avanço. Nesses casos, a mera aplicação da lei seria por si só uma atuação revolucionária. Mesmo assim, não há como esquecer que sua execução pode deflagrar situações de injustiça: é preciso analisar porque se reconhecem uns direitos e não outros, e por quais processos esses direitos foram selecionados como dignos de proteção – dignos do adjetivo “fundamentais”.[62]

Somente uma minoria de cidadãos privilegiados pode desfrutar de tais direitos e a sua construção corresponde aos seus ideais de uma vida digna.[63] [64] E aqui há algo de curioso: o temor da ditadura da maioria se realiza. Num primeiro olhar, ela parece se realizar de forma invertida, com a minoria tiranizando a maioria. Mas, lembrando das palavras (já citadas) de John Stuart Mill, a maioria são aqueles que conseguem se fazer aceitos como maioria. Numa democracia, o conceito de maioria não é quantitativo, mas qualitativo. É só uma minoria quantitativa de privilegiados que usufrui e define os direitos fundamentais, mas ela representa uma maioria qualitativa, a verdadeira maioria, a que expressa a “vontade do povo” muitas vezes nos pleitos democráticos.

A maioria quantitativa composta pelos desprotegidos e excluídos, verdadeira minoria qualitativa, é oprimida pelos dois componentes do binômio: tanto pelo constitucionalismo e seus direitos fundamentais, como pela democracia nos moldes contemporâneos (no modo como ela é realizada nos países atualmente).

As ideias dos liberais oitocentistas mencionados no ponto anterior, portanto, não podem ser descartadas completamente. Elas fazem sentido no contexto contemporâneo na medida em que apontam a necessidade de avaliar o próprio processo democrático e averiguar o quão democrático ele de fato é.

Dessa forma, a tensão entre constituição e democracia, tensão essa que é constitutiva da “democracia constitucional”, revela-se em toda a sua complexidade. O que foi unido e reproduzido por muitos dos países do mundo, a ponto de parecer indissociável, repousa sobre um conflito originário entre a soberania popular que não tolera limites e a necessidade de limitação do poder.

Mas além disso, esse binômio oculta o elitismo e a demofobia, o temor do que pode ser gerado por um povo sem limites. O medo da “tirania da maioria” e a necessidade de imposição de limites aos seus poderes oculta o preconceito elitista presente em boa parte das teorizações sobre democracia dos oitocentos.

E indo ainda mais além, ele revela uma questão de legitimidade mútua ou circular: democracia e constitucionalismo/direitos fundamentais se imbricam e fundamentam um ao outro. Todavia, esse imbricamento não soluciona a tensão pois ainda não há como solucionar um outro problema, esse referente ao conteúdo dos direitos fundamentais. O processo de determinação e efetivação desses direitos, por sua vez, demonstra que de fato há que se preocupar com a opressão de parte dos cidadãos por outros alcançada por meios aparentemente democráticos.

            Essa legitimação mútua parece indicar, porém, que talvez seja necessário conviver com esse binômio e seguir buscando algum tipo de equilíbrio delicado – e continuamente corrigido – entre constitucionalismo e democracia. Mas mesmo assim, não está tudo certo. Nunca estará tudo certo. Ou melhor: talvez um dia esse equilíbrio esteja certo – certo como dois e dois são cinco.

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Sobre a autora
Juliana Pondé Fonseca

Doutoranda em Direito na Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora Visitante na Yale Law School em 2014 (EUA - Programa Doutorado Sanduíche no Exterior - CAPES). Bolsista da CAPES - PROEX. Possui graduação e mestrado em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professora universitária e professora de cursos de Pós-Graduação em Curitiba.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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