Aspectos jurídicos da atuação policial militar em ocorrências envolvendo uso de som automotivo

29/01/2015 às 22:29
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A dinâmica de atuação policial face as ocorrências envolvendo o uso de som automotivo gera inúmeras dúvidas procedimentais e jurídicas. O artigo visa conjugar o conhecimento da atividade rotineira com a legislação vigente.

O presente artigo tem por escopo elucidar algumas questões jurídicas e práticas acerca da atuação policial militar em ocorrências envolvendo o uso de som automotivo. Para a consecução de tal objetivo o estudo faz uma análise ampla e conjuntural das diversas situações fáticas buscando a subsunção aos tipos penais e aos enquadramentos administrativos previstos na legislação pátria. Toda a hermenêutica jurídica é baseada no estrito cumprimento do princípio da legalidade na atuação policial.


Introdução

A atividade policial é complexa, dinâmica e intrinsecamente ligada à legislação vigente. O princípio da legalidade, norteador constitucional das ações, impõe ao agente público o dever de fazer somente o que está previsto em lei e não deixar de fazer o que a legislação impõe, ou seja, atuar secundum legem. O célebre constitucionalista Hely Lopes Meirelles ensina que:

 A legalidade como princípio da administração significa que o administrador público está, em toda sua atividade funcional sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido (MEIRELLES, 2009. Pág. 89).

Com fulcro na base principiológica, doutrinaria e constitucional é perceptível que a atuação policial, durante a manutenção ou restabelecimento da Ordem Pública, fica adstrita ao cumprimento dos dispositivos legais previstos em legislação vigente, não sendo facultado ao policial inovar nos procedimentos.  Nesse sentido, urge evidenciar os procedimentos a serem adotados segundo o ordenamento jurídico brasileiro.


Vertente administrativa de atuação

O uso do aparelho de som do veículo, dentro dos limites impostos pela legislação, é autorizado pelo Código de Trânsito Brasileiro (Lei n° 9.503/97). Assim prevê o art. 228 do mencionado diploma:

Art. 228. Usar no veículo equipamento com som em volume ou frequência que não sejam autorizados pelo CONTRAN:

Infração - grave;

Penalidade - multa;

Medida administrativa - retenção do veículo para regularização.

O uso abusivo é vetado. Conforme Resolução n° 204/2006 – CONTRAN – assim dispõe:

Art. 1º. A utilização, em veículos de qualquer espécie, de equipamento que produza som só será permitida, nas vias terrestres abertas à circulação, em nível de pressão sonora não superior a 80 decibéis – dB (A), medido a 7 m (sete metros) de distância do veículo.

Desse modo, na esfera administrativa de atuação policial militar as medidas previstas só serão tomadas com a aferição feita por aparelho aprovado pelo INMETRO e homologado pelo DENATRAN. No Auto de Infração de Trânsito (AIT), obrigatoriamente, deverá ser lançada a pressão sonora constada. No caso de atuação administrativa NÃO CABE REMOÇÃO do veículo. A medida será a retenção para regularização. Na atual conjuntura os órgãos policiais não dispõem de aparelho para aferição. Depreende-se que caso o policial militar vislumbre um veículo, devidamente estacionado, com som ligado ele não poderá tomar as medidas administrativas sem a prova técnica.

Cabe evidenciar que a ordem para o cidadão desligar ou abaixar a frequência sonora é ilegal sem a aferição. Ele pode ouvir o som até a pressão descrita na resolução, desde que não haja contravenção de perturbação do sossego ou tranquilidade. No caso da atuação administrativa, munidos de aparelho para aferição, a recusa em desligar ou abaixar o som não configura crime de desobediência, mas sim infração de trânsito. Tal entendimento já foi sedimentado na seara jurisprudência, conforme decisão da Sexta Turma do STJ, por ocasião do julgamento do REsp 1.374.653, assim descrito “que a previsão em lei de penalidade administrativa ou civil, para a hipótese de desobediência à ordem legal, afasta o crime de desobediência (Art. 330 , CP )”.

Existem exceções para atuação policial baseada na aferição, conforme art. 2° da retromencionada Resolução:

Art. 2º. Excetuam-se do disposto no artigo 1º desta Resolução, os ruídos produzidos por:

I. buzinas, alarmes, sinalizadores de marcha-à-ré, sirenes, pelo motor e demais componentes obrigatórios do próprio veículo;

II. Veículos prestadores de serviço com emissão sonora de publicidade, divulgação, entretenimento e comunicação, desde que estejam portando autorização emitida pelo órgão ou entidade local competente.

III. Veículos de competição e os de entretenimento público, somente nos locais de competição ou de apresentação devidamente estabelecidos e permitidos pelas autoridades competentes. (grifos nossos).

Nesse caso deve-se fiscalizar a autorização emitida por órgão ou entidade local competente. Não havendo tal documento a ordem para que cesse a emissão de frequência sonora independerá da aferição por aparelho previsto. No caso apresentado não há enquadramento administrativo para conduta. Não acatando a ordem de sanar a irregularidade deverá ser conduzido por desobediência.

No enveredar da análise administrativa é imperioso citar o art. 229 do CTB, assim dispõe:

Art. 229. Usar indevidamente no veículo aparelho de alarme ou que produza sons e ruído que perturbem o sossego público, em desacordo com normas fixadas pelo CONTRAN:

Infração - média;

 Penalidade - multa e apreensão do veículo;

 Medida administrativa - remoção do veículo.

Nesse caso específico, a limitação imposta pelo CONTRAN foi de 104 decibéis, conforme Resolução n° 35/98. O agente não poderá confeccionar o Auto de Infração de Trânsito sem a prova técnica. No artigo em baila a medida administrativa é a remoção do veículo.


Vertente Criminal de atuação

Na esfera criminal o uso indiscriminado do som automotivo poderá configurar crime de poluição sonoro, perturbação do sossegou, trabalho ou da tranquilidade.

3.1 Caso de uso de som automotivo com cometimento de contravenção penal

Na seara do Decreto Lei n° 3.688/41 – Lei das Contravenções Penais (LCP) – a utilização do som poderá levar ao cometimento da contravenção de perturbação do sossego, trabalho ou da tranquilidade, conforme dispositivos citados abaixo:

Art. 42. Perturbar alguem o trabalho ou o sossego alheios:

I – com gritaria ou algazarra;

II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;

III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;

IV – provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda:

Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

Art. 65. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável:

Pena – prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

O presente artigo não visa elucidar os tipos de contravenções, mas para a compreensão sistemática do tema se faz necessários alguns apontamentos. A diferença jurídica dos dois tipos penais deve ser conhecida pelo policial militar com o fito de subsidiar a narrativa no corpo do histórico do Boletim de Ocorrência (BU). A perturbação do sossego ou do trabalho tem no caput o seguinte texto: “Perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheios”. O cerne da celeuma jurídica é o termo “alheios”. Assim vem decidindo os tribunais:

Processo:            ACR 70057698623 RS

Relator:                Gaspar Marques Batista

Julgamento:        03/07/2014

Órgão julgador:  Quarta Câmara Criminal

Ementa

APELAÇÃO. PERTURBAÇÃO DO SOSSEGO ALHEIO. ARTIGO [42], I E III, DALCP. NÃO CARACTERIZADA. INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. ABSOLVIÇÃO. RESISTÊNCIA E DESACATO. PALAVRA DE POLICIAIS. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. ABSOLVIÇÃO. PROVIMENTO.

A) A configuração da perturbação do sossego exige que a conduta perturbe o trabalho ou sossego alheio de modo significativo, diante de um número expressivo de pessoas. Esse tipo contravencional tutela a paz e tranqüilidade da coletividade e não apenas o sossego de um indivíduo considerado isoladamente. Não há testemunhas arroladas que indiquem a perturbação de uma coletividade, sendo imperativa a absolvição. B) A palavra de policiais, quando diretamente envolvidos nos fatos, deve ser acolhida com prudência. Apontados os crimes apenas pelos ofendidos, não há a certeza necessária para a manutenção da condenação pelos delitos de resistência e desacato. Recurso defensivo provido. (Apelação Crime Nº 70057698623, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Gaspar Marques Batista, Julgado em 03/07/2014).

A interpretação literal da decisão, jurisprudência reiterada e acolhida em todos os tribunais, permite asseverar que para o cometimento da contravenção do art. 42 é necessário que o uso do som automotivo venha a perturbar uma coletividade. Para que transgrida o tipo previsto no art. 65 basta que uma pessoa tenha sua tranquilidade afetada. Outro ponto relevante é a necessidade de identificação da vítima para os procedimentos de praxe. Na atual conjuntura jurisprudencial, relativa ao conjunto probatório, os tribunais vêm entendendo que o a denúncia anônima não dá suporte para configuração do tipo. Na mesma linha entendem que o policial militar não poderá entrar como vítima da perturbação do trabalho se efetivamente o exercício de sua função não foi afetada. Além disso, para a caracterização das contravenções não é necessária à prova técnica, ou seja, a aferição por aparelho específico.

Ultrapassado os breves apontamentos adentramos aos procedimentos operacionais a serem adotados. Constatada a contravenção penal o policial militar deverá realizar a identificação cabal do responsável pelo veículo e da (s) vítima (s). Conferir a situação de estacionamento do veículo, toda a documentação do proprietário e do automóvel para verificar a situação da Carteira Nacional de Habilitação e se há queixa de furto/roubo do veículo. Arrolar as testemunhas presenciais. Em conformidade com o Código de Processo Penal realizar a remoção do veículo até a presença da Autoridade de Polícia Judiciária para avaliação da necessidade de perícia.

É importante salientar que em algumas cidades o serviço de remoção, alicerçado na legislação contratual, não realiza a remoção até o Departamento de Polícia Judiciária, pois não há previsão de pagamento. Assim, o policial deverá realizar o teste de efetividade do aparelho sonoro na presença do proprietário, testemunhas e vítima. Descrever as características dos equipamentos existentes e circunstanciar tudo no histórico do BU. Posteriormente irá devolver a posse do bem ao proprietário, não custodiando o bem. Narrar à justificativa jurídica da não remoção. Após as medidas relativas ao automóvel deverá conduzir o perturbador ao Departamento de Polícia Judiciária. A vítima e as testemunhas não são obrigadas a deslocarem até a unidade policial.


Crime de Poluição

O artigo 54 da Lei 9.605/98 com a seguinte redação:

Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

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A norma penal acima é considerada tipo penal em branco. Nesse caso, necessita de complemento. O Conselho Nacional de Meio Ambiente deixou a complementação a cargo da ABNT. Assim, conforme NBR n° 10152, cada local tem seu limite estabelecido (Anexo III). Utilizando o aparelho para aferição poderá ser constatada a infração de trânsito e o crime ambiental.

Horário para utilização de som

Conforme doutrina e jurisprudência nacional não existe horário para a existência da contravenção penal de perturbação. Os municípios regulamentam o uso de frequência sonoro por intermédio de Lei Municipal conhecida popularmente como Código de Postura. Na maioria esmagadora a permissão para emissão de ruídos fica entre 22 horas ás 06 horas.

A fiscalização fica a cargo do poder executivo. A importância do Código de Postura municipal está em subsidiar a ordem legal do policial quando da determinação para que o cidadão desligue ou abaixe a frequência sonora. No período cronológico acima a ordem torna-se legal, independente da existência de aparelho para aferir, configurando o crime de desobediência o não acatamento da imposição. Ademais, tal legislação também delimita locais em que a utilização de som é proibida a qualquer hora ou em determinado período, como próximo a hospitais, escolas e igrejas.

Casos de Portarias do Ministério Público ou poder Judiciário

Levando em consideração os aspectos geográficos, cronológicos e festivos em alguns municípios o Ministério Público ou Poder Judiciário, após constatação da rotineira quebra da ordem pública por perturbação, emitem Portarias determinando que a Polícia Militar tome todas as providências criminais alicerçada apenas em ligação via 190. Nesse caso, o policial militar que atendeu a denúncia será a testemunha da perturbação.  Cabe ressaltar que muitas destas portarias permitem a denúncia anônima como solicitação para atuação policial. O policial deverá realizar os procedimentos criminais, pois os administrativos continuam dependentes da prova técnica.


Conclusão

Como agente público o policial militar deve pautar suas ações e procedimentos no estrito campo da legalidade. No que tange a atuação em ocorrências envolvendo a utilização de som deve atentar para as seguintes diretrizes:

Para a confecção do Auto de Infração de Trânsito com base nos artigos 228 e 229 do CTB o agente deve dispor de aparelho aprovado pelo INMETRO e homologado pelo DENATRAN. Urge a necessidade da prova técnica de frequência sonora acima de 80 decibéis para transgressão do art. 228. Excetuam-se o uso de dispositivos sonoros como alarmes, buzinas e outros, pois a previsão é de 104 decibéis. Além disso, os veículos destinados à propaganda, competição de som e entretenimento deverão possuir autorização específica.

Na esfera criminal, para configuração da perturbação do sossego ou do trabalho (art. 42) é necessário que atinja uma coletividade e sejam identificadas as vítimas. Não há necessidade de prova técnica. O veículo deverá ser removido até a presença da Autoridade de Polícia Judiciária para análise da necessidade de perícia. Para configuração da contravenção de perturbação da tranquilidade (art. 65) basta a identificação de uma única vítima. Não existe horário pré-definido para que ocorram as contravenções mencionadas. O policial, caso constate a infração de trânsito por aparelho e um das contravenções penais, deverá realizar os procedimentos administrativos e criminais. Não há dupla punição pelo mesmo fato, pois são esferas distintas.


Referência

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.688, de 03/10/1941. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm. Acesso em 22.01.2015, 08:25 hs.

BRASIL. Lei n° 9.605, de 12/02/1998. Dispõe sobre os crimes ambientais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm. Acesso em: 21.01.2015, 10:25hs.

CONTRAN. Conselho Nacional de Trânsito. Resolução n° 204/2006. Disponível em: http://www.denatran.gov.br/resolucoes.htm. Acesso em: 21.01.2015, 09:35hs.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Jurisprudência. Disponível em http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/127292301/apelacao-crime-acr-70057698623-rs/inteiro-teor-127292311. Acesso em: 20.01.2015, 22:10hs.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 35º edição, Malheiros, 2009, p. 89.

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Sobre o autor
Carlos Serrano

Tenente na Polícia Militar do Espírito Santo<br><br>Bacharel em Ciências Militares (Curso de Formação de Oficiais) pela Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. <br><br>Bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).<br><br>

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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