1. CONSIDERAÇÕES GERAIS
O Direito corresponde à exigência essencial e indeclinável de uma convivência ordenada, pois nenhuma sociedade poderia subsistir sem um mínimo de ordem, de direção e de solidariedade: ubi societas, ibi jus. É a razão pela qual o grande jurista Santi Romano o concebia, antes, como “realização de convivência ordenada.”
Assim, para Carlos Cossio e sua Teoria Egológica, o Direito possui como objeto principal a conduta humana:
“Esta es la libertad metafísica que se fenomenaliza en el mundo. Pero la libertad no puede ser caracterizada correctamente como un puro poder ser ya que no hay algo así como una pura explosión hacia la nada sino que la libertad va adelantando su futuro. Por ello – en relación a esse futuro ya adelantando su futuro – la libertad se caracteriza mejor como un deber ser, un deber ser existencial. Este deber ser existencial, fenomenalizado, es, repetimos, la conduta”[1]
Como ramo do Direito que é, o Direito Penal não escapa a essa função reguladora da conduta humana. Entretanto, já que constitui a forma mais grave de intervenção estatal - conseguindo, inclusive, ir de encontro a cláusulas pétreas garantidas constitucionalmente - a conduta humana aqui adquirirá um novo sentido e, data venia, uma importância muito maior.
É por isso que o conceito de conduta, ao longo do tempo, sempre ocupou o centro de muitas discussões, especialmente com referência à determinação dos critérios necessários para sua identificação e à função que por ela é realizada na seara penal. Entretanto, antes de adentrarmos num estudo acerca da ação e de suas teorias, visando a uma melhor compreensão, é necessária a exposição de alguns elementos básicos da Teoria do Crime, um dos pilares da Dogmática Penal.
A “Teoria do Crime”, ensina Zaffaroni, é a parte da ciência do direito penal que se ocupa de explicar o que é o crime em geral, isto é, quais as suas características essenciais. Essa explicação não é apenas um mero discorrer sobre o delito com interesse puramente especulativo, mas atende à função essencialmente prática, consistente na facilitação da averiguação da presença ou ausência de delito em cada caso concreto[2].
Como produto da dogmática, a teoria do delito parte de um direito positivo, ordenando e sistematizando as regras jurídicas que condicionam a possível responsabilidade penal de uma pessoa. Essa ordenação e sistematização facilita a interpretação e a aplicação prática dessas regras. Complementando essa ideia, Juan Bustos e Hernan Hormazabal observam:
“En tanto que las normas están integradas dentro de un sistema, su interpretación obliga a considerarlas en su conjunto de modo que guarden coherencia entre ellas. Por eso, la teoría del delito cumple también una función de garantía, pues no sólo evita una aplicación arbitraria de la ley penal, sino que también permite calcular cómo se va a aplicar dicha ley en un caso concreto.”[3]
Mas, uma teoria da conduta punível, ainda que desenvolvida de forma introdutória, deve começar pela definição do seu objeto de estudo: o crime.
1.1 O CONCEITO DE CRIME
Para chegarmos ao conceito de crime, adequado ao Direito Penal, precisamos utilizar o método normativo, ou seja, precisamos observá-lo à luz das normas jurídicas; à luz do dever-ser. A norma prescreve um modelo abstrato de comportamento proibido e esse modelo será qualificado pelo legislador como crime em amplo sentido - englobando o crime strictu sensu e a contravenção[4].
A definição atual de crime é produto da elaboração inicial da doutrina alemã, a partir da segunda metade do século XIX, que, sob a influência do método analítico, foi trabalhando no aperfeiçoamento dos diversos elementos que compõem esse conceito.
Esse método procura decompor o crime, mostrando os seus elementos. Isto é, embora o crime seja insuscetível de fragmentação, já que é um todo unitário, para efeitos de estudo, faz-se aqui necessário um breve comentário acerca de cada uma de suas características fundamentais, isto é, a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade – elementos que, juntos, formam o Conceito Tripartido de Delito. Ratificando essa ideia, Franscisco Bueno Arús nos mostra:
“Penso que a Escola penalista nazista de Kiel tinha razão em um ponto: que o delito é um ente unitário, não fracionável em partes, perceptível pelo intelecto de maneira global, ainda que, para compreender melhor sua essência, seja didático explicar sucessivamente seus diversos caracteres.”[5]
De forma bem sucinta, podemos dizer que o primeiro elemento geral do crime é derivado do Princípio da Legalidade. Além da necessidade da previsão normativa da conduta criminosa, também é necessário que a ação esteja adequada ao modelo descrito na lei. É o que se chama de tipicidade. Já a antijuridicidade é o juízo de valor negativo, ou desvalor, que qualifica o fato como contrário ao Direito. Tanto a tipicidade quanto a antijuridicidade são juízos sobre a ação humana. O outro elemento, a culpabilidade, é um juízo de reprovação pessoal, feito a um autor de um fato típico e antijurídico porque, podendo se comportar conforme o Direito, optou livremente por se comportar contrário a ele.
É importante observar, assim como o faz Welzel, que cada um desses elementos, na ordem em que foram apresentados, constitui um antecedente lógico e necessário à apreciação do seguinte. Isto é, “a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade estão relacionadas logicamente de tal modo que cada elemento posterior do delito pressupõe o anterior.”[6]
Cabe aqui ainda fazer um último parêntesis para o fato de que essas são as definições atuais dos elementos constitutivos do crime. Nem sempre eles se configuraram dessa forma. São, pois, fruto de um processo de desenvolvimento da doutrina penal e, principalmente, reflexo das diversas concepções acerca da conduta humana, sua força motriz.
2. A CONDUTA HUMANA
Acima de todas essas características, como condição necessária de existência do crime, está aquilo que chamamos de Conduta Humana. Nullum Crimen Sine Actione, diz o conhecido adágio jurídico:
“ A conduta humana é a pedra angular da Teoria do Crime. É com base nela que se formulam todos juízos que compõem o conceito de crime: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. A tipicidade é a adequação da conduta com a norma; a antijuridicidade é o juízo de reprovação da conduta, e a culpabilidade é o juízo de reprovação sobre o autor da conduta.”[7]
Sendo assim, poderíamos dizer que a conduta é gênero do delito, da qual a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade são espécies.
A necessidade da existência de uma conduta para a constituição do conceito de crime é uma grande conquista de um direito penal liberal, voltado para a proteção dos bens jurídicos vitais para o homem e para a sociedade. Em tempos remotos, o direito penal prescindiu do conceito de conduta para aplicar a pena, desse modo, coisas, animais e até pensamentos poderiam ser punidos.
É inegável que o manejo doutrinário de um conceito de conduta que atua no sentido de descartar fenômenos que o direito penal não pode atingir – por não se qualificarem como conduta humana- acaba por tocar, em favor do indivíduo, seu âmbito de liberdade, à medida que fixa uma barreira a mais para o exercício do jus puniendi estatal, consistindo mesmo verdadeiro pressuposto para um direito penal democrático e garantista.
Percebe-se, portanto, a importância do estudo da conduta humana; ou o estudo da ação, em seu amplo sentido. E é exatamente sobre ela, como pedra fundamental do Direito Penal, que se desenvolverá esse trabalho.
A conduta pode ser dividia em duas modalidades: ação e omissão. “Ação e omissão, em sentido estrito, constituem as duas formas básicas do fato punível, cada uma com sua estrutura específica, distinta: a primeira viola uma proibição (crime comissivo), a segunda descumpre uma ordem (crime omissivo)”[8]. Na prática, contudo, muitos utilizam a palavra ação como sinônimo de conduta, dividindo-a em comissão (ação positiva) e omissão (ação negativa), por isso falamos em “teorias da ação”. Nesse sentido, Manoel Pedro Pimentel nos alerta:
“Apesar de continuarem alguns autores a empregar o termo “ação” para significar o comportamento humano positivo e negativo, é de se reconhecer a grande utilidade prática que advém da distinção assinalada. O emprego da expressão “ação”, no sentido genérico de comportamento, gera confusão, uma vez que nesse sentido amplo o termo deveria abranger também a omissão, resultando uma contradição – pelo menos aparente – o que é inegavelmente desvantajoso para a clareza da ideia. Daí a preferência pelo emprego do termo conduta (…)”[9]
O Código Penal brasileiro, assim como o ordenamento de outros países, não apresenta um conceito propriamente dito de conduta humana, deixando-o implícito e atribuindo sua elaboração à doutrina. E é nessa delimitação do conceito de conduta que reside uma das maiores discussões do Direito Penal.
Não é exagerado afirmar que a forma como atualmente se encontra desenvolvida a teoria do crime se deve à evolução do conceito doutrinário de conduta. De certo, várias teorias buscam defini-la, e a adoção de cada uma delas importa em modificações estruturais na forma de encara o Direito penal, como veremos a seguir.
3. AS TEORIAS DA AÇÃO
Durante o século XIX, até o surgimento da concepção causal-naturalista, não era comum o tratamento isolado da conduta humana como crime. Nenhum manual ou doutrinador dedicava-se a sua análise separada. Feuerbach chegou a mencioná-la, ao definir crime “uma ação contrária ao direito do outro, cominada em uma lei penal”[10]; entretanto, não a considerou um elemento autônomo, senão como parte componente do elemento objetivo do crime.
Talvez isso tenha acontecido por causa de uma certa “obviedade” existente no fato de a ação estar presente em todo o crime, porém, mais provável talvez, é que a explicação dessa ausência de autonomia para a categoria da ação esteja na visão do crime, percebido de forma mais estática, centrado no resultado e concebido mediante uma análise posterior ao fato. Na verdade, como iremos perceber, durante toda a história da doutrina penal e do desenvolvimento de seus conceitos, o modo como os penalistas veem a conduta irá refletir diretamente na sua concepção de crime e vice-versa.
Nessa época, como observa Juarez Tavares, a antijuridicidade não era avaliada pela ofensa aos bens jurídicos, mas apenas pelo aspecto formal, aparente, de contrariedade à proibição legal, não interessava, por conseguinte, o exame do conteúdo da conduta ou da norma. O importante era definir se o agente era ou não responsável pela superveniência de um acontecimento contrário à lei. Isto é, havia o império de uma Teoria da Imputação[11].
Entretanto, aos poucos, com o desenvolvimento do direito penal e de seus princípios, essa visão foi sendo abandonada e superada principalmente pela doutrina alemã. Algo acontece com Luden, em cuja obra “Strafrechtliche Abhandlungen” pode-se encontrar uma divisão de delito que se já se aproxima surpreendentemente aos projetos sistemáticos do século XX, os quais estudaremos em seguida, quando distingue: “1) un fenômeno delictivo, provocado por una acción humana; 2) antijuridicidade de esa ación; 3) cualidad dolosoa o culposa de esa acción”[12].
3.1 O Conceito “Pré-Causalista” de Ação
A primeira “concepção” de conduta trabalhada pelo direito penal deriva do pensamento de Hegel. Na sua definição, a ação seria “a expressão da vontade como subjetiva ou moral”[13], possuindo a especificação de que esse conceito somente compreenderia aquela vontade exteriorizada.
Como nos ensina Roxin, desse conceito, Hegel teria derivado um “direito de vontade”, dentro do qual o ato do agente deveria ser reconhecido unicamente como ação sua e a culpabilidade deveria conter apenas o dolo, apenas os pressupostos de sua finalidade; assim, o ato só poderia ser imputado como culpabilidade da vontade[14]. A ação seria, portanto, um evento imputado de forma fática ao autor, mantendo identidade com a culpabilidade.
Hegel propunha, segundo Pagliaro:
“(...) un concetto di azione, nel quale rientrasse quel tanto di realizzazione esteriore che è ricoperto dal volere. Dall’azione rimaneva fuori, dunque, quel tanto di realizzazione esteriore che non era stato voluto e anche quel tanto di volere astratto che non riusciva a convertirsi nella realizzazione.”[15]
Apesar das críticas recebidas por essa fase hegeliana da teoria da ação - por exemplo, a acusação de que quis somente definir como se imputavam acontecimentos a alguém, não passando de uma teoria da imputação -, é indiscutível a sua importância para as grandes teorias que a sucederão. Inaugura-se, a partir daí, a ideia de ação como ponto de partida para a construção do conceito de crime.
A visibilidade dessas críticas é, no entanto, facilitada agora, a distância do tempo. Consoante bem observa Guaragni,
“ (…) As razões do abandono da linha hegeliana, dominante até por volta de 1880, devem-se somente em parte a tudo isso: no exato ponto em que a ação se mesclava à culpabilidade, criando confusão sistêmica, ganha corpo o modo de pensar naturalista, do final do século XIX, com pretensões classificadoras e sistematizadoras mais claras.”[16]
A troca do paradigma idealista hegeliano pelo positivista-naturalista simboliza, segundo Jakobs, a substituição da concepção hegeliana de delito como “expressão de sentido” por outra que o concebia como “acontecimento externamente perigoso” para os bens jurídicos[17]. Saía de cena, portanto, o idealismo kantiano-hegeliano, dando lugar ao sistema clássico de crime, baseado na teoria causal-naturalista da ação.
3.2 A Teoria Causal- Naturalista
A teoria causalista, desenvolvida por Franz Liszt e Ernst Beling é fruto de uma época em que a humanidade estava impressionada com os avanços das ciências naturais, evidenciados na industrialização e no desenvolvimento dos transportes, por exemplo. Assim sendo, sua matriz filosófica foi o positivismo naturalista e mecanicista.
Nessa perspectiva, para que qualquer ramo do conhecimento obtivesse o status de científico era necessária uma demonstração da veracidade de seus conceitos, orientando-se a partir dos critérios utilizados nas ciências exatas e naturais. Isto é, os passos metodológicos que deveriam ser utilizados eram, basicamente, a observação e a descrição dos fenômenos. O positivismo estava voltado, portanto, à construção de ciências do ser, a partir de uma apreensão de mundo sob forma de natureza, buscando considerá-lo como é na realidade.
Esse método das ciências acabava por descrever os fenômenos naturais como relações de causa e efeito: todo efeito possui causas cuja constatação é fisicamente possível. Mais do que isso: o que não fosse redutível a esta relação de causa e efeito, não mereceria ocupar espaço de objeto de estudo como fenômeno científico.
Essa forma de pensar acaba por colocar em xeque todas as ciências humanas e culturais, dentre as quais se encontra o direito penal. E então, este último, para não perder a credibilidade, acabou adaptando-se às exigências da época.
A partir desse momento, não só a explicação do crime foi reduzida à lei da causalidade (relação causa e efeito), como também um de seus componentes: a conduta humana.
3.2.1 CONCEITO GERAL DE CONDUTA PARA O CAUSALISMO
O primeiro conceito propriamente dito de ação foi dado por Franz Von Liszt:
“Ação é (…) o fato que repousa sobre a vontade humana, a mudança do mundo exterior referível à vontade do homem. Sem ato de vontade não há ação, não há injusto, não há crime: cogitationis poenam nemo patitur. Mas também não há ação, não há injusto, não há crime sem uma mudança operada no mundo exterior, sem um resultado. Destarte são dados dois elementos de que se compõe a ideia de ação e portanto a de crime: ato de vontade e resultado. A estes dois elementos deve acrescer a relação necessária, para que eles formem um todo, a referência do resultado ao ato.”[18]
Isto é, a conduta humana era definida como um movimento corporal voluntário que figurava como causa de um efeito, consistente na modificação no mundo exterior, ou resultado naturalístico. Mais tarde, esse mesmo autor irá ainda complementar essa ideia, definindo a ação como “conduta voluntária no mundo exterior; causa voluntária ou não impediente de uma modificação no mundo exterior”, englobando assim, também, o conceito de omissão[19].
O outro cofundador dessa teoria, Ernst Beling, ratifica essa linha de raciocínio, definindo a ação como um “comportamento corporal voluntário”[20]. Sendo o comportamento voluntário a fase externa da ação enquanto que a voluntariedade seria a liberdade de enervação muscular, o domínio sobre o corpo.
Sistematizando essas ideias, podemos, então, distinguir três elementos dos quais a ação seria composta: a vontade objetivada, a modificação no mundo exterior e o nexo de causalidade, que liga a ação ao resultado.
3.2.1.1 O Movimento Corpóreo
O movimento corpóreo humano surge como o primeiro dos elementos conceituais. Suas implicações mais notáveis foram, por exemplo, a impossibilidade de a pessoa jurídica ser sujeito ativo de crime – societas deliquere non potest, além da especificação da conduta como exclusiva do ser humano. Podemos citar ainda como consequência desse pressuposto, a necessidade da exteriorização da conduta. Isto é, a cogitationis poenam nemo patitur.
É o que nos mostra Claus Roxin:
“ Este concepto natural de acción cumple muy bien la función de delimitación, excluyendo de antemano actividades de animales y de personas jurídicas, pero también los pensamientos y las consecuencias de meras “excitaciones sensoriales”. Por eso, está equivocada la principal objeción que más frecuentemente se formula contra el mismo diciendo que es desdibujado e ilimitado (…).”[21]
3.2.1.2 A Vontade Sem Conteúdo
O ponto mais curioso desse conceito natural de ação e, talvez, o que seja mais acometido pelas críticas está exatamente na concepção de “voluntariedade”.
Segundo Von Liszt, a voluntariedade na comissão ou na omissão não quer dizer livre-arbítrio no sentido metafísico, senão isenção de coação mecânica ou psicofísica[22]. Isto é, a noção de vontade está ligada à ideia de domínio do corpo, de liberdade.
Como observa Aníbal Bruno, um dos seguidores brasileiros dessa corrente, a vontade que constitui elemento do conceito é apenas aquela necessária para fazer do comportamento um ato próprio do agente. Isto é:
“ (…) um acontecer que tem por impulso causal um processo interno volitivo e não simples ato reflexo. Não importa qual seja o conteúdo ou o alcance dessa vontade, sob o ponto de vista normativo. Se ela é eficaz para fazer o agente responsável, se é ilícita, se o agente tem consciência dessa ilicitude, estes já são problemas da culpabilidade. O doente mental, o imaturo podem agir. A sua vontade, insuficiente para fundamentar a culpabilidade, basta para constituir o elemento subjetivo da ação.”[23]
Essa vontade sem conteúdo terá grandes implicações para a teoria de delito desta corrente.
3.2.1.3 O Nexo Causal
O nexo causal é definido como a ligação entre conduta e resultado deduzido de modo naturalista ou fenomênico. Está contido dentro do art. 13, caput, do Código Penal, o qual informa que “ O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.”[24]
A sua exaltação pela teoria causalista é resultado exatamente da lei da causalidade de que falamos anteriormente. Todavia, cabe aqui apenas o comentário acerca da noção de que o nexo causal fazia parte do conceito de conduta, de maneira que se operava sua exclusão na ausência do nexo de causa entre movimento corporal e resultado; diferentemente do que acontece para o finalismo, por exemplo.
3.2.1.4 O Resultado
O resultado é a mudança no mundo exterior, um fenômeno sensorialmente perceptível. É importante ressaltar que, para o causalismo, só teria credibilidade aquilo que fosse percebido com os sentidos, que poderia ser concluído através da pura e simples observação. Por isso a inclusão do resultado como elemento necessário para a existência do crime.
Não há ação sem resultado, diz Aníbal Bruno. Alguma coisa no mundo exterior, ainda que seja no espírito do homem ou no estado de ânimo coletivo, há de sofrer uma alteração, embora transitória. O resultado se incorpora à ação como o seu momento final e juridicamente mais relevante, quando a ação se apresenta de relevância para o direito[25].
3.2.2 A TEORIA DO DELITO CAUSALISTA
Von Liszt e Beling acabaram dando vida ao chamado conceito clássico de delito, o qual representava o sistema objetivo-subjetivo e fazia a distinção dos elementos do crime tal qual conhecemos atualmente, ainda que suas noções fossem equivocados: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.
Esse conceito, assim como o de ação, foi produto do pensamento jurídico característico da época: o positivismo, como já observamos. Essa orientação, que pretendeu resolver todos os problemas jurídicos nos limites exclusivos do Direito positivo e sua interpretação, deu um tratamento exageradamente formal à conduta humana delituosa. Assim, a ação estruturava-se com um tipo objetivo-descritivo, a antijuridicidade era puramente objetivo normativa e a culpabilidade apresentava-se como subjetivo-descritiva.
O crime era uma estrutura tripartida, além de acrescentar a ação como elemento ; no início, porém, alguns incluíam também a punibilidade. Seguindo a ideia de Bitencourt, faz-se mister um breve comentário acerca deles[26]. Sobre a conduta, nós já a analisamos propedeuticamente na visão dessa teoria.
O tipo e a tipicidade representavam o caráter externo da ação, compreendendo somente os aspectos objetivos do fato descrito na lei. Na sua compreensão inicial concebida por Beling, possuía caráter descritivo e valorativamente neutro. A antijuridicidade era um elemento objetivo e formal, porém valorativo. A sua constatação implicaria um juízo de desvalor. Já a culpabilidade era concebida como o aspecto subjetivo do crime, com caráter descritivo que limitava-se a comprovar a existência de um vínculo subjetivo entre autor e fato; aqui estavam inseridos o dolo e a culpa.
3.2.3 AS CRÍTICAS AO CAUSALISMO
A falha primeira da teoria causalista da ação está no sentido de que ela esvazia o conteúdo da vontade. A intenção de seus teóricos é separar todos os juízos objetivos dos juízos subjetivos, imputando esses últimos à culpabilidade, como se, realmente, pudesse haver uma separação perfeita e decisiva entre o objetivo e subjetivo. O que, na realidade, isso não acontece, visto que estão interligados.
Um conceito de conduta que prescinda da finalidade desta é onticamente inconcebível e impossível, contradizendo a essência do direito e reduzindo o crime a um simples processo causal:
“O direito não será – para esta concepção – uma ordem reguladora de condutas, e sim de processos causais, o que é absurdo: o direito não regula “fatos”, mas apenas fatos humanos voluntários, isto é, condutas. O direito não proíbe nem permite outra coisa além de condutas humanas, pois do contrário deixa de ser direito, ao menos no sentido em que o concebemos dentro do atual horizonte de projeção de nossa ciência.”[27]
A teoria clássica, ainda, não distingue a conduta dolosa da culposa, pois ambas são analisadas objetivamente, visto que não se faz nenhuma indagação sobre a relação psíquica do agente para com o resultado. Para a configuração da conduta bastaria apenas uma “fotografia do resultado”, o que levaria à criminalização e, muitas vezes, condenação de condutas atípicas, ferindo diretamente o princípio da dignidade humana.
Da mesma forma, essa teoria não explica de modo satisfatórios os crimes omissivos próprios, nem os formais, nem os de mera conduta. Ainda, não convence no que diz respeito aos crimes tentados, pois em todos eles, não há um resultado naturalístico apto a possibilitar a fotografia do direito.
Na verdade, não nos cabe aqui desqualificar essa conduta na medida em que devemos compreender o seu sentido. A essência dessa concepção é que há um conceito de conduta que é próprio do direito penal, um conceito jurídico-penal de conduta humana. Ela revoluciona completamente todo o pensamento penalista da época, e apresenta imperfeições, como toda tentativa inicial.
Um outro ponto que deve ser levado em consideração é o de que ela é reflexo de sua época, do multirreferido positivismo; que, com o desenvolvimento dos conhecimentos acerca das ciências humanas, provou-se completamente equivocado. As ciências humanas são sim diferenciadas, e trabalham com os subsistemas de forma integrada, não havendo uma separação bem definida entre eles, como se pretendia. Acabou-se, portanto, por mascarar a realidade.
Disso se infere que causalismo clássico, com sua definição, não consegue explicar a existência de vários crimes. Tanto que, ao longo do tempo, algumas de suas ideias vão sendo repensadas, construindo uma espécie de causalismo “neoclássico”. Mezger, por exemplo, percebe que a tipicidade possui elementos subjetivos; enquanto que Mayer atribui a esta alguns elementos valorativos (juízos de valor provisórios). Isso queria dizer, então, que existe uma relação de indício entre a tipicidade e a ilicitude. Em 1907, Frank já alterava essa ideia de culpabilidade, associando-a a uma reprovabilidade, sem esquecer, entretanto, do dolo e da culpa[28].
3.3 A Teoria Finalista
O conceito finalista de ação foi elaborado pelo alemão Hans Welzel, principalmente em sua obra Studien zur System des Strafrechts (Estudos para o Sistema de Direito Penal), publicada em 1939.
Através da sua teoria, Welzel buscava romper com o direito penal nazista, queria revalorizar o caráter ético-social do direito penal. Para isso, considerava imprescindível modificar a própria dogmática, através do estabelecimento de limites ônticos, denominados “estruturas lógico-objetivas”, ao legislador. A conduta humana, como pedra angular do conceito analítico de crime, seria a mais importante dessas estruturas, de maneira que essa nova visão realista demandava sua reelaboração conceitual, a qual veremos a seguir.
A ação é objeto que preexiste ao direito penal como ideia. Ou seja, ao direito penal cumpre a função de ordenar como devem ser estas estruturas lógicas-objetivas, que são as condutas humanas, “sachlogisch Strukturen". Destarte, quando pelo direito penal se constata um crime, isto é, ser uma qualquer conduta humana típica, ilítica e culpável, não se está – no marco do finalismo – alterando a conduta. Apenas são-lhe atribuídos três valores negativos (desvalores), permanecendo idêntica ao que era antes de o direito penal operar esta tríplice desvaloração[29].
Na visão finalista, o direito penal, em relação ao seu objeto conduta, realiza, em sentido figurativo, um ato de conhecimento valorativo negativo, não alterando o objeto, mas fornecendo dados ao intérprete para compreendê-la como crime. Nesse ponto percebe-se uma clara oposição ao pensamento causalista: enquanto neste se utiliza a ideia de ato de vontade, o finalismo faz uso do ato de conhecimento. Assim Zaffaroni os distingue:
“O ato de vontade é o que se dirige ao objet, alterando-o. (…) Ato de conhecimento é o que se limita a fornecer dados ao observador, sem alterar o objeto enquanto ‘matéria de mundo’. Esta distinção é válida dentro de uma teoria realista do conhecimento, que parte da base de que o objeto existe fora de nós e antes de nosso conhecimento. (…) De nossa parte, adotamos a posição realista”[30]
3.3.1 A AÇÃO COMO UMA ATIVIDADE FINAL
Mas, o que significaria conceber a ação como uma estrutura lógica-objetiva? Para fundamentar o seu novo conceito de conduta, Hans Welzel irá buscar suporte no pensamento clássico de Aristóteles, o qual pode ser elucidado com o seguinte excerto:
“ Voltemos (…) ao bem que estamos procurando e indaguemos o que é ele, pois não se afigura igual nas distintas ações e artes; é diferente na medicina, na estratégia, e em todas as demais artes do mesmo modo. Que é, pois, o bem de cada uma delas? Evidentemente, aquilo em cujo interesse se fazem todas as outras coisas. Na medicina é a saúde, na estratégia a vitória, na arquitetura uma casa, em qualquer outra esfera uma coisa diferente, e em todas ações e propósitos é ele a finalidade; pois é tendo-o em vista que os homens realizam o resto. Por conseguinte, se existe uma finalidade para tudo que fazemos, essa será o bem realizável mediante a ação; e, se há mais de uma, serão os bens realizáveis através dela.”[31] (grifo nosso)
Assim sendo, a ação humana é um acontecer “final”, não só “casual” como pregavam seus antecessores. A “finalidade” ou o caráter final da ação se baseia na capacidade da vontade humana de prever, dentro de certos limites, as consequências possíveis de sua atividade. A espinha dorsal da ação final é a vontade, consciente do fim, reitora do acontecer causal; sem ela, a ação seria rebaixada a um acontecimento causal cego. Por isso, diz Welzel, a finalidade é, de forma figurada, “vidente” e a causalidade, “cega”[32].
A direção final compõe-se de duas fases: a primeira ocorre no âmbito do pensamento e abarca três elementos: o primeiro é o fim que o agente almeja; o segundo, são os meios que o mesmo deve adotar para a consecução dos fins, e o terceiro é a representação dos efeitos colaterais necessários ou possíveis, isto é, são as consequências secundárias coligidas ao emprego dos próprios meios. A segunda fase ocorre no mundo real, é a realização concreta da ação que se opera, um processo causal determinado pela primeira fase. Assim, caso não se alcance esse domínio final no mundo real, a ação final fica somente tentada.
Faz-se mister, entretanto, fazer uma ressalva para a caracterização do que seriam esses meios elegidos para a realização do fim. Aqui a escolha dos meios engloba, além da ideia de “instrumento” propriamente dita, a maneira como o sujeito ativo pretende dele dispor. Isto, por sinal, é que marca a sobredeterminação do curso causal, a ideia de governabilidade da conduta.
3.3.2 CONSEQUÊNCIAS DA AÇÃO COMO VONTADE DIRIGIDA A UM FIM
Essa teoria welzeliana da ação traz consigo algumas consequências transcendentais, consoante expressão utilizada por Bitencourt[33]. A primeira delas está relacionada à estrutura do delito.
Quando se diz que a ação humana tem seu fundamento na vontade dirigida a um fim, quer-se dizer, na verdade, que o dolo, como elemento subjetivo, é integrante da ação. O dolo e a culpa passam, portanto, a estar inclusos na tipicidade. Funda-se aqui a noção de tipo complexo, composto de tipo objetivo (a adequação da conduta à norma) e tipo subjetivo.
Além disso, a culpabilidade passa a ser somente normativa, sendo expurgada dos aspectos psicológicos. A imputabilidade, a potencial consciência de ilicitude do fato e a exigibilidade de conduta diversa tornam-se os elementos dessa estrutura do crime.
Uma última observação diz respeito ao conceito pessoal de injusto – leva em consideração os elementos pessoais (relativos ao autor): o desvalor pessoal da ação do agente, que se manifesta pelo dolo de tipo ou pela culpa. E ao desvalor da ação corresponde um desvalor do resultado, consistente na lesão ou perigo de lesão do bem jurídico tutelado. Apenas para efeitos elucidativos, o desvalor da ação é a valoração negativa que se faz em relação à conduta do agente, enquanto que o desvalor do resultado refere-se a desaprovação do resultado jurídico.
O Código Penal em vigor, com a Reforma da Parte Geral pela Lei 7.209/1984, parece ter manifestado preferência pelo finalismo penal. Como aparece no caput do art.20:
“O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.”[34]
Ora, se a ausência de dolo acarreta na exclusão do fato típico, é porque o dolo está na conduta do agente, como pregou Welzel, que deixa de ser dolosa para ser culposa.
3.3.3 PONTOS CRÍTICOS DA TEORIA FINALISTA
A crítica mais contundente sofrida pela teoria finalista refere-se aos crimes culposos, cujo resultado é produzido de forma puramente causal, não havendo interferência da vontade do autor. Essas críticas levaram Welzel a reelaborar sua concepção de culpa, utilizando o critério de “finalidade potencial”; nos crimes culposos haveria, então, uma causação que seria evitável mediante uma atividade finalista.
Entretanto, a oposição de alguns expoentes como Mezger, segundo o qual a constatação da evitabilidade da causação, através de uma atividade finalista, já implica o juízo de culpabilidade[35], obrigaram Welzel a abandonar esse critério de finalidade potencial.
O alemão, então, reestrutura a sua concepção, admitindo a existência de uma finalidade, porém, irrelevante para o Direito Penal. O que se deve censurar são os meios utilizados: “O conteúdo decisivo do injusto nos delitos culposos consiste, por isso, na divergência entre a ação realmente empreendida e a que devia ter sido realizada em virtude do cuidado necessário.”[36]
3.3.4 O FINALISMO E A CIBERNÉTICA
É costume dizer que Welzel tomou como modelo a fenomenologia de Nicolai Hartmann para estruturar seu conceito de ação, todavia, o próprio Welzel buscou esclarecer que a aliança com Hartmann limita-se à terminologia “finalidade”, com a qual definiu a presença de um conteúdo na vontade que guia o movimento corporal nas condutas humanas. Entretanto,
“(…) se ha elaborado en la Cibernética una designación mucho más ajustada a la peculiaridad determinante de la acción, esto es, su dirección y encauzamiento. Quizá a la teoría final de la acción se le habrían ahorrado muchas falsas interpretaciones como teoría de la acción, en cuanto acontecimiento (cibernético) dirigido o encauzado por la voluntad. No sin razón Spiegel habla de una consideración biocibernética anticipada.”[37]
Como se vê, na última etapa de seus estudos, Welzel vislumbrou, ainda que superficialmente, substituir a teoria finalista por uma outra teoria, denominada Cibernética. Como essa teoria leva em conta o controle da vontade, presente tanto nos crimes culposos como nos dolosos, buscava-se compatibilizar o finalismo penal com os crimes culposos, a razão das maiores críticas anti-finalísticas.
3.4 A Teoria Social
O marco inicial da teoria social da ação tem sua origem em 1932, a partir de Eberhard Schmidt, que procurou dar uma nova visão ao conceito causalista, livrando-o do uso excessivo das ideias positivistas.
É interessante frisar, entretanto, que o conceito social de ação tem várias vertentes, que ora prestam a defender o finalismo, ora defendem o causalismo. É tanto que Maurach chegou a afirmar: “La teoria social de la acción se nos presenta en numerosas variantes, de manera que llega a ser dudoso si es posible hablar de una posición unívoca o si, por el contrario, es preciso distinguir diversas teorías sociales de la acción.”[38]
A ideia central das teorias sociais é buscar a síntese da relação entre o comportamento humano e o mundo circundante, sendo a ação todo comportamento socialmente relevante. Aliás, essa noção de relevância social da conduta humana é a pedra angular que pode ser encontrada em todas essas vertentes.
Para os seus defensores, a vantagem da teoria está no fato de o elemento sociológico cumprir a missão de permitir ao Poder Judiciário a supressão do vácuo criado pelo tempo entre a realidade jurídica e a social.
Inicialmente, Eberhard Schmidt concebia a ação como uma “conduta voluntária dirigida ao mundo externo social”, recebendo a adesão de vários outros autores, os quais foram reelaborando esse primeiro conceito. Assim, para Engish, a conduta seria a “causação voluntária de consequências previsíveis e socialmente relevantes”. Percebe-se aqui uma clara ligação com a teoria causalista na medida em que o resultado da conduta (consequências) faz parte desta definição. Somente a partir do conceito apresentado por Maihofer, para o qual a ação é “conduta objetivamente controlável pelo homem, dirigida a um resultado social objetivamente previsível”[39] é que se observa um início de distanciamento em relação à teoria causalista.
Embora esses autores insiram no conceito de conduta a relação de causalidade, eles o fazem operando com a teoria da causalidade adequada. Nesta, causa é toda aquela conduta adequada à produção de um dado resultado, obtida mediante o exercício imaginário de colocarmo-nos no lugar do sujeito ativo e efetuarmos uma análise ex ante da probabilidade da superveniência deste resultado. Isto é, opera-se com um julgamento estatístico da adequação da conduta para gerar – ou não – o resultado.
No entanto, essa concepção social nascente da conduta humana seria sufocada pelo advento do finalismo, baseado na existência de estruturas lógico-objetivas com perfil ontológico, já abordadas anteriormente. Tais estruturas impediam a inserção de aspectos de cunho axiológico na ideia de ação. Portanto, valorações como a relevância social da conduta, por não serem colhidas na realidade, por serem julgamentos, não poderiam compor o conceito de ação. Como a teoria social da ação não era compatível com o fundamento ontológico finalístico da época, somente foi retomada a partir da década de 60 do século XX, quando a teoria de Welzel passou a sofrer duras críticas.
É, então, neste período que surgem os mais significativos desenvolvimentos dogmáticos das teorias sociais: a partir das ideias de Jescheck e Wessels, cuja base é encontrada no finalismo.
Jescheck reúne, no comportamento humano socialmente relevante, o atuar final do comportamento doloso e o comportamento objetivamente dirigível de natureza imprudente. Por comportamento deve entender-se a resposta do homem a exigências situacionais, mediante a concretização da possibilidade de reação que lhe é autorizada pela sua liberdade. Assim, socialmente relevante seria a conduta capaz de afetar o relacionamento do agente com o meio social em que se insere[40].
Wessels, por sua vez, define a ação como “conduta socialmente relevante, dominada ou dominável pela vontade humana.”[41]; considerando, assim, a estrutura pessoal da conduta e com isso as circunstâncias ontológicas.
Ao contrário do finalismo, não se derivam do conceito social de conduta elementos capazes de implicar um reordenamento ou novo desenho dos estratos desvalorativos da tipicidade, ilicitude e culpabilidade. E Wessels, por exemplo, vê nisso um ponto positivo:
“Enquanto os finalistas querem tirar, todavia, da estrutura ontológica do agir deduções finais coercitivas para a teoria do crime, desenvolvida a partir do conceito de ação, a teoria social evita qualquer assentamento prematuro nesse sentido. Sua reflexão se mostra exatamente em que ela pode compreender o conteúdo de sentido da conduta humana relevante para o direito penal em suas variadas formas de aparecimento, sem exigir que se associe a construção da teoria do crime, desde o princípio, a um determinado sistema.”[42]
Algumas observações críticas, contudo, devem ser feitas aqui. A primeira em relação à imprecisão conceitual da ideia de “relevância social”. Pois bem, o requisito da relevância social, entendida como a necessidade de que a conduta transcenda da esfera meramente individual do autor à do outro, é um requisito da tipicidade penal da conduta, mas não da conduta em si, que é conduta, embora não transcenda a ninguém. As ações puramente privadas, que não transcendem para ninguém, também são ações. Além disso, a definição de relevância social não é precisa, visto que a sua concepção é subjetiva, mudando de acordo com as influências culturais.
Seus teóricos deixam uma vastidão na extensão desse conceito de relevância social, prestando, inclusive a fenômenos acidentais e da natureza. A morte de uma pessoa provocada por um desabamento de barreiras, por exemplo, possui relevância social, na medida em que enseja o nascimento, modificação e extinção de direitos e obrigações, mas não constitui relevância penal propriamente dita.
Ao mesmo tempo, entretanto, não se pode negar a relevância social ao delito, mas deve-se recordar que tal qualidade é inerente a todos os fatos jurídicos, e não apenas aos pertencentes ao Direito Penal.
A segunda está na frustração de um conceito de conduta capaz de funcionar como elemento de enlace, já que tal função exige que a definição da ação humana não venha a antecipar dados dos estratos em relação aos quais dá sustento. Na verdade, o que a teoria social faz é colocar problemas de tipicidade no nível pré-típico, raciocínio que iniludivelmente leva a conclusão de que o conceito de conduta é elaborado de acordo com os requisitos típicos. Isto é, a teoria social procura um conceito valorativo de ação, mas, como esta serve de ligação entre os elementos do crime possibilitando a sua sistematização, a sua definição deve ser valorativamente neutra e seus juízos de valor devem ser feitos através da tipicidade e da antijuridicidade.
Uma última consideração deve ser feita ainda em relação à pretensão da teoria social de ser ponte intermediária entre as teorias causal e final. Ora, o finalismo e o causalismo opõe-se completamente; a teoria social fica, assim, como uma “moldura em branco” , procurando uma ponte de ligação que é desconhecida.
3.5 OUTRAS TEORIAS DA AÇÃO
Muito embora essas três grandes teorias acima desenvolvidas (causal, final e social) tenham revolucionado as ideias acerca da conduta humana e de suas implicações para o Direito Penal, posteriormente, alguns outros autores procuraram complementá-las ou até mesmo substituí-las – elaboram-se mais de vinte teorias da ação. Apenas a título de curiosidade, iremos tecer breves comentário acerca de algumas dessas teorias da ação “secundárias” e “colaterais”.
3.5.1 A Teoria da Ação Significativa
Apresentando uma nova interpretação conceitual e um novo paradigma para o conceito de conduta penalmente relevante, Tomas Salvador Vives Antón formula o conceito significativo de ação. Com base nos pensamentos de Wittgenstein (filosofia da linguagem) e de Habemas (teoria da ação comunicativa), Vives Antón apresenta uma nova sistemática partindo de três conceitos fundamentais para o Direito Penal. São eles, segundo Perez:
“(…) Ação (sentido que, conforme um sistema de normas, pode atribuir-se a determinados comportamentos humanos), norma (com uma dupla essência: são decisões de poder e são também determinações da razão) e liberdade de ação (pressuposto imprescindível para que as ações sejam regidas por normas).”[43](grifo nosso)
Na perspectiva de seus seguidores, esse novo conceito de ação se identifica melhor com um moderno Direito Penal, respondendo aos anseios dogmáticos e respeitando os direitos e garantias humanos. Reconhecem, entretanto, conforme nos mostra Bitencourt[44], que sua visão metodológica não se encontra plenamente desenvolvidas, embora suas propostas político-criminais sejam sensíveis à crítica do próprio Sistema.
Nessa teoria, há um questionamento acerca do entendimento da ação como “concepção cartesiana”, isto é, a ação, até então, era somente entendida como um reflexo de um aspecto físico (movimento corporal) e de um aspecto mental (vontade). Renuncia-se, então, a essas concepções e recorre-se a parâmetros psicofísicos, mediante o recurso da experiência.
A ação deve ser entendida a partir do seu significado, isto é, como um sentido. É necessário que seja entendida, interpretada segundo as regras ou normas. De acordo ainda com essa concepção, não existe um conceito universal e ontológico de ação, elas simplesmente não existem antes das regras ou normas que as definem. Resumindo: a ação possui um significado determinado, certas práticas sociais que identificam um comportamento humano perante outros.
Enfim, explica Busato:
“Não se trata, pois, de modo algum de uma tarefa de demolição do edifício construído, e sim de propor um novo modo de determinar o significado (sentido) dos conceitos, uma vez que o conceito de ação não pode mais executar uma função negativa de estabelecer limites de ausência de ação.”[45]
3.5.2 A Teoria Jurídico-Penal
A partir de um exame crítico das teorias acima analisadas, Francisco de Assis Toledo, em sua obra Princípios Básicos do Direito Penal, lança a ideia de uma nova concepção de ação, formulando o que poderíamos chamar de “Teoria Jurídico Penal”.
Seu objetivo é superar as diversidades existentes entre as teorias clássica, finalista e social da ação, conciliando os seus pontos positivos. Dessa forma, ação pode ser entendida como “comportamento humano, dominado ou dominável pela vontade, dirigido para a lesão ou para a exposição a perigo de um bem jurídico, ou, ainda, para a causação de uma previsível lesão a um bem jurídico.”[46]
Essa definição é apenas discursiva, sem rigor lógico, mas que coloca em destaque: o comportamento humano, abrangente da ação e da omissão; a vontade, sem a qual nada mais seríamos do que “fenômenos” comuns; o “poder-de-outro-modo” que nos enseja algum domínio da vontade sobre o nosso agir; o aspecto causal-teleológico do comportamento; e ainda, a lesão ou exposição a perigo de um bem jurídico.
É importante observar, entretanto, que o seu criador não a desenvolveu de forma consistente. Isto é, não obteve muitas consequências práticas. Essa teoria foi apenas uma perspectiva idealizada para que o estudo da conduta não se limitasse à “dicotomia” causalidade/finalidade, chamando atenção para o fato de que o conteúdo da conduta é muito mais abrangente, como demonstra o excerto: “É possível mesmo que esse conteúdo, em sua maior parte, não se deixe apreender em um rígido esquema causal-finalista, ou em qualquer outro”[47].
3.5.3 A Teoria Funcionalista
Por fim, teceremos alguns comentários acerca da “Teoria Funcionalista da Ação”, ainda que alguns doutrinadores considerem o seu estudo como fora de linha. Pois bem, a partir da década de 60 opera-se uma espécie de renormatização do pensamento jurídico-penal. Segundo Schünemann, há a necessidade da elaboração de
“ un sistema abierto, que (…) no obstaculice el desarrollo social y jurídico, sino que lo favorezca o, al menos, se adapte a el; de modo que no prejuzgue las cuestiones jurídicas aún no resueltas, sino que las canalice para que se planteen en los términos correctos (….).”[48]
Para o funcionalismo, o método não deve ser restritivo no sentido de vincular o legislador e a dogmática a estruturas pré-jurídicas, a partir das quais as solução não tenham em conta o universo tão mais amplo dos valores que envolvem a vida em sociedade. Destarte, a sua essência é normativa, assim como a Teoria Jurídico-Penal e a Significativa, não considerando a ação um conceito pré-jurídico, e sim obtido à luz das normas, do Direito e da sociedade.
Uma das peculiaridades da Teoria Funcionalista está na sua interpretação da conduta de acordo com os fins da pena. Orienta-se por um critério de sistematização especificamente jurídico-penal: as bases político-criminais da moderna teoria dos fins da pena, guiando-se em suma pelas “finalidades do direito penal.”
Merece destaque ainda como característica da dogmática funcionalista o apoio nas ciências sociais. Isto é, ,no dizer de Juarez Tavares,
“o funcionalismo pretende não apenas explicar o sistema jurídico, mas compor também uma análise global de todo o sistema social. O objeto do sistema social é evidentemente a ação humana. O fundamento da análise sistêmica reside justamente no fato de que as ações se veem regidas por expectativas, as quais encontram nos sistemas seus marcos delimitadores, correspondentemente a diversas variáveis, das quais uma delas estaria constituída pelas normas jurídicas.” [49]
Deve-se ressaltar que o finalismo possui várias vertentes, as quais partem dos mais diversos pressupostos, levando-nos a, inclusive, falar em “funcionalismos”. Dentro delas, podemos destacar como relevantes para análise o chamado Funcionalismo Teleológico e o Funcionalismo Simbólico, desenvolvidos por Claus Roxin e Günther Jakobs, respectivamente.
3.5.3.1 O FUNCIONALISMO TELEOLÓGICO DE ROXIN
Em seu livro Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal, Roxin inaugura o pensamento funcionalista no direito penal. Realiza um esforço em demonstrar que a clássica lição de Von Liszt, segundo a qual o direito penal é a barreira intransponível da política criminal não deveria prevalecer[50]. Trabalhava, portanto, no reconhecimento de que problemas político-criminais constituem o conteúdo próprio também da teoria geral do delito.
Roxin propõe o que chamamos de “conceito pessoal de ação”. A conduta, para o alemão, é o conjunto de dados fáticos e normativos que são a expressão da personalidade do homem, isto é, integram a parte anímica-espiritual do ser humano. Conforme observa Cláudio Brandão, tal conceito permite excluir da definição de ação todas as manifestações não domináveis pela vontade, como os atos involuntários por exemplo, onde a personalidade não é manifestada a partir de atos exteriores[51].
De logo, apresenta-se o problema das várias acepções do significado de “personalidade”, constituindo o maior objeto de críticas que essa teoria possui. Eysenck, por exemplo, a define como “organização mais ou menos estável e duradoura do caráter, do temperamento, do intelecto e do físico de uma pessoa: organização que determina sua adaptação total ao ambiente”[52]. Entretanto, essa vagueza da palavra personalidade satisfaz exatamente o objetivo de Roxin: obter um conceito amplo da conduta pelo mecanismo da exclusão; tanto que a crítica que o alemão dirige às concepções tradicionais está no sentido de considerá-las reducionistas. Assim, manifestações da personalidade são basicamente o que sobra quando se exclui tudo o que, segundo o consenso geral, não aparece como ação.
3.5.3.2 O FUNCIONALISMO SIMBÓLICO DE JAKOBS
Günther Jakobs foi um autor muito criticado pelos estudiosos do Direito penal, chegando, inclusive, a ser considerado uma espécie de neonazista. Entretanto, tomando como base a teoria sistêmica de Luhmann, elaborou uma interessante teoria acerca da conduta humana; na verdade, seu funcionalismo é um tanto quanto radicalizado, no sentido de que “funcionaliza não só os conceitos, dentro do sistema jurídico-penal, como também este, dentro de uma teoria funcionalista sistêmica da sociedade.”[53]
O jurista trabalha com a noção de que, nos contatos sociais, só é possível orientarmo-nos se não contarmos, a cada momento, com comportamentos imprevisíveis de outra pessoa. Assim, o ser humano cria expectativas ao estabelecê-los. Dentro dessas expectativas quanto ao comportamento, interessariam dois grupos: aquelas baseadas nas leis da natureza; e aquelas especificamente baseadas na pretensão de que os demais sigam as normas vigentes[54].
A separação dessas duas expectativas é atribuída por Jakobs ao conceito de ação. Chega-se, pois, ao conceito de conduta como evitabilidade indivitual: a ação é causação de um resultado individualmente evitável.
Causar um resultado é gerar um mínimo de resultado externo, representado pelo movimento corporal. Assim, não se trata de resultado no sentido dos crimes materiais, mas de todos os movimentos corporais cognoscíveis em sua conformação e de suas consequências. Essa é uma das distinções entre a teoria de Jakobs e a teoria causal, cujo resultado é naturalístico.
Já quanto à evitabilidade, é interessante observar que, para o seu entendimento, não interessa saber sobre o conhecimento da norma por parte do sujeito da conduta. Aliás, o conhecimento da norma sequer é discutido no estrato da conduta humana. Portanto, o que interessa no plano da ação é saber se esta é evitável. Assim, resumindo, a ação seria a postura do sujeito em relação à motivação da norma.
As principais críticas sofridas por essa teoria são relativas ao seu excesso de distanciamento da realidade e ao seu abuso na criação de conceito de conduta. Pode-se perceber que o seu conceito não se preocupa em construir um direito penal de garantias, legitimando todo e qualquer sistema punitivo, inclusive os de perfil autoritário, por força de considerar ser missão do direito penal a proteção de suas próprias normas. Além disso, há um desprezo da conduta humana como dado ôntico.
4. A IDEIA DE CONDUTA PARA O DIREITO PENAL ATUAL
Ainda que seja alvo de críticas acerca de sua incompatibilidade com os crimes culposos, podemos dizer que a teoria que melhor capta a essência da ação é a Finalista.
Quando refletimos sobre a ação humana, podemos facilmente constatar que ela é dirigida à consecução de fins. Inclusive o Código Penal brasileiro atual absorve essa ideia. Portanto, como falamos em ação humana, estamos dizendo que o homem se propõe a fins, elege os meios para a obtenção de seus fins e modifica o mundo exterior. A ação, destarte, é um conceito:
“ (…) que deve ser examinado com fundamento em critérios de valor que não permitem prescindir de um elemento finalístico: apenas quem atue com finalidade consciente cumpre uma ação no verdadeiro sentido da palavra. É assim que os atos singulares ou elementos objetivos, nos quais se cinde o processo executivo da ação, são cimentados entre si e reduzidos à unidade pelo fim que o agente se propõe realizar pondo sucessivamente em movimento os seus músculos. (…) A ação, pois, é um conceito finalístico, teleológico de valor.”[55]
Assim, retomando o conceito welzeliano, a ação é um fazer voluntário; fazer, no sentido de movimento corporal externo voluntário; e vontade que implica finalidade, possuindo um conteúdo.
4.1 A OMISSÃO
A omissão é outra forma de conduta humana, consistindo em um non facere, isto é, uma atividade negativa. Não se trata de um mero comportamento estático, é a conduta de não fazer aquilo que podia e devia em termos jurídicos, e se refere às normas preceptivas ou imperativas.
Pode ser vislumbrada tanto quando o agente nada faz, bem como quando faz algo diferente daquilo que lhe impunha o dever jurídico de agir. Por exemplo, quando se pratica o crime de omissão de socorro (art.135 do Código Penal), o agente que permanece inerte diante da pessoa necessitada, assim como aquele que se afasta do local sem prestar-lhe assistência é passível de punição.
Algumas teorias podem ser destacadas quanto à busca pela essência da omissão: são elas a teoria naturalística e a teoria normativa.
A teoria naturalística sustenta ser a omissão um fenômeno causal que pode ser constatado no mundo fático, pois, em vez de ser considerada uma inatividade, caracteriza-se como verdadeira espécie de ação. Nesse sentido, quem se omite efetivamente faz alguma coisa.
Já para a teoria normativa, a omissão é um indiferente penal, pois o nada não produz efeitos jurídicos. O omitente não responde pelo resultado, pois não o provocou, mas é responsabilizado pela produção desse resultado, desde que seja a ele atribuído, por uma norma, o dever jurídico de agir. Esta é a teoria que foi acolhida pelo Código Penal
Em verdade, nos crimes omissivos próprios ou puros, a norma impõe o dever de agir no próprio tipo penal (preceito preceptivo).
Já nos crimes omissivos impróprios, espúrios ou comissivos por omissão, o tipo penal descreve uma ação (preceito proibitivo), mas a omissão do agente, que descumpre o dever jurídico de agir, definido pelo art. 13 parágrafo 2 do código penal, acarreta a sua responsabilidade penal pela produção do resultado naturalístico.
Entretanto, René Ariel Dotti considera que “uma teoria puramente normativa não satisfaz às exigências jurídicas e éticas para justificar a omissão penalmente relevante”. Seria necessário, para o autor, recorrer à teoria finalista, que explica a incriminação da conduta omissiva, com a deliberação do sujeito em não praticar a ação com a finalidade de evitar o resultado[56].
4.2 AUSÊNCIA DE CONDUTA
A simples vontade criminosa não é hábil para que o Direito Penal intervenha, ficando excluída de seu âmbito, já que é a vontade manifestada no mundo exterior é requisito da conduta – cogitationis poenam nemo patitur. Por outro lado, nos casos onde não existe a presença de vontade, mas apenas uma modificação no mundo exterior, a conduta também será excluída. São estas situações, segundo Cláudio Brandão: a coação material irresistível, os movimentos reflexos e os estados de inconsciência[57].
De forma sucinta, poderíamos explicar a coação material irresistível como uma violência física externa que anula a vontade do agente, podendo existir tanto no âmbito da ação como no da omissão. Já os movimentos reflexos seriam os estímulos externos percebidos pelos nossos censores, transmitidos aos centros motores, não havendo intervenção da vontade – é o caso, por exemplo, de crises de epilepsia. Por fim, os estados de inconsciência são exemplificados pelos atos ocorridos num período de sonambulismo ou de sono.
Em algumas situações ainda, como os estados de hipnose e os atos produzidos por embriaguez, não existe uma deliberação unívoca pelos doutrinadores quanto à ausência de conduta. Atualmente, considera-se que, em um individuo mentalmente são, nenhuma das duas hipóteses possui o condão de excluir de forma penalmente relevante a ação.
5. COMENTÁRIOS FINAIS
Do exposto, podemos perceber que o conceito de ação, como pedra angular da Teoria do Delito e, portanto, do Direito Penal propriamente dito, foi matéria de grandes discussões e levantamentos. Dessas concepções, merecem destaque, devido a sua grande relevância, a teoria causal, final e social.
A primeira, como reflexo de sua época, procurou transplantar o método das ciências naturais para o Direito Penal, construindo um conceito de ação como fotografia do resultado, limitando-a a um processo causal. A segunda, preencheu o antes vazio conteúdo da vontade, ligando-a a ideia de finalidade e dando à conduta uma feição que corresponderia à realidade ético-social vigente. Já a teoria social, procurou conceber a ação como produto social, inserindo em seu conceito a ideia de “relevância social” que, por tamanha vagueza, acabou por constituir o seu calcanhar de Aquiles.
Outros conceitos colaterais foram surgindo – hoje são mais de vinte, contudo, ao longo do tempo. Entretanto, nenhum deles possui a tamanha relevância das teorias acima mencionadas, que, literalmente, revolucionaram toda a concepção penalista. Constituem, na verdade, tentativas de “remendos” dos três carros fortes.
Muito embora seja alvo de críticas, a doutrina penal brasileira absorveu, para a sua legislação, a teoria finalista. Observa-se, inclusive, diversas menções à palavra “finalidade” no discorrer do texto normativo. Isto porque é a única proposta que reconhece a categoria da conduta dentro de limites ônticos, condição necessária para garantir um direito penal de ato, uma mais adequada intelecção do direito penal por seu destinatário e uma necessária ponte de contato entre o direito penal e a realidade em que pretende operar efeitos.
Desse conceito de ação “estabelecido”, podemos tirar alguns elementos básicos que sejam decisivos quanto à relevância da conduta para o Direito ou não. São eles: a necessidade de exteriorização da conduta e a presença de vontade. Sem essas características, falamos em “ausência de conduta”.
Destarte, podemos concluir esse estudo dizendo que o conceito de conduta humana atua como primeiro filtro, eliminando do campo de observação do direito penal todos os fenômenos que não sejam conduta humana. Situado pré-tipicamente no conceito analítico de crime, funciona como elemento básico por ser aplicável a todos os tipos de crime, elemento de enlace por ser a ligação entre os elementos constitutivos do crime, elemento limite, filtrando de forma propedêutica do campo da análise penal os casos de não-ação.
A essas funções acrescentamos mais uma, a função garantista, baseada nas cláusulas pétreas da Constituição Federal, pela qual o legislador, ao criar normas incriminadoras, só pode proibir ou ordenar fazeres, não lhe sendo possível desviar-se de um direito penal de ato. Esta dimensão política do conceito de conduta humana, mais que qualquer outra, implica na sua razão de estudo e sua importância para a garantia de um Estado Democrático de Direito.