Direito à literatura: ficção ou realidade?

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Pretende-se analisar a pertinência da inclusão da literatura como componente dos direitos à educação, à cultura e ao lazer

Segundo os dados obtidos pela pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 3, realizada pelo Ibope Inteligência, o Brasil tem 88,2 milhões de leitores, o que representa 50% da população. Estes lêem, em média, 4 livros por ano. Cabe considerar que, para o levantamento, leitor é aquele que leu pelo menos um livro nos últimos três meses da pesquisa, incluindo livros literários e didáticos. Apesar de se tratar de uma das melhores médias da América do Sul, é um número alarmante, visto que comprova que a ampliação da rede educacional brasileira – de acordo com o IBGE, a taxa de analfabetismo diminuiu 3% em 2012, se comparada a 2004 – não acarretou a popularização da leitura, nem por instrução e nem por lazer.

O presente trabalho procura tecer considerações acerca da existência do direito à literatura e de sua previsão no direito brasileiro. Para  tanto, considera a literatura de maneira mais ampla possível, abrangendo textos técnicos e literários, inclusive mitos, fábulas, textos orais e escritos em todos os tipos de cultura. Nota-se, a partir dessa definição, o caráter universal da literatura como manifestação cultural e intelectual inerente ao ser humano, presente nos diferentes níveis sociais.

Adota-se, ainda, o conceito de direitos fundamentais de José Afonso da Silva (SILVA, 2005), que os define como as prerrogativas e instituições do direito positivo que se concretizam em garantias para uma vida digna,  livre e igual para todos. E é sob a rubrica dos direitos fundamentais que a Constituição Federal trata da educação, do lazer e da informação. Também garante ela, embora não como direito fundamental, o pleno exercício e  acesso às fontes culturais, bem como sua valorização e difusão.

A pesquisa parte do princípio de que a literatura é um componente necessário dos direitos à educação, lazer e cultura, sendo necessário que se pense em políticas sociais efetivas para sua satisfação. Essa pressuposição será fundamentada na Constituição Federal Brasileira, na Declaração dos Direitos Humanos e em convenções internacionais pertinentes. Procurará, da mesma forma, investigar disposições similares no Direito Comparado, averiguar o êxito das políticas públicas apresentadas e, se possível, tratar da possibilidade de sua aplicação no contexto brasileiro.

Verificada a legitimidade da literatura enquanto aspecto de prerrogativas constitucionais, a pesquisa discutirá quais gêneros literários merecem ser abarcados pelas políticas públicas e como estas podem se materializar de maneira a efetivá-lo.

A Declaração Universal de 1948 promoveu a universalização dos direitos fundamentais, de modo que estes ganharam concretude e exigibilidade jurídica  tanto nas convenções internacionais como nos ordenamentos jurídicos domésticos. Ademais, os mesmos direitos que tratavam das demandas comuns a todos passaram, igualmente, a proteger os interesses de grupos merecedores de atenção especial - tais como crianças, idosos e mulheres. A especificação e a  multiplicação dos direitos humanos são resultados dessa tendência: há a necessidade de regular novos direitos, adequados às diferentes particularidades  daqueles que exigem proteção especial.

Ante essa dilatação dos direitos fundamentais e ante à incapacidade estatal de atender todas as novas prerrogativas que surgem, pode-se questionar a  inclusão do direito à literatura como aspecto necessário dos direitos à educação, à cultura e ao lazer. Poder-se-ia contestar, além disso, a razoabilidade de  investimentos em cultura e lazer quando a saúde, por exemplo, demandaria atenções mais urgentes, que não podem ser preteridas. Ainda, poderia se incorrer na grave deturpação do conceito alemão da reserva do possível: a razoabilidade daquilo que se pode pleitear ao Estado se torna, na doutrina brasileira, mera desculpa orçamentária para defender a não-efetivação de direitos.

Em vista de tais questões, deve o direito à literatura ser enquadrado como direito fundamental ou cuida-se de uma extrapolação do rol trazido pela Constituição Brasileira? Tratando-se de um direito, como deve ser provido pelo Estado? Por fim, quais seriam os critérios para definir os tipos de obras ou  gêneros literários que devem materializar tal prestação?

Apesar de a Constituição Federal garantir o direito universal à educação e a sua prestação compulsória e gratuita, a literatura não foi difundida da mesma forma. Embora exista a isenção de impostos sobre livros, jornais e periódicos em papel (Constituição Federal, artigo 105, VI, alínea "d"), observa-se que a arte literária, considerada um produto comercial, ainda é inacessível para a maioria da população. 

Consoante o conceito de literatura utilizado neste projeto, pode-se perceber que se cuida de uma necessidade universal, um fator de humanização que confirma o homem em sua humanidade. Assim, tanto os ditados populares quanto poesias de cuidadosa métrica e textos populares proporcionariam o enriquecimento da personalidade e do grupo. A "humanização", segundo entende Antonio Candido, é o processo que confirma traços essenciais de humanidade, como o exercício da reflexão, aquisição do saber, afinamento de emoções e a percepção da complexidade do ambiente e dos seres que o habitam. Já de acordo com Zoara Falla (FALLA, 2011, 23), “nós nos tornamos sujeitos daquilo que produzimos como conhecimento e nos humanizamos quando tomamos consciência desse processo”.

Cada agrupamento social cria seus mitos, crenças e valores, de modo que se alcança uma identidade e memória coletivas. O livro possibilita o acesso ao conhecimento produzido por toda a humanidade até os dias atuais, seja no campo da ciência, da história e do gênero literário. O ato de ler se apresenta como uma habilidade essencial para o acesso ao conhecimento e à cultura, contribuindo para a formação plena e crescimento pessoal. Defende-se, por isso, o direito de participar da construção dessa identidade e o acesso a essa memória como manifestação de cidadania e como possibilidade de participação social.

Não basta, porém, conseguir decifrar os códigos escritos – é necessário, ainda, entender seu significado. O Instituto Paulo Montenegro e o IBOPE Opinião, por meio do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), calcularam que apenas um em cada 4 brasileiros domina plenamente as habilidades de leitura, escrita e matemática. Esse estudo também revelou que, apesar da melhora na redução do analfabetismo absoluto e incremento nas aptidões analisadas, a proporção dos que atingem um nível pleno em tais habilidades se manteve praticamente inalterada. O resultado atingido pelo Indicador completa o encontrado pela Retratos da Leitura no Brasil 3: 40% dos entrevistados pelos responsáveis por essa pesquisa afirmaram que não gostam de ler porque apresentam dificuldade ao fazê-lo – não compreendem, não têm paciência, lêem devagar.

Espera-se que por meio da educação e da leitura seja possível reverter a atual posição do Brasil em relação a outras nações – apesar de figurar entre as maiores economias do mundo, o país está entre os últimos no que diz respeito à educação e ao desenvolvimento humano. Não é possível que haja efetiva cidadania sem leitura e sem educação de qualidade.

Definir o que se entende por literatura não é tarefa fácil. Para alguns, escrever é uma maneira particular de pensar, um processo de formar significados que reflete a personalidade e a condição humana.

There is no satisfactory analytical or definitional procedure for deciding whether a comic strip, Lincoln’s second inaugural address, Pepy’s diary, Gibbon’s Decline and Fall, the Homeric epics, the Bible, Orwell’s journalism or Guys and Dolls, is literature. Literature is a label that we give to texts, or whatever character or provenance, that are meaningful to readers who were not in the writer’s contemplation (POSNER, 1998, p. 20).

Também há certa dificuldade de se definir, com exatidão, o âmbito de alcance da expressão direitos fundamentais e sua justificação teórica, sua razão definitiva de ser: para os jusnaturalistas, são imperativos do direito natural; para os positivistas, faculdades outorgadas e reguladas por lei; para os idealistas, princípios abstratos fruto das lutas e política sociais. Diante de da dificuldade de conciliar tais concepções, há aqueles que afirmam ser utópico procurar um único fundamento filosófico e uma conceituação última dos direitos fundamentais. Considerando tais ressalvas, Gonet Branco destaca que:

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Os direitos e garantias fundamentais, em sentido material, são, pois, pretensões que, em cada momento histórico, se descobrem a partir da perspectiva do valor da dignidade humana. O problema persiste, porém, quanto a discernir que pretensões podem ser capitulada como exigência desse valor. E aqui, em certos casos, a subjetividade do intérprete interfere decisivamente, mesmo que condicionada à opinião predominante, informada pelas circunstâncias sociais e culturais do momento considerado. (BRANCO, 2010, p. 313)

Ainda, trata-se de uma classe que não é homogênea e cujas características dependem de numerosos fatores que ultrapassam a esfera jurídica, como a cultura e a história de cada povo. Com efeito, os direitos fundamentais são resultados se uma sedimentação e amadurecimento históricos, de modo que não são os mesmos em todos os lugares e épocas. As gerações de direito fundamentais refletem as prioridades de cada perspectiva histórica, bem como a relação entre o Estado e o indivíduo. Com efeito, Bobbio (BOBBIO, 2004) destaca que se trata de uma classe variável que continua a se modificar com a mudança das condições históricas – conhecimentos, interesses, classes no poder, transformações técnicas etc.

Os direitos humanos seriam frutos de momentos históricos diferentes e a sua própria diversidade já apontaria para a conveniência de não se concentrarem esforços na busca de uma base absoluta, válida para todos os direitos em todos os tempos. Ao invés, seria mais producente buscar, em cada caso concreto, as várias razões elementares possíveis para a elevação de um direito à categoria de fundamental (grifo do autor), sempre tendo presentes as condições, os meios e as situações em que este ou aquele direito deverá atuar. (BRANCO, 2010, 311).

Há, ainda, aqueles direitos fundamentais específicos, que não se aplicam a toda e qualquer pessoa indistintamente. O direito dos trabalhadores, dos idosos e das mulheres são exemplos dessa classe. Se não é possível afirmar categoricamente a universalidade dos direitos fundamentais, o mesmo não pode ser dito a respeito da literatura. Os grandes clássicos, de acordo com Antonio Candido (CANDIDO, 2005) têm um poder universal que ultrapassam a barreira da estratificação social e de certo modo podem redimir as distâncias impostas pela desigualdade econômica, pois têm a capacidade de interessar a todos. Richard Posner também aborda o tema de maneira semelhante. Para ele,

Universality should not be confused with abstraction. Most great literature is highly textured, richly particular, and even (an implication of the test of time) exotic. The world of Homer, for example, is presented to the reader in great detail; and it is emphatically not our world. Ancient literature, especially, is often rich in anthropological or historical interest. But that is different from literary interest. The great author makes us at home (grifos do autor) in his fictive world; that is universality. […] A work of literature will survive in places and times remote from those in which it was created only if it deals with permanent (equivalently, “universal”) features of the human condition. (POSNER, 1998, p. 18).

A construção de uma sociedade justa, livre e solidária, tal como objetiva a Constituição Federal, deve necessariamente passar pela diminuição das barreiras entre as diferentes classes. Oferecer a todas as camadas sociais a possibilidade de fruir da literatura é garantir uma distribuição equitativa dos bens culturais, uma vez que, de acordo com Antonio Candido,

A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade. (CANDIDO, 2005, p. 6)

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Sobre o autor
Eugenio Pacelli da Silva Rodrigues Junior

Bacharelando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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