Responsabilidade do médico: a diferença entre erro e culpa

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05/02/2015 às 12:34
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Houve grande aumento de demandas contra médicos e o agravamento da responsabilidade civil dos médicos, seguido por equivocado posicionamento de juristas ao tipificarem o erro como requisito apto a ensejar o dever de indenizar.

RESUMO

Nos dias atuais nos deparamos com o aumento de demandas contra médicos e o agravamento da responsabilidade civil dos médicos. Neste artigo buscamos demonstrar o equivocado posicionamento de juristas ao tipificarem o erro como requisito apto a ensejar o dever de indenizar.

A obrigação do médico na prestação de seus serviços, via de regra, é de meio, ou seja, o médico assume a obrigação de prestar um serviço de acordo com a sua "lex artis" (literatura e regras da ciência), com zelo, cuidado, atenção e diligência exigida pelas circunstâncias, de acordo com os recursos que dispõe. Porém este não se compromete com a obtenção de certos resultado/cura.

Para caracterização do dever de indenizar são necessários alguns requisitos, como: dano ao paciente; a ação do médico; o nexo/ liame de ligação de causa e efeito entre a ação do médico e o dano ao paciente; e culpa do profissional.

Culpa é a inobservância do dever de cuidado, que pode se materializar através da imprudência, negligência e/ou imperícia.

Imprudência é o agir com descuido, sem cautela (exemplo: cirurgião que opera paciente sem solicitar risco cirúrgico ou sem examiná-la antes). Negligência é a omissão de comportamentos recomendáveis, derivados da experiência comum ou das exigências particulares da prática médica (exemplo: omissão de instruções necessárias ao paciente, abandono de corpo estranho, acidente anestésico por troca indevida de medicamentos). Imperícia é a falta de conhecimento técnico, descumprimento de regras da profissão (exemplo: secção de ureteres em cesarianas, secção de artéria femoral, nas cirurgias de varizes).

Para se eximir do dever de indenizar o médico deve provar causas excludentes de responsabilidade, ou seja, desqualificar um dos elementos ensejadores da responsabilidade civil.

As excludentes de responsabilidade de acordo com o CDC é ônus de prova do médico. As excludentes constituem motivo de isenção de responsabilidade, por desqualificarem um ou mais elementos ensejadores do dever de reparação civil, as excludentes isentam o agente do dever de indenizar, apesar do dano provado pela vítima.

Há excludentes tipificadas e amplamente utilizadas pelo judiciário. Contudo, há excludentes ainda pouco utilizadas. As excludentes de responsabilidade médica são complexas, não devem ser vistas como excludentes típicas das relações de consumo, ora, a atividade médica possui diversos fatores aleatórios e complexos que merecem maior estudo técnico e cientifico sobre o assunto.

Neste artigo iremos estabelecer a distinção entre erro e culpa. Demonstrando que o erro não é elemento capaz de ensejar o dever de indenizar na responsabilidade civil médica.

Assenta-se em doutrinas que o erro médico, ou seja, a conduta culposa do médico que causa dano ao paciente gera dever de indenizar, mas o que seria erro? A doutrina descreve erro por muitas vezes como se tratasse de um requisito da responsabilidade civil do médico. Este posicionamento é equivocado, como veremos a seguir.       

A comparação entre erro e culpa acarreta uma objetivação velada da responsabilidade civil médica, assim, se faz necessária a releitura deste conceito, para adequá-lo à realidade.

Assim como esta comparação e releitura, vários institutos aplicados a responsabilidade civil médica merecem destaque para adequá-los a realidade da ciência, os julgados e doutrinas tem se apoiado numa política protecionista, onde multiplicam-se normas e institutos contra os médicos, em prol apenas de consumidores/pacientes. Este cenário merece mudanças, pois esta desvantagem exagerada em que o médico vem sendo alocado, traz conseqüências desastrosas, para a dignidade da pessoa humana do médico e também para a justiça que é cercada por uma avalanche de processos contra médicos com questões fadadas a improcedência, mas em busca de dinheiro fácil, numa espécie de loteria jurídica.


ERRO X CULPA 

Como descreve Eduardo Nunes de Souza, erro é uma falha no exercício profissional, é um juízo valorativo, promovendo uma comparação entre o procedimento adotado e aquele que em tese, teria evitado o dano já conhecido, este juízo valorativo não analisa a culpa, pois não esta interessado na maior ou menor diligência de um médico diante de um determinado quadro clínico, ora, um médico absolutamente diligente, e observador da "lex artis", diante de um quadro clínico em que temos dois tipos de tratamento, pode optar por um que não cure o enfermo, sendo assim o médico errou, mas não houve culpa[1].

O erro profissional é escusável devido a imprecisão da arte, pois a conduta médica é correta, mas a técnica empregada é incorreta. Assim, resta claro que não havendo culpa não há dever de indenizar pelo profissional.

O problema desta confusão entre erro e culpa reside na conclusão lógica decorrente da equiparação se erro é igual a culpa, sempre que a conduta médica conduzir a um dano e puder se cogitar uma outra conduta que não produziria este dano estaríamos configurando a responsabilidade do médico, o que não se pode admitir, tendo em vista a qualidade da obrigação médica.

Ruy Rosado Aguiar Júnior conclui "a culpa supõe a falta de diligência ou de prudência em relação ao que era esperável de um bom profissional escolhido como padrão; o erro é a falha do homem normal, consequência inelutável da falibilidade humana".  [2]

A confusão entre erro e culpa tem gravidade ao analisarmos que há inúmeros casos em que a intervenção médica produz um dano, portanto supostamente o médico teria errado. Contudo, não é legitimo responsabilizar o profissional. Assim a noção de erro e culpa devem ser distintas. E, assim, só haverá que se falar em responsabilidade do profissional se configurada a culpa.

A equiparação do erro a culpa retira do profissional um dos requisitos de sua responsabilidade, promovendo uma objetivação velada da responsabilidade civil do médico, pois este, só excluirá seu dever de indenizar, se alegar e provar algumas das causas de interrupção do elo de ligação entre sua conduta e o resultado danoso.

Com a objetivação velada não caberá ao médico alegar que atuou conforme a "lex artis", prudência e diligência. Para afastar o dever de indenizar deverá provar apenas excludentes do nexo de causalidade como: caso fortuito, força maior, culpa exclusiva de terceiro ou ato da vítima.

Assim, tal equiparação retira do médico possibilidades de defesa, deixando-o em situação extremamente desfavorável.

Há alguns doutrinadores que seguem este entendimento, diferenciando erro profissional de culpa médica.


ERRO PROFISSIONAL E ERRO DE DIAGNÓSTICO

Em suma, podemos dizer que o erro profissional se dá quando a conduta médica foi correta, porém a técnica empregada foi incorreta. O médico procede corretamente, sendo o erro imputado à limitação da profissão e da natureza humana. Diferentemente da culpa, pois neste caso a conduta médica é incorreta e a técnica é correta. Na culpa há falta dos deveres de prudência e diligência, que se podia esperar de um bom profissional.

Isto posto, o erro de técnica ou profissional resulta das incertezas e imperfeições da arte e não da negligência ou imprudência do profissional. A imperfeição da ciência é uma realidade, e o erro deve ser imputado às limitações naturais da ciência.

No cenário atual vivenciado pelos médicos, em que há uma verdadeira enxurrada de processos acusando o profissional de erro médico, se faz necessária, uma análise fundamentada de todos os requisitos aptos a gerar o dever de indenizar, para que a defesa seja qualificada na "luta"contra o protecionismo flagrante dado aos pacientes.

O erro profissional em suma se caracteriza pela conduta correta do médico, não há culpa, pois ele atuou em conformidade com a "lex artis", com zelo e prudência, porém desta conduta adveio um dano.

Não se pode olvidar que a obrigação médica é de meio, ou seja, o médico só deve responder pelo que depender dele, e não pelas repostas do organismo e nem pelas limitações da medicina.

Desta feita se o procedimento eleito pela literatura médica como correto produz efeitos indesejáveis não há que se falar em responsabilidade médica. Isso porque a responsabilidade médica é subjetiva fundada na culpa.

Assim o erro profissional ou de técnica exclui a culpa. Com a exclusão da culpa consequentemente não há que se falar em dever de indenizar. O erro profissional então será escusável, ou seja, desculpável, diante da falibilidade da ciência médica.

Outro exemplo de erro escusável é o erro de diagnóstico, ou seja, o médico atuou corretamente porém chegou a uma conclusão falsa. Assim, o erro não deriva de culpa profissional e sim da falibilidade da própria ciência e das reações do organismo humano. Mencione-se Miguel Kfouri Neto para dar o conceito da expressão:

Do ponto de vista técnico, o diagnóstico consiste em identificar e determinar a moléstia que acomete o paciente, pois dele depende a escolha do tratamento adequado. O diagnóstico, entretanto, não é uma operação matemática. Às vezes, para se chegar ao diagnóstico correto, torna-se necessária uma agudeza de observação de que nem todo médico é dotado. Por isso, a doutrina, de modo geral, analisa detidamente tal questão.

A determinação da responsabilidade civil médica, decorrente do erro de diagnóstico, revela-se muito difícil, porque se adentra a um campo estritamente técnico, o que dificulta enormemente a apreciação judicial, principalmente porque não se pode admitir em termos absolutos a infalibilidade médica. Por outro lado, como veremos, condições pessoais do próprio paciente também podem determinar tais erros[3].

O erro de diagnóstico assim como o erro profissional em princípio é escusável e não induz a responsabilidade do médico, desde que comprovado que o médico diagnosticou de forma diligente e consciente, bem como agiu em conformidade com as regras de sua ciência, utilizando os aparatos cientificos que estão a sua disposição. Todavia, há exceção nos casos de erros grosseiros, se verificado que o diagnóstico foi precipitado e negligente, nestes casos os tribunais tem concedido indenização aos pacientes.

Contudo, resta claro que não incube ao juiz analisar propriamente o erro de diagnostico, mas sim se o medico teve culpa ou não no modo que procedeu o atendimento, se recorreu a todos os meios a seu alcance para investigar o mal, não há que se falar em culpa.

Para Rui STOCO o chamado erro profissional "resulta das incertezas e imperfeições da arte e não da negligência ou incapacidade de quem a exercita, salvo se tratar de um erro grosseiro".[4]

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Ora, erro é a falha do homem normal, invencível à mediana cultura médica. O erro deve ser imputado à limitação da ciência e à limitação da natureza humana.

Como advertem Antonio Ferreira Couto Filho e Alex Pereira Souza: "o médico também é pessoa, sujeito a inúmeras limitações impostas pela sua própria condição humana e também pela ciência, sem contar a ação ou a omissão do paciente durante certo tratamento" [5]

Assim, resta claro que o erro médico deve ser melhor estudado por nós juristas, pois o erro não é requisito da responsabilidade civil. Erro advém da imperfeição da ciência. Assim deve ser apreciado pela jurisprudência sem sentimentalismo ou erosão de requisitos indispensáveis ao dever de indenizar.

O erro deve ser apreciado com reservas pelos julgadores pois não é papel do juiz fazer apreciações de ordem técnica, ou se existe uma outra técnica que poderia não levar o dano. Cabe ao juiz apenas o estudo da conduta do profissional.   

Certo é que não cabe ao julgador analisar se o médico errou, mas sim se ele procedeu de acordo com suas obrigações de perícia, prudência e diligência, deve o juiz analisar a culpa, e não fazer apreciações de ordem técnica.

Conforme citado por Aguiar Dias "o julgador não deve e nem pode entrar em apreciações de ordem técnica quanto aos métodos científicos que, por sua natureza, sejam passíveis de dúvidas e discussões."[6]

A apreciação de tais casos deve ser vista com reservas, pois é de interesse geral, principalmente de pacientes que os médicos não fiquem paralisados no seu atuar, com temor de excessivo rigor em processos judiciais deixem de aplicar procedimentos novos, ou avanços da medicina.

Não podíamos deixar de mencionar texto retirado do artigo da ANS- O modelo de atenção obstétrica no setor de saúde suplementar no Brasil: Cenários e perspectivas. Em que prega a adequação do judiciário para proteção dos médicos,

Outro ponto de extrema importância é a mudança do sistema jurídico para que os médicos se sintam protegido ao oferecer evidencias mais atuais no atendimento as suas pacientes. No Brasil e nos EUA por exemplo os médicos mais processados são os obstetras , mas apenas quando oferecem atendimento humanizados e estimulam o parto vaginal, tanto no Brasil quanto nos EUA, realizar uma cesariana é salvo conduto para o obstetra, mesmo que isso signifique aumentar os risco a que milhares de gestantes se expõem ao realizar uma cirurgia dessa magnitude. Aguardar o desfecho natural de um parto pela via vaginal, é um risco tremendo para os profissionais porque a mitologia contemporânea favorece a medicalização extremada, mesmo que o conhecimento cientifico atual aponte um risco muito maior nas intervenções cirúrgicas. Enquanto os médicos (principais atendentes de parto no Brasil e EUA e boa parte da América Latina) forem ameaçados por processos judiciais ao atender de forma humanizada nenhum resultado será perceptível. O aprimoramento judiciário é fundamental para que os profissionais da medicina possam ser avaliados em juízo pelos parâmetros mais modernos existentes no atual conhecimento obstétrico, como as diretrizes oferecidas pela medicina moderna.

A Agência Nacional de Saúde Suplementar demonstra neste trecho a dificuldade enfrentada pelos médicos nas demandas judiciais. Destaca-se ainda como a ameaça de processo aprisiona os profissionais.          


CONCLUSÃO

Assim não há responsabilidade do profissional sobre o dano decorrente do ato médico "errôneo" não culposo. É certo que não sendo provada a culpa será o dano debitado ao infortúnio, pois presumir culpa é lesar princípios basilares.

Porém, o estudo da diferenciação entre erro e culpa é de essencial importância nos dias atuais, tendo em vista que este protege direitos fundamentais dos médicos que por diversas vezes são lesados pelo judiciário.

O médico já vem sendo exposto pelos pacientes em demandas onde são colocados em situação extremamente desfavorável. Como a aplicação irrestrita e abstrata do Código de Defesa do Consumidor, a importação infundada da teoria da perda de uma chance e demais normas e entendimentos.

O estudo e a ênfase às excludentes de responsabilidade civil dos médicos trarão maior alento a classe, pois terão resguardados a segurança jurídica e principalmente sua dignidade, haja visto, que a álea de suas atividades deve ser fator preponderante na apuração da responsabilidade civil, ora, estes profissionais não são Deus, não podem responder pelas limitações da ciência, pelas limitações humanas e nem pelo organismo do paciente, que muitas vezes é incompreensível. Ora, qualquer profissional está sujeito a erros. O erro é a falha normal, consequência inelutável da falibilidade humana, conforme antigo ditado : "só existe uma classe de homens que não erra: a dos que nada fazem".

A adoção e o estudo sobre a responsabilidade civil do médico e sua álea trará maior clareza aos julgadores e às decisões, e consequentemente maior segurança jurídica, pois é sim necessário maior alento a classe médica brasileira, que sofre tortuosas intervenções governamentais e da iniciativa privada, que cada vez mais diminuem seus direitos e suas liberdades.

A saúde brasileira e os médicos devem ser vistos com o cuidado necessário, antes que o restante que temos de saúde entre em colapso, pois já vemos vários bons profissionais deixando áreas de risco para "fugir"de demandas. Como ficarão nossas emergências, urgências, maternidades? A industria do dano instituído nos Estados Unidos da América contra médicos já deixa uma herança desastrosa para a saúde de diversas regiões daquele país.

Infelizmente o judiciário ainda prega o protecionismo exagerado ao consumidor, assim os julgamentos ainda são eivados de sentimentalismos, tantos exageros e vícios acarreta a erosão de requisitos essenciais para ensejo do dever de indenizar. A erosão destes filtros de reparação em busca de "fazer justiça" afeta demasiadamente direitos fundamentais dos ditos réus nestas demandas.

O direito deve-ser, possuir fundamentos técnicos e dogmáticos garantidores da segurança jurídica. O "fazer justiça" eivado de sentimentalismo e proteção pregando que o "justo paga pelo pecador" não deve encontrar guarida sobre nenhum tribunal. Até porque tais fundamentos são contrários ao direito, lesando principalmente direitos fundamentais como a Dignidade da Pessoa Humana, Igualdade, Presunção de Inocência, Ampla Defesa, Liberdade Profissional e Contraditório.

O direito para fazer justiça deve se orientar por fundamentos técnicos e dogmáticos e com esse trabalho procuramos demonstrar e orientar de acordo com o direito os requisitos indispensável para o dever de indenizar do médico, qual seja, a culpa provada. Desmistificando o direito sentimental e a erosão dos filtros de reparação.

O erro de técnica e o erro de diagnóstico não podem servir de fundamento para a responsabilização destes profissionais, ora, tais erros resultam das incertezas e da imprecisão da arte e não da negligência ou imperícia do profissional. Ora, o fundamento da responsabilidade civil do médico é a culpa, e não o erro. A utilização adequada da técnica torna mais segura a decisão, privilegiando a igualdade e a dignidade do profissional.

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Sobre a autora
Amanda Bernardes

Advogada Especialista em Defesa Médica.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Defesa dos médicos em demandas judiciais.

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