Administração pública "contra legem": a possibilidade da administração pública obstar a aplicação de lei inconstitucional, em favor da efetividade dos preceitos constitucionais

10/02/2015 às 11:18

Resumo:


  • A inconstitucionalidade das leis tem sido objeto de debates doutrinários e jurisprudenciais

  • A Administração Pública pode agir de forma contrária à lei para efetivar direitos constitucionais

  • A atuação administrativa deve seguir um procedimento regular para evitar a aplicação de leis inconstitucionais

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Por vezes, a atividade legislativa produz leis cujos efeitos práticos implicam uma violação de direitos fundamentais sendo necessário uma atuação administrativa "contra legem", para garantir a efetividade da Constituição.

A temática da inconstitucionalidade das leis e seus efeitos – ao longo das últimas décadas –tem sido alvo de grandes debates doutrinários e jurisprudenciais tendo em vista que, em uma ordem jurídica harmônica e uníssona, a edição de leis deveria sempre estar adstrita aos preceitos da constituição.

Todavia, por razões diversas – em especial pelo desconhecimento do ordenamento jurídico brasileiro e estudos doutrinários correspondentes – o legislador, por vezes, acaba propondo uma lei que vem a ser promulgada e publicada, mas cujos efeitos práticos violam diretamente um preceito constitucional. Tal violação, diga-se, pode ocorrer contra qualquer fundamento constitucional, sendo que a gravidade maior está nas hipóteses em que as leis figuram-se inconstitucionais por violarem um direito fundamental assegurado a todos o cidadão (educação, saúde, moradia, dentre outros).

Neste cenário, repousam os debates sobre a possibilidade da Administração Pública adotar uma postura contra legem, e agir de forma contrária a lei, para que o texto Constitucional e dos direitos por ela consagrados, sejam realmente efetivados.

É certo que a atividade administrativa é norteada, essencialmente, pelo princípio da legalidade, ensejando a necessidade de a Administração Pública agir de acordo com os termos das leis ordinárias, leis complementares, e demais instrumentos legais. A origem da legalidade, destaca-se, remonta ao período em que o Estado necessitava de freios para que os direitos dos indivíduos fossem respeitados, a fim de saciar a desconfiança existente em relação a atuação da administração pública.

Por tal razão, a legalidade que fundamenta a atividade administrativa tem por fim maior ser um instrumento a favor do cidadão, não sendo crível, com efeito, que seja invocada em prejuízo deste. Ademais, a evolução das relações sociais fez emergir a necessidade de uma maior proteção ao cidadão, que não estava totalmente protegido contra efeitos danosos da força do Estado, tão somente pela força das leis. É neste contexto que as nações foram aperfeiçoando seus sistemas jurídicos, instituindo direitos fundamentais aos cidadãos além das leis, servindo de fundamento a ordem Constitucional.

A Constituição passa a ser, portanto, a base de toda a construção jurídica, exigindo de todas as ramificações do direito, uma interpretação constitucional de seusenunciados. Esta é a ideia do neoconstitucionalismo que, no intuito de promover um efetivo Estado Democrático de Direito consagra a supremacia da Constituição.

A consequência é que qualquer dispositivo legal que estiver em desacordo com a Constituição Federal, necessita ser revisto, para ser retirado do mundo jurídico ou interpretado em harmonia com os postulados da ordem constitucional.

No ordenamento brasileiro o controle de constitucionalidade das leis é atribuído ao Poder Judiciário, seja de forma difusa ou concentrada, mediante processo judicial próprio, tendo diversas autoridades administrativas competência para propor as respectivas demandas.

Todavia, é notório que os processos judiciais exigem umlapso temporal considerável o qual – por vezes – pode por em risco direitos fundamentais que estão sendo violados pela execução de leis ilegais.

Neste caso, não se pode aceitar que a Administração Pública – sob a alegação do princípio da legalidade e em respeito a separação de poderes – fique inerte até um pronunciamento judicial definitivo sobre a inconstitucionalidade posta, e deixe o cidadão a mercê de seus direitos – quiça da própria vida, quando em risco o direito à saúde.

Conforme exposto anteriormente, o princípio da legalidade é uma construção jurídica a favor do cidadão,sendo inaceitável invocar seus fundamentos para justificar uma conduta omissão, ou uma atuação positiva que implique uma violação a um direito fundamental – ou outra garantia constitucional. O Estado contemporâneo contempla a supremacia da Constituição Federal sendo que sua violação é que representará uma ofensa a ordem jurídica.Do mesmo modo, a separação de poderes, atualmente, passa por um novo formato, reconhecendo a necessidade dos mecanismos de “freios e contrapesos”, como garantia de máxima efetividade dos poderes do Estado, e proteção ao cidadão na realização de um Estado Democrático. No caso, permitir que a Administração tenha uma postura ativa em evitar a aplicação de uma lei inconstitucional não será uma usurpação de poder, tendo em vista que não se abstrai a necessidade de o poder judiciário declarar a inconstitucionalidade abstrata da lei, e regular seus devidos efeitos – o que se busca é evitar efeitos danosos aos cidadãos, potencial ou efetivamente afetados pela inconstitucionalidade.

Ademais, conforme reforma administrativa ocorrida por força da EC 19/98, a Administração Pública tem sua atividade regida pelo princípio da eficiência, o qual impõe o máximo de efetividade na atividade administrativa, sendo decorrência lógica de tal princípio evitar a violação de garantias constitucionais – ainda que respaldadas em ato aparentemente legal.

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Oportuno ressaltar ainda que as leis com vício de inconstitucionalidade são nulas de pleno direito, razão pela qual não são aptas a produzir efeitos, sendo legítima a atuação administrativa que evite o cumprimento desta lei, em especial quando ameace a produzir violação de direitos fundamentais.

É claro que não é em todo caso de vício de inconstitucionalidade de lei que a Administração Pública deve afastar os efeitos da lei, devendo, antes de mais nada, ser apreciado o caso concreto para aferir que tipo de direito corre o risco de lesão em detrimento de uma lei inconstitucional: sendo um direito fundamental atrelado a condições mínimas de existência, a atuação administrativa contra legem é medida que se impõe; tratando-se de outros direitos, a solução haverá de ser definida com sopesamento dos valores em conflitos. Em nenhuma hipótese – contudo – há de ser admitida uma atuação administrativa contra legem em prejuízo ao cidadão, ou que tenha por fim justifica uma inércia aos deveres da Administração Pública.

Há de ser sopesado ainda que o critério de atuação administrativa contra legem para afastar lei inconstitucional em favor da prevalência de direitos fundamentais, poderá encontrar conflito quando a aplicação da lei, ou a sua rejeição implicarem, em ambos os casos violação da direito constitucional. Isso pode ocorrer, por exemplo, diante de uma lei que imponha a transfusão de sangue em testemunha de Jeová – e que figura-se inconstitucional por violar o direito a liberdade religiosa, que é contra a transfusão – mas cujo afastamento poderá violar um outro direito constitucional – o direito a vida.

Em tais hipóteses, e em todo o caso, será necessário ponderá os valores conflitantes, tendo sempre como foco a efetividade da Administração Pública e o implemento dos preceitos consticionais a favor de um Estado Democrático de Direito.

Por tal razão, Hachen (2014) sugere que esta prerrogativa administrativa – que afigura-se, antes um poder-dever de evitar a aplicação da lei inconstitucional – deverá seguir um procedimento regular, que inclua um parecer jurídico de agente qualificado para averiguar a existência efetiva de uma inconstitucionalidade, e o direito constitucional ameaçado, para que seja então proferido um ato administrativo solene, devidamente motivado, ao qual seja dada publicidade, devendo ser seguido do procedimento judicial próprio para reconhecimento da inconstitucionalidade do preceito.

Diante de todo, conclui-se que a Administração Pública não apenas pode, como é obrigada a deixar de aplicar uma lei com vício de inconstitucionalidade, cujos efeitos seja a violação de direitos fundamentais, sendo necessário seguir procedimento próprio com o fim de evitar abuso na prerrogativa e garantia a máxima efetividade das funções da Administração Pública.

O tema, como se vê, exige debates e, principalmente, difusão, para que os administradores compreendam a importância de sua atuação, e possam dar concretização das ideias trazidas pela doutrina, em prol de uma sociedade mais evoluída.

Referências Bibliográficas:

CARNEIRO FILHO, José Cláudio. O controle repressivo administrativo da constitucionalidade dos atos normativos: limites, sujeitos competentes, procedimento adequado e responsabilidades inerentes. Lisboa, 2010. 238 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa.

HACHEM, Daniel Wunder. Tutela administrativa efetiva dos direitos fundamentais sociais: por uma implementação espontânea, integral e igualitária. Curitiba, 2014. 614 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná.

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Sobre a autora
Joseliane Sonagli

Advogada, Professora de Direito Empresarial da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI/SC; pós-graduada em Direito Empresarial e de Negócios pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI/SC; mestre em Atividade Econômica e Desenvolvimento Sustentável na Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC/PR

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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