Com o fim da Guerra Fria o sistema internacional baseado na lógica da bipolaridade desintegrou-se dando lugar a uma nova ordem mundial. Nesse cenário ganham importância as organizações internacionais e as iniciativas de cooperação entre os países, entre elas os processos de integração regional. Além disso, viu-se a alavancada dos EUA como principal ator do sistema internacional e a clareza de que as relações entre os Estados seriam balizadas pelo fenômeno da globalização.
Surge então, um novo efeito: a competição econômica dentro de um mundo globalizado. A América Latina, que até então estivera marginalizada nos assuntos internacionais, passa a ter interesse em participar, cooperar e promover processos de integração para obter desenvolvimento econômico e maximizar o bem-estar de suas populações em face a globalização superando assim, uma condição de país periférico no sistema internacional.
A integração econômica pode ser vista como o principal instrumento em direção à globalização da economia nacional. Nesse sentido, até o fim dos anos 90, essa foi a interpretação feita pela Argentina com relação ao MERCOSUL, principalmente no que se refere à sua política econômica, industrial e comercial, e acabou servindo de modelo para o bloco[1].
É possível verificar que desde os anos 80 a integração regional tornou-se parte de uma política voltada para o desenvolvimento que alcance os aspectos econômicos, sociais, políticos, ambientais e tecnológicos.
Neste sentido, o MERCOSUL surge inicialmente como algo mais amplo voltado para a promoção do desenvolvimento da região, onde a cooperação seria uma estratégia de superação das limitações individuais. Entretanto, ao longo dos últimos anos verificou-se, face aos novos desafios da nova economia mundial e inserção internacional, a necessidade de se avançar no processo de integração regional e por conseqüência, o aperfeiçoamento institucional e jurisdicional do MERCOSUL, em especial o sistema de solução de controvérsias.
Neste sentido, portanto, pretendemos, por ora, focar nosso estudo na análise da evolução do Sistema De Solução de Controvérsias do MERCOSUL por compartilharmos da idéia da real necessidade de garantir a correta interpretação, aplicação e cumprimento dos instrumentos fundamentais do processo de integração e do conjunto normativo do MERCOSUL, de forma consistente e sistemática a fim de consolidar a segurança jurídica ao bloco[2].
Em decorrência deste primeiro estudo utilizaremos o contencioso das papeleras entre a Argentina e o Uruguai para ilustrar e verificar se na prática há eficiência no mecanismo de solução de controvérsias do MERCOSUL.
Este caso servirá também para verificarmos como se dá a atuação dos países na solução dos litígios ao compreender a formulação das decisões governamentais argentinas e uruguaias e suas conseqüências.
A evolução do sistema de controvérsias do MERCOSUL será entendida através da análise dos Protocolos de Assunção, Brasília, Ouro Preto e de Olivos.
O Protocolo de Brasília (PB) foi assinado em 17 de dezembro de 1991 e foi desenvolvido como conseqüência da preocupação dos Estados-partes em fazer cumprir o Tratado de Assunção, que já previa em seu artigo 5º e anexo III, a adoção de um sistema de solução provisório de controvérsias[3]. No entanto, apenas com o anexo do Protocolo de Ouro Preto de 2004, o sistema de solução de controvérsias do bloco começa a ter forma.
O processo de solução de controvérsias no PB previa três fases: negociações diretas, intervenção do GMC e, por fim, julgamento do caso pelo Tribunal Ad Hoc.
Os pontos principais de críticas do PB se davam pela subjetividade do processo de aplicação de compensação, os particulares só poderiam acionar o processo de solução via deferimento do governo e principalmente a duplicidade de foro[4].
Em linhas gerais, o debate que se vê nas bibliografias é que, enquanto os críticos apontam a ausência de proteção aos reclamantes decorrente da inexistência de poder de sanção por parte das instituições do bloco e de um ente que determine uma interpretação unívoca dos acordos gerando assim desigualdade entre os Estados - partes, os defensores do sistema alegam que este apresenta certo grau de flexibilidade por conta da ausência de uma estrutura burocrática que originaria gastos para o Estado, além do fato de que o Brasil não deveria se comprometer excessivamente com os sócios que são menores[5].
Acerca deste debate, nos posicionamos ao lado dos críticos já que acreditamos na importância do aprofundamento institucional do MERCOSUL como alicerce do projeto de integração da América do Sul e inserção global, além de impedir medidas unilaterais por parte dos Estados - partes que, por ventura, possam comprometer a credibilidade do projeto.
Diante da consciência da necessidade do aperfeiçoamento do sistema de resolução de controvérsias, o MERCOSUL aprovou em 18 de fevereiro de 2002 o Protocolo de Olivos (PO). O avanço do PO em relação ao PB é substancial. Destaque para:
a) Criação de um Tribunal Permanente de Revisão (TPR);
b) Implementação de mecanismos de regulamentação das medidas compensatórias;
c) Criação de normas procedimentais inspiradas no modelo da OMC, como as que determinam que o objeto da controvérsia seja limitado na reclamação e resposta apresentadas ao Tribunal Ad hoc;
d) Intervenção opcional do GMC;
e) Possibilidade de eleição de foro; e
f ) Possibilidade de reclamação dos particulares.
Para Coutinho[6], o TPR é a principal inovação do PO já que “representa um aperfeiçoamento do sistema jurisdicional, conferindo dinamismo ao sistema de resolução de diferendos”.
Neste cenário, portanto, estudaremos o caso das papeleras e verificaremos a operacionalidade e eficácia do mecanismo de solução de controvérsias.
O contencioso se deu por conta da construção de duas usinas de celulose na fronteira entre a Argentina e o Uruguai. As empresas ENCE S.A e Ou Metsa-Botnia Ab foram autorizadas a iniciar a construção de dois projetos de fábricas de papel e celulose: a Celulosas de M´Bopicuá em outubro de 2003 e a Orion em fevereiro de 2005. Entretanto, segundo a Argentina, o Uruguai teria autorizado a instalação sem seguir o procedimento previsto pelo Estatuto do Rio Uruguai de 1975 de estabelecer comunicação prévia acerca da realização de eventuais obras que possam prejudicar a navegação, o regime ou a qualidade das águas.
Com a justificativa ambiental alguns grupos de cidadãos argentinos, com o apoio de movimentos ambientalistas, passaram a bloquear o acesso às pontes internacionais que interligam as cidades de Fray Bentos e Colón no Uruguai e Gualeguaychú e Paysandú, na Argentina.
Tentou-se uma série de soluções diplomáticas sem efeito o que fez com que o Uruguai denunciasse a obstrução à livre circulação de mercadorias, como violação ao art. 1º do Tratado de Assunção e ao Protocolo de Montevidéu sobre comércio e serviços, além das regras do Direito Internacional. Foi assim que um Tribunal Arbitral Ad Hoc (TAH) foi acionado em abril de 2006. Por outro lado, em maio de 2006, a Argentina acionou a Corte Internacional de Justiça (CIJ) alegando violações por parte do Uruguai de suas obrigações decorrentes do Estatuto do Rio Uruguai. O desfecho deste litígio ainda é aguardado. Entretanto, após replicas e treplicas, em abril de 2010, a Corte entendeu que o Uruguai deveria ter consultado a Argentina antes da instalação das usinas, como previsto pelo Tratado do Rio Uruguai. Por outro lado, afirmou que o Uruguai não descumpre o Tratado na questão ambiental, tendo em vista que o nível de poluição da água não aumentou após a instalação das indústrias. A postura consensual da Corte demandará ainda negociações intensas entre os governos para que se encontre uma solução final para o conflito.
Verificaremos ao longo do estudo que o MERCOSUL não fora capaz de resolver a controvérsia mesmo com competência para tal. Na teoria o projeto apresenta inovação e esperança de independência dos tribunais do MERCOSUL, mas na prática, reacende a idéia da falta de interesse em promover, de fato, a institucionalização do bloco comprometendo assim a eficácia do processo de integração da América do Sul.
O caso das papeleras é visto por muitos especialistas como o auge da crise diplomática do processo de integração sul americano. Fica evidente a ausência da eficácia do mecanismo de solução de controvérsia do prisma jurídico e põe em dúvida o futuro do MERCOSUL e o próprio processo de integração.
É contraditório verificar as inovações advindas do PO e o resultado na prática. O sistema continua seguindo o modelo arbitral e apresenta sérios graus de ineficácia. Falta-lhe neutralidade, autonomia e principalmente vontade política e comprometimento dos Estados – partes. Se analisarmos o PO isoladamente é fato que incentiva a harmonização das relações entre seus membros. Entretanto ainda requer um aprimoramento do mecanismo garantindo-lhe a segurança jurídica esperada e necessária. Salientamos a urgência de um posicionamento dos Estados – partes, sem retórica, para dar andamento ao aperfeiçoamento do processo de integração evitando, assim, uma crise de credibilidade no cenário internacional.
Sendo assim, estudar o mecanismo de solução de controvérsias do MERCOSUL é de grande importância, pois permite aos governantes dos Estados - partes conhecer os procedimentos da negociação e os tramites do sistema para aprofundar o processo de integração. Reavaliar o episódio das papeleras e tirar lições positivas se faz mais do que necessário para a consolidação, mesmo que tardia, do processo de integração sul americano.
[1] BERNAL-MEZA, Raul. A crise Argentina, 2001
[2] Caput do Protocolo de Olivos
[3] O Tratado de Assunção previa no parágrafo 3º do Anexo III a adoção de um Sistema Permanente de Solução de Controvérsias para o MERCOSUL para 31 de dezembro de 1994.
[4] Para Loureiro (2003), a utilização dos dois foros, “além de enfraquecer o processo de integração do MERCOSUL, tendo em vista a total indiferença apresentada em relação à decisão proferida no âmbito regional, também é causador de um ambiente instável, sem a segurança jurídica necessária às relações internacionais. Além de que, a submissão aos dois foros é responsável por um prolongamento desnecessário dos litígios, perpetuando o clima de instabilidade entre os envolvidos.”
[5] SEITENFUS, Ricardo. Manual das Organizações Internacionais, p. 220.
[6] COUTINHO, Kalyani Rubens Muniz. Protocolo de Olivos: um novo sistema de solução de controvérsias para o Mercosul, p. 5.