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Algumas impropriedades do denominado "novo" Código Civil

01/01/2003 às 00:00
Leia nesta página:

Sumário: 1. Introdução; 2. Incongruências, 2.1. Situação do menor; 2.2. Momento de aquisição da personalidade jurídica; 2.3. Inalienabilidade do nome empresarial; 2.4. Pessoa jurídica como sócia-administradora; 2.5. Sociedade entre cônjuges; 2.6. Teoria "Ultra vires societatis"; 2.7. Aval parcial e endosso.


1. Introdução

Está em período de "vacatio legis" a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que, entre os operadores do direito, está sendo mais conhecida como o "Novo" Código Civil, sendo certo que, se nenhuma alteração for feita, entrará plenamente em vigor em janeiro de 2003.

Este diploma legal, apesar de "novo", acabará revogando várias leis, inclusive, a primeira parte da Lei nº 556/1850 (Código Comercial).

Não há dúvidas de que em pleno século XXI a Lei nº 10.406 retrata a falta de visão e capacidade jurídica do Poder Legislativo, vez que dá ensejo à várias incongruências, a começar pelo fato de o direito empresarial e cambiário (parte geral) constar no Código Civil. Será que o legislador procurou a difícil unificação do direito privado? Qual a finalidade desta disciplina? Será que para o direito brasileiro adotar a teoria da empresa deveria esta estar disciplinada no Código Civil? Não seria melhor uma reforma total no Código Comercial do século XIX?

Bom, certo é que o "Novo Código Civil" deixa de enfrentar algumas questões bastantes controvertidas na doutrina e na jurisprudência e, às vezes, acaba optando pela posição menos aconselhável.


2. Incongruências

2.1. Situação do menor

Atualmente, em razão do disposto no artigo 9º, p. único, do Código Civil de 1916, a menoridade civil cessa aos 21 (vinte e um) anos completos, sendo que uma das hipóteses de o menor emancipar-se é o fato de o mesmo estabelecer-se comercialmente com economia própria, havendo controvérsia sobre o limite etário mínimo, ou seja, se a partir dos dezesseis anos ou dezoito anos. Neste contexto, levando-se em consideração o art. 3º, inciso II, do Decreto-lei nº 7.661/1945, que admite a falência do menor desde que tenha mais de dezoito anos, e a maioridade penal, que começa aos dezoitos anos, filiamo-nos à posição que defende o limite etário mínimo de dezoito anos, com fundamento em uma interpretação sistemática (1).

A questão torna-se problemática no momento em que o ‘Novo Código Civil", no artigo 5º, altera a maioridade civil para dezoito anos de idade completos, sendo que no parágrafo único, inciso V, passa admitir expressamente a emancipação do menor, desde que devidamente estabelecido comercialmente, tenha economia própria e dezesseis anos de idade completos.

Desta forma, poderíamos concluir que o legislador civilista, sem analisar a atual lei de falências (art. 3º, inciso II, do Decreto-Lei nº 7.661/1945), passou a admitir a emancipação aos dezesseis anos? E em sendo positiva a resposta, a falência poderá ser decretada?

Não há dúvidas de que urge que a lei de falências seja reformada, valendo registrar que está em tramitação no Poder Legislativo um projeto de lei de falências e concordatas, que já foi chamado de projeto de lei de liquidação judicial e recuperação. No entanto, este projeto, dificilmente, tornar-se-á lei antes da entrada em vigor do "Novo Código Civil". Ademais, mesmo que entre em vigor, de toda sorte haverá uma incongruência do "Novo Código Civil" com o Código Penal, vez que, mesmo que o menor venha a emancipar-se com dezesseis anos de idade e seja admissível o decreto falimentar, mesmo assim, em eventual cometimento de crime falimentar, este menor emancipado não poderá ser responsabilizado criminalmente, diante do critério biológico adotado quanto à menoridade penal.

Nesta linha de raciocínio, o menor emancipado pela atividade empresarial aos dezesseis anos terá capacidade civil plena, capacidade falimentar, mas, penalmente, será inimputável. E se o menor der um "rombo" no mercado? Nada sofrerá ou responderá à processo sócio-educativo junto ao r. Juízo da Infância e da Juventude?

Ora, das duas uma, ou se altera o "Novo Código Civil" ou terá que ser alterada a maioridade penal!

Ainda sobre a questão do menor, o "Novo Código Civil’ deixou de analisar a possibilidade de o menor poder ser sócio de uma sociedade, ressaltando que, atualmente, a questão é controvertida na doutrina (2) e na jurisprudência (3) no tocante às sociedades limitadas. Já no tocante às sociedades reguladas no Código Comercial, este diploma legal veda expressamente no artigo 308 a participação do menor como sócio da sociedade.

Mas, e com o "Novo Código Civil"? Da mesma forma que o Código Civil de 1916, o novel diploma legislativo, no artigo 104, preceitua que, como um dos requisitos de validade do negócio jurídico, no caso o contrato social, tem-se a capacidade do agente, fazendo crer que o menor não emancipado, por ser incapaz, não poderá ser sócio de sociedade. No entanto, aquela controvérsia, apesar dos longos anos, continuará subsistindo no século XXI, até porque o Código Civil de 1916 também exigia agente capaz para o contrato ser válido (art. 81) e, mesmo assim, tem-se a divergência doutrinária e jurisprudencial.

2.2. Momento da aquisição da personalidade jurídica

Atualmente, antes da entrada em vigor do "Novo Código Civil, há controvérsia quanto à aquisição da personalidade jurídica pela sociedade comercial, predominando o entendimento (4) de que tal ocorre com o devido arquivamento do ato constitutivo na junta empresarial (arts. 16. e 18, ambos do Código Civil de 1916). No entanto, há quem defenda (5) que com a simples constituição já há a aquisição da personalidade jurídica, sendo que o registro é importante para que a sociedade possa funcionar de forma regular.

Após décadas, esta controvérsia continuará sendo atual, mesmo após janeiro de 2003, vez que o artigo 985 do "Novo Código Civil", de forma expressa, dispõe que a sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos, além do mais, o artigo 45 do mesmo diploma legal, de forma categórica, preceitua que a existência legal das sociedades privadas começa com a inscrição. Portanto, tal diploma legal faz crer, aparentemente, que a personalidade jurídica é adquirida com o registro.

No entanto, o próprio legislador civilista, quando dispõe sobre as sociedades em comum (leia-se irregulares ou de fato) no artigo 990, de forma também categórica, preceitua que os sócios destas sociedades têm responsabilidade solidária e ilimitada, sendo que está excluído do benefício de ordem. Em outras palavras, não possuirá responsabilidade subsidiária apenas aquele sócio que contratou pela sociedade, presentando-a. Em sendo assim, os demais sócios que não contrataram pela sociedade terão responsabilidade subsidiária, o que significa dizer que os credores da sociedade deverão executar primeiramente o patrimônio desta e, se for o caso, executarão, de forma ilimitada, os bens dos sócios. Há, portanto, benefício de excussão, o que evidencia a existência de autonomia patrimonial, isto é, o patrimônio da sociedade não se confunde com os patrimônios dos sócios, salvo o do sócio que contratou pela sociedade. Assim, objetivamente, o legislador civilista acabou acolhendo a teoria da personalidade jurídica, prevista atualmente no artigo 20 do Código Civil de 1916.

Portanto, apesar de o "Novo Código Civil" procurar fazer crer que as sociedades em comum são despersonificadas, pois exige o registro para a aquisição da personalidade jurídica e acaba por tratá-las no capítulo " Da Sociedade Não Personificada", admite a autonomia patrimonial, que é o substrato da teoria da personificação.

Ademais, no tocante à sociedade em conta de participação, que é uma sociedade sem personalidade jurídica, o próprio "Novo Código Civil", no artigo 993, admite que a mesma possa ser registrada, mas preceitua que tal registro não irá conferir personalidade jurídica.

Conclui-se, assim, que a controvérsia subsistirá em pleno século XXI!

2.3. Inalienabilidade do nome empresarial

O nome empresarial é o elemento de identificação do empresário individual ou coletivo, que admite duas espécies, quais sejam : firma ou denominação.

Nosso ordenamento jurídico, de forma expressa, no artigo 34 da Lei nº 8.934/1994, acolheu o sistema da autenticidade ou veracidade das firmas, em que, para formar a firma individual ou coletiva, deve-se observar o nome da pessoa natural (empresário individual) ou dos sócios (sociedade empresária). Do contrário, o nome será inautêntico.

Já com relação à denominação, que identifica a sociedade anônima e pode identificar as sociedades por quotas de responsabilidade limitada (ou simplesmente limitada) e as sociedades em comandita por ações, não se adota o sistema da autenticidade. Em sendo assim, se for transferida uma sociedade, esta poderá continuar com a mesma denominação, não havendo óbice na alienação da denominação, até porque não há que se cogitar de autenticidade nem, muito menos de caráter personalíssimo.

No entanto, o "Novo Código Civil", nos arts. 1.115. ao 1.168, resolveu disciplinar o nome empresarial, sendo que no artigo 1.155, de forma clara e abrangente, preceitua que o "nome empresarial" pode ser firma ou denominação, sendo que no art. 1.164, de forma cristalina, preceitua que o "nome empresarial não pode ser objeto de alienação" (grifei).

Ora, deve-se compatibilizar tal dispositivo com o sistema da autenticidade das firmas, devendo-se indagar : Qual a razão de se vedar a alienação da denominação?

2.4. Pessoa Jurídica como sócia-administradora

É certo e sabido que a sociedade empresária, em regra, deve ser formada por duas ou mais pessoas, sendo a pluralidade um pressuposto de existência da sociedade (6), não havendo dúvidas de que o sócio pode ser pessoa natural ou jurídica, dependendo do tipo societário, até porque o art. 2º, § 3º, da Lei nº 6.404/1976, admite, expressamente, que a sociedade anônima possa ter por objeto a participação em outras sociedades.

Desta forma, não há controvérsia quanto à possibilidade de uma pessoa jurídica ser sócia de uma sociedade empresária (limitada e por ações). No entanto, no tocante à possibilidade de ser sócia-administradora (presentante), a questão não é tão simples.

No caso da sociedade em nome coletivo, esta é formada apenas por pessoas naturais (art. 1039. do NCC), o que demonstra que o legislador não quis que pessoa jurídica fosse sócia-administradora.

Em relação a sociedade em comandita simples, os sócios-administradores são os comanditados, necessariamente pessoas naturais (art. 1045. do NCC).

Ademais, estas sociedades, em caso de omissão, passam a ser disciplinadas pelas regras das sociedades simples (arts, 1040 e 1045, ambos do NCC). Em sendo assim, aplica-se-lhes, se for o caso, o disposto no artigo 977, inciso VI, do "Novo Código Civil", que exige que a administração seja feita por pessoas naturais.

Mas, e no caso da sociedade limitada?

Atualmente, a questão é controvertida, havendo entendimentos nos dois sentidos (7). Porém o "Novo Código Civil", ao invés de enfrentar a questão, acabou omitindo-se, pois no artigo 1.060, fez constar apenas que a sociedade limitada é administrada por uma ou mais pessoas sem esclarecer se natural e/ou jurídica.

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Cremos que o entendimento mais acertado é pela admissibilidade da gestão por sócio pessoa jurídica, mas por que o " Novo Código Civil" não colocou uma "pá de cal’ na questão?

2.5. Sociedade entre cônjuges

A mulher casada, com o advento da Lei nº 4.121/1962, passou a ser plenamente capaz, podendo exercer a atividade empresária como empresária individual sem a necessidade da autorização do marido. Após, o artigo 5º da Constituição da República, de forma categórica, também admitiu igualdade de direitos entre homens e mulheres. Portanto, a mulher casada pode ser empresária individual e pode também falir (art. 3º do Decreto-lei nº 7.661/1945).

Porém, quanto à possibilidade de ser constituída sociedade empresária entre cônjuges, o entendimento prevalente na doutrina (8) e na jurisprudência (9) é de que não há qualquer óbice para ocorrer tal constituição, não havendo qualquer violação ao regime matrimonial de bens, mesmo que este seja o da comunhão universal, até porque o art. 3º da Lei nº 4.121/1962 destaca bem os patrimônios dos cônjuges.

No entanto, o "Novo Código Civil", no artigo 977, de forma expressa, passará a admitir a constituição de sociedade apenas entre cônjuges, porém de forma condicionada, ou seja, desde que o regime matrimonial de bens não seja da comunhão universal de bens ou da separação obrigatória de bens.

Diante da redação do art. 3º da lei nº 4.121/1962, que destaca bem o patrimônio dos cônjuges mesmo que o regime matrimonial de bens seja o da comunhão universal, do ponto de vista jurídico, despicienda a subordinação à condição. Com a devida vênia, disse demais.

2.6. Teoria "Ultra Vires Societatis" :

Esta teoria surgiu na jurisprudência inglesa, no século XIX, segundo a qual, se o administrador, ao praticar atos de gestão, violar o objeto social (objeto-atividade e objeto-lucro) delimitado no ato constitutivo, este ato ultra vires societatis não poderá ser imputado à sociedade, sendo considerado, segundo alguns autores, inválido e, para outros autores, ineficaz.

Portanto, a sociedade fica isenta de responsabilidade perante terceiros, salvo se tiver se beneficiado com a prática do ato, quando então, passará a ter responsabilidade na medida do benefício auferido.

A aplicação desta teoria tem sido afastada por grande parte dos países, pois tem-se procurado prestigiar a proteção ao terceiro de boa-fé, adotando-se a teoria da aparência.

Entretanto, quanto à incidência desta teoria no nosso ordenamento jurídico, a questão suscita controvérsias, sendo certo que filio-me à posição que defende a não aplicação desta teoria, pois deve-se admitir a responsabilidade da sociedade, até porque esta possui direito regressivo com relação ao sócio que praticou indevidamente atos de gestão, sendo que este sócio, ao praticar o ato ultra vires societatis, o fez com aparência de licitude, não se podendo exigir que terceiros sempre venham consultar o ato constitutivo para saber se o ato está ou não dentro do objeto social delimitado, até porque o direito comercial e as relações comerciais são dinâmica por natureza.

No entanto, o "Novo Código Civil", consubstanciando idéias retrógradas, no artigo 1.015, parágrafo único, inciso III, quando trata da sociedade simples, acabou acolhendo a teoria.

2.7. Aval parcial e endosso

O aval é uma declaração cambiária sucessiva e eventual, em que uma pessoa natural ou jurídica apõe sua assinatura em um título de crédito, garantindo o cumprimento da obrigação cambiária.

Portanto, configura uma garantia cambiária fidejussória, sendo um ato de liberalidade.

Atualmente, o ordenamento jurídico admite que o avalista garanta totalmente a obrigação cambiária ou apenas uma parte dela. No entanto, o "Novo Código Civil’, no art. 897, parágrafo único, de forma expressa, veda o aval parcial.

Ora, se o aval é uma garantia e um ato de liberalidade, por que proibir o aval parcial? Sob a ótica do credor, é melhor possuir uma garantia por parte da obrigação ou não possuir garantia alguma? Será que a admissão do aval parcial obstaculariza a circulação do título? Certamente que não.

Uma outra "pisada na bola" por parte do legislador foi o fato de, no art. 914. do "Novo Código Civil’, tratar o endosso da mesma forma que a cessão ordinária de crédito (art. 296. do NCC), ou seja, o endossante, ao transferir a titularidade do direito de crédito e o respectivo título, não garante o cumprimento da obrigação caso o devedor direto não o faça, salvo se constar na cártula uma cláusula garantia. Ora, qual foi a finalidade desta alteração? Não seria melhor continuar como está, ou seja, o endossante é garantidor, salvo cláusula expressa em contrário?

Certamente há outras incongruências no "Novo Código Civil", porém o presente trabalho tem por escopo ventilar aos operadores do direito que, quando da análise da novel legislação, procurem fazê-la de forma crítica, a fim de contribuir para a elaboração de uma legislação mais moderna e adequada ao meio social em que vivemos.

Ademais, não se pode perder de vista que no segundo semestre aproximam-se as eleições presidenciais e, principalmente, para os Poderes Legislativos, o que faz com que devamos refletir, diante das inúmeras incongruências legislativas (Exemplo : Leis do Crimes Hediondos e a Lei de Tortura; Lei dos Juizados Especiais Criminais Federais e a esfera estadual; Lei de Tóxicos e diversas outras alterações pontuais) se os atuais integrantes do Congresso Nacional, apesar de legitimados, estão atingindo o anseio social.


Notas

1 Contra- Rubens Requião e Waldírio Bulgarelli.

2 Contra : Rubens Requião. A favor : Fábio Ulhoa Coelho.

3 STF : a favor.

4 Rubens Requião.

5 Tavares Borba.

6 Há exceções, como é o caso da sociedade anônima subsidiária integral- art. 251. da lei da SA

7 Contra : Nelson Abrão , pois as funções dea dministração são de caráter pessoal e imediato. A favor : Carlos Fulgêncio Cunha Peixoto, pois a incapacidade é matéria excepcional, não podendo ser interpretada de forma ampliada, sendo certo que a lei não restringe.

8 A favor : Rubens Requião. Contra : José Xavier Carvalho de Mendonça.

9 STF.

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Sobre o autor
Cláudio Calo Sousa

promotor de Justiça no Rio de Janeiro (RJ), professor de Direito Empresarial e de Direito Comercial

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Cláudio Calo. Algumas impropriedades do denominado "novo" Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. -182, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3660. Acesso em: 19 dez. 2024.

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