A controvertida questão dos efeitos das Súmulas de Jurisprudência quando canceladas

23/02/2015 às 17:17
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É equivocado o entendimento de que o simples cancelamento de Súmula de Jurisprudência representa a consolidação do entendimento contrário ao que dizia o verbete

A origem das Súmulas de jurisprudência no direito processual brasileiro está ligada ao já tradicional acúmulo de recursos pendentes de julgamento no Supremo Tribunal Federal, contra o qual a sociedade luta até os dias de hoje. A ideia, surgida na década de 60, era sumarizar as decisões reiteradas em enunciados e aplica-los a casos semelhantes, agilizando a prestação jurisdicional e garantindo, de certa forma, uniformidade aos entendimentos emanados do Tribunal.

De início foi necessário mudar o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal a fim de permitir a utilização deste novo instrumento, o que significou que até a existência de previsão legislativa específica, hoje representada pelo artigo 479 do Código de Processo Civil, apenas a mais alta Corte do País estava autorizada a editar Súmulas.

O instrumento é tão eficaz e elogiável que não tardou para que todos os Tribunais do País passassem a adotá-lo, sobretudo os Tribunais superiores, que tem função constitucional de zelar pela uniformização da jurisprudência. Está na essência destes Tribunais a adoção de métodos que permitam dar segurança jurídica à sociedade, garantindo certa previsibilidade e uniformidade para o caminhar dos entendimentos provenientes dos diversos Tribunais com jurisdição regional.

Não há dúvidas de que as Súmulas representam a expressão máxima da jurisprudência, uma das fontes do direito, retratando o firme entendimento de determinado Tribunal em certo momento.

De tão valioso o instrumento foi agregando ao longo do tempo temperos que o tornaram ainda mais eficazes. Embora o exemplo máximo seja a edição da Emenda Constitucional nº 45 de 2004, que introduziu o artigo 103-A na Constituição Federal, com a previsão do efeito vinculante à súmula de julgamentos oriundos do Supremo Tribunal Federal, várias iniciativas legislativas trouxeram impedimentos à interposição de recursos aos tribunais superiores quando se discutia tese contrária a entendimento sumulado, facilitando-se, por outro lado, o conhecimento e provimento de recursos que defendiam a aplicação da jurisprudência consolidada.

Na área trabalhista, por exemplo, a Lei 9.957/2000 restringiu a recorribilidade das causas sujeitas ao procedimento sumaríssimo às hipóteses em que a parte demonstrasse contrariedade a súmula de jurisprudência uniforme do TST ou violação direta à Constituição.

No processo civil. a Lei 12.322/2010 passou a autorizar o relator de recursos especiais e extraordinários a negar seguimento ao recurso em confronto com súmula ou jurisprudência dominante no tribunal ou dar provimento ao recurso, se o acórdão recorrido estiver em confronto com súmula ou jurisprudência dominante no tribunal.

Mas, se de um lado são muito claros os efeitos que as Súmulas de Jurisprudência podem gerar ao serem criadas, de outro, são obscuros, imprevisíveis e carentes de definição legislativa, doutrinária e jurisprudencial, as consequências do seu cancelamento.

É comum encontrarmos na fundamentação de decisões judiciais argumentos no sentido de que a partir do cancelamento de determinada Súmula de Jurisprudência pacificou-se o entendimento sobre a matéria, o que, com a devida vênia, é um grande equívoco.

O cancelamento de Súmula de Jurisprudência só pode ser entendido como o contrário, ou seja, falta de uniformização sobre determinada matéria, refletindo exatamente a mesma situação jurisprudencial pretérita à edição da Súmula. Há, na hipótese, a necessidade do Tribunal amadurecer as discussões sobre o tema até que esteja apto para que novo posicionamento venha a ser sumulado.

Tanto é assim que nas oportunidades em que o Tribunal já sentiu amadurecimento necessário da tese para firmar entendimento em certo sentido, o faz expressamente, alterando a redação original  da Súmula e não cancelando-a.

Dois exemplos ilustram bem a questão. Um de súmula cancelada que não significou consolidação de entendimento em sentido contrário, embora usualmente se diga isso - equivocadamente - em decisões judiciais. Outro de súmula revista, em que o Tribunal Superior do Trabalho mudou radicalmente a jurisprudência sobre o tema.

São os casos, respectivamente, das Súmulas 205 (cancelada) e 277 (com redação alterada), ambas do TST.

A Súmula 205 do TST foi cancelada pela Resolução nº 121 de 2003 e previa que “o responsável solidário, integrante do grupo econômico, que não participou da relação processual como reclamado e que, portanto, não consta no título executivo judicial como devedor, não pode ser sujeito passivo na execução.” Após o cancelamento, nenhuma súmula até hoje foi editada em seu lugar, sendo certo que esta omissão somente pode representar falta de consolidação sobre a matéria e necessidade de amadurecimento das discussões em torno da questão.

Veja que esta conclusão também é a que chega o Juiz e Professor Homero Batista Mateus da Silva:

“Diz-se, entretanto, que a alteração explica apenas parte do cancelamento da Súmula nº 205, porque não afirma o Tribunal Superior do Trabalho categoricamente que, doravante, os grupos possam ser executados sem qualquer critério e à revelia do que conste dos títulos executivos. O prestígio do contraditório continua a ser um primado constitucional a ser zelado pela autoridade judicial, de tal sorte que o cancelamento pode, em certas circunstâncias, não haver alterado em nada a situação do grupo econômico. Em se tratando de grupo econômico incontroverso, ou ao menos passível de demonstração mediante prova documental pré-constituída – cotejo de estatutos sociais, compartilhamento de instalações físicas, bens corpóreos e incorpóreos, comprovação escrita da direção ou administração conjunta, dentre outros aspectos -, prossegue-se a execução em face do integrante do grupo econômico que não figure no comando da coisa julgada. Não há mais o óbice da jurisprudência sumulada, nem expressa vedação legal. Aplica-se meramente o conceito de “redirecionamento da execução”, no dizer de Humberto Theodoro Júnior.
(...) Aproveitando revisão de verbetes levada a efeito na sessão do dia 28 de outubro de 2003, a Resolução nº 121 inseriu a Súmula 205 no rol dos cancelamentos, até que a matéria seja amadurecida de outra forma e novo posicionamento venha a ser sumulado.” (in Responsabilidade Patrimonial no Processo do Trabalho, Homero Batista Mateus da Silva, Editora Campus Jurídico, 2ª Tiragem,  págs. 100-102) original sem grifo

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Já para a incorporação de cláusulas de acordos e convenções coletivas, o Colendo Tribunal Superior do Trabalho sentiu-se apto para alterar radicalmente a jurisprudência consolidada e refletida na Súmula 277. Até a revisão de setembro de 2012 entendia-se que “as condições de trabalho alcançadas por força de sentença normativa, convenção ou acordos coletivos vigoram no prazo assinado, não integrando, de forma definitiva, os contratos individuais de trabalho.”

Após a revisão ocorrida em setembro de 2012, consolidou-se a seguinte redação para a referida Súmula, em sentido absolutamente contrário: “as cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho.”

Com esta mudança abrupta discute-se hoje até mesmo se seria cabível a modulação dos efeitos da aplicação de uma Súmula, ainda que o instituto esteja previsto apenas para as Súmulas Vinculantes, afinal de contas a sociedade convivia com uma realidade, alterada do dia para a noite e aplicável de imediato aos recursos e processos ainda não julgados.

A situação é tão peculiar, que admite-se agora discutir a modulação dos efeitos de uma Súmula quando o Tribunal estava maduro para alterar sua redação e mudar os rumos da jurisprudência, mas para os casos de cancelamento, cujo efeito é o vazio (ou quase) jurisprudencial consolidado, como é o caso da Súmula 205, nunca chegou-se a cogitar esta possibilidade.

Nesse cenário, forçoso concluir que há boa regulamentação sobre a criação das Súmulas de Jurisprudência, fonte valiosa de aplicação do direito incorporada ao processo por iniciativa do Supremo Tribunal Federal e aperfeiçoada ao longo dos anos por vários atos normativos e constitucionais, mas há, por outro lado, falta de discussão e de definição sobre os efeitos das Súmulas no tempo, especialmente para os casos em que há cancelamento de entendimento até então sumulado, sem adoção de qualquer outro em seu lugar.

Esta omissão, infelizmente, contribui para o equivocado entendimento de que o mero cancelamento de Súmulas representa consolidação do entendimento contrário ao nelas previsto, o que não condiz com a natureza do instituto aqui discutido.

 

 

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Sobre o autor
Alexandre Lauria Dutra

Advogado. Sócio do escritório Pipek, Penteado e Paes Manso Advogados. Membro da Comissão de Direito do Trabalho da OAB/SP. Especialista em direito do trabalho pela PUC-SP. Membro da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) e da Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo (AATSP)

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