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Do Código de Defesa do Consumidor:

aspectos relevantes ao direito marítimo e ao direito do seguro

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01/01/2003 às 00:00
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UMA QUESTÃO ESPECIALMENTE IMPORTANTE: AS SEGURADORAS DE CARGAS E O DIREITO DO CONSUMIDOR, A TRANSMISSÃO DESTE PELO FENÔMENO DA SUB-ROGAÇÃO.

            Para aqueles que trabalham na área, é cediço que um dos mais importantes personagens do Direito Marítimo é o segurador de carga.

            Há muito que o seguro de transporte marítimo reina majestático nos mundos do comércio exterior e do direito marítimo.

            Dificilmente, exportadores, importadores e consignatários de cargas, sobretudo estes últimos, operam transportes de cargas valiosas sem o seguro.

            Quase todos os transportes marítimos são cobertos por seguros específicos, tanto assim que as disputas arbitrais ou as lides forenses tem quase sempre como uma das partes litigantes uma sociedade seguradora, exatamente aquele que se obrigou contratualmente a segurar o transporte marítimo que restou, de alguma forma, inadimplido.

            Pagando a indenização securitária ao seu segurado, consignatário da carga, a Seguradora torna-se legalmente sub-rogada em todos os seus direitos e ações, tendo legitimidade para pleitear, em nome próprio, o devido ressarcimento (reembolso da indenização paga por ilícito contratual).

            Alguns entendem, entre estes, vozes poderosas como a do Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Ruy Rosado de Aguiar, que, em sede de transporte marítimo de cargas, seguradora sub-rogada não pode ser definida como seguradora. (7)

            Num primeiro momento, o argumento dos defensores de tal posicionamento parece ser sedutor, posto partir do pressuposto de que consumidor, como diz a lei, é o destinatário final de um produto ou de um serviço. Nesse sentido, realmente é impossível dizer que as seguradoras são consumidoras, pois não são elas as destinatárias finais ou mesmo beneficiárias diretas do transporte, modalidade de serviço em questão.

            Ocorre que, ao contrário do que entendem de tal forma, a sub-rogação legal que se dá com o pagamento da indenização abrange todos os direitos e ações, inclusive os de cepa consumerista. Logo, pelo fenômeno jurídico da sub-rogação legal (contratual), a seguradora é, sim, equiparada ao consumidor, pois deste "herdou" todos os direitos e ações.

            Por tal e tanto, a seguradora da carga pode e deve se valer da legislação consumerista, para todos os seus devidos efeitos.

            Amparamos nosso entendimento nos artigos 985, inciso III, 988 e 1.524, todos do Código Civil, os quais se permite transcrever (8):

            "Art. 985. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor:

            III - Do terceiro interessado, que paga a dívida pela qual era ou podia ser obrigado, no todo ou em parte."

            "Art, 988. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores."

            "Art. 1.524. O que ressarcir o dano causado por outrem, se este não for descendente seu, pode reaver, daquele por quem pagou, o que houver pago."

            Pois bem, como dissemos, uma vez inadimplida a obrigação pelo Transportador Marítimo, atendendo-se as normas e condições pactuadas nos referidos contratos, as Sociedades Seguradoras, que seguram os transportes das cargas, efetuam o pagamento das devidas indenizações, sub-rogando-se, por via de consequência, nos direitos e ações dos credores primitivos da obrigação (a rigor, consignatários de cargas), por força dos artigos 728 do Código Comercial e dos já destacados 985, inciso III e 1524, todos do Código Civil.

            Segundo o ensinamento de MARIA HELENA DINIZ:

            "O termo ‘sub-rogação’ advém do latim ‘subrogatio’, designando substituição de uma coisa por outra com os mesmos ônus e atributos, caso em que se tem sub-rogação real, ou substituição de uma pessoa por outra, que terá os mesmos direitos e ações daquela, hipótese em que se configura a sub-rogação pessoal de que trata o Código Civil no capítulo referente ao pagamento com sub-rogação."

            "Trata-se de uma exceção à regra de que o pagamento extingue a obrigação e libera o devedor, pois, se houver sub-rogação, quem satisfez a prestação passará a ter todos os direitos creditórios."

            (Curso de Direito Civil Brasileiro, 2º Vol., 14ª edição, São Paulo: Saraiva, p. 254).

            A sub-rogação confere àquele que arca com o pagamento por outrem, a titulariedade dos direitos e ações daquele crédito incorporado.

            Ora, se a lei diz todos os direitos e ações ("Art, 988. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores."), há de se entender que são todos os direitos mesmos, inclusive aqueles tidos como personalíssimos ou similares, o que não é exatamente o caso da legislação consumerista, principalmente se observada sob o prisma da teoria maximalista, que prevê ampla aplicação do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

            Com efeito, tratando-se de um verdadeiro braço armado da Constituição Federal, como já dissemos em oportunidade anterior, referido diploma legal configura um verdadeiro Código de cidadania, dada sua importância para o ordenamento jurídico pátrio.

            Sendo formado por direitos de terceira geração, altruísticos por excelência, o Código de Defesa do Consumidor, protetivo por natureza, constitui a mais poderosa ferramenta em prol do jurisdicionado nas chamadas relações de consumo.

            Mitigar a inteligência e a aplicação do Código é, por via reflexa, ofender princípios constitucionais, desmerecer os avanços políticos e sociais e, em última análise, prender-se ao literalismo do dogma jurídico, não raro perdido na vetusta separação do Direito em público e privado, ainda que ao arrepio da busca incessante pela Justiça.

            Destarte, empregar aplicação ampla ao Código é proteger a cidadania, é premiar o Direito e estabelecer o primado da Justiça. Daí o repúdio a toda e qualquer interpretação restritiva acerca da relação de consumo. Se, por um lado, é certo dizer que nem toda relação jurídico-negocial é tipicamente de consumo, não é menos certo afirmar que, a princípio, sobretudo mediante fundada dúvida, não se deve mitigar o estampamento do signo consumerista nas relações contratuais que envolvam, por exemplo, prestação de serviços.

            Donde se conclui que o segurador, porque se tornou sub-rogado nos direitos e ações do seu segurado (com o pagamento da indenização securitária), também é, por justa e legal equiparação, consumidor, haja vista a idéia, estampada na lei, que a sub-rogação opera a transferência de todos os direitos e ações do Segurado em prol do Segurador ("Art, 988. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores.").

            Num caso concreto, uma disputa judicial, envolvendo, de um lado, uma transportadora marítima e, de outro, uma seguradora de carga legalmente sub-rogada nos direitos e ações do seu segurado, primitivo credor da obrigação de transporte inadimplida, a relação entre ambas as partes é de sede consumerista porque o contrato de transporte é, sem dúvida, modalidade de prestação de serviços. O negócio jurídico, que constituiu o objeto da obrigação contratada é o item relevante para configurar a relação de consumo e não a sub-rogação propriamente dita.

            Ora, se a obrigação inadimplida tem traços de relação de consumo, não obstante as partes não tenham celebrado o contrato de transporte entre si, o reembolso das quantias pleiteadas tem sua origem no inadimplemento de um contrato de prestação de serviço, razão pela qual, aplica-se a legislação consumerista na presente, uma vez que não se pode desvirtuar a natureza do direito que deu origem a obrigação.

            Por outra banda, negar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor num caso concreto apenas porque uma das partes é uma Seguradora, é negar vigência a princípio básico do Direito das Obrigações que confere ao terceiro interessado (Seguradora), o direito de reembolsar-se do quanto despendido, a título de reembolso, sub-rogando-se nos direitos e ações do credor originário da obrigação.

            Importante lição nos traz CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA:

            "(... ) chama-se sub-rogação a transferência da qualidade creditória para aquele que solveu obrigação de outrem ou emprestou o necessário para isto. Na palavra mesma que exprime o conceito (do latim ‘sub rogare’, ‘sub rogatio’) está contida a idéia de substituição, ou seja, o fato de uma pessoa tomar o lugar de outra, assumindo a sua posição e a sua situação."

            "Opera pondo o credor sub-rogado na situação do primitivo. E, sendo este titular de direitos contra o devedor e contra seus fiadores e garantes, o sub-rogatário igualmente os tem."

            (Intituições de Direito Civil, Vol. II, 13ª edição. Rio de Janeiro: Forense, p. 143 e 146)

            Note-se que, de forma diferente do quanto delimitado na decisão ora combatida, a aplicabilidade da Lei nº 8.078/91, não está limitada ao cuprimento das obrigacões "intuito personae", como bem salientado pelo Ilustre Juiz Titular da 3ª Vara Cível da Comarca de Santos, Gustavo Pieroni Louzada, na sentença proferida nos autos do Processo 128/98, cujo o seguinte trecho se permite transcrever:

            "Inicialmente, cabe ressaltar que a alegada relação jurídica entre a seguradora da autora e a ré está incluída nas chamadas ‘relações de consumo’, de acordo com os artigos 2º e 3º, caput e paragrafo segundo, do Código de Defesa do Consumidor, pois se trata de prestação de serviço, onde a transportadora se obriga a levar a mercadoria incólume a seu destino, mediante remuneração, em proveito do dono dos bens, como destinatário final, pouco importando seja ele pessoa física ou jurídica, de grande ou de pequeno porte, não existindo na lei limitação a este respeito.

            Ainda nesse aspecto, noto que a autora sub-rogada nos direito da segurada, nos termos do artigo 1.458, c.c. artigo 985, inciso III, ambos do Código Civil, e Súmula 188 do Supremo Tribunal Federal, a ela se aplicam todas as normas, direitos, privilégios e garantias da relação primitiva, conforme disposto no artigo 988 do Código Civil.

            Assim, a responsabilidade da ré pela reparação de eventuais danos ocorridos independe de culpa, exigindo-se apenas o defeito na prestação do serviço, os danos, e o nexo causal entre eles, conforme disposto no artigo 14 do Código Defesa do Consumidor."

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            Nesta linha, não há como se deixar de reconhecer a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, principalmente no que toca à inversão do ônus da prova e à inoperância das cláusulas limitativas de responsabilidade, vez que típicas de um contrato de adesão, que impõe uma situação de supremacia de uma parte em relação à outra. Não há, ainda e principalmente, como não reconhecer que a seguradora, porque legalmente (contratualmente) sub-rogada nos direitos e ações do seu segurado (consumidor original, primitivo credor da obrigação inadimplida), tem legitimidade para invocar o Código de Defesa do Consumidor, na qualidade de consumidora por equiparação, em face da idéia de sub-rogação integral de direitos.

            Inobservar o império da legislação consumerista num dado caso concreto, não será somente tratar como iguais, desiguais, mas será ferir dispositivo de lei expresso, que garante ao sub-rogatário, os mesmos direitos e ações do credor primitivo da contrato de transporte, ou seja, o consignatário da carga.

            E, de imediato, como acima visto em linhas gerais, a incidência da legislação consumerista implicará o prazo prescricional de cinco anos, sobrepondo ao antigo e tradicional prazo de um anos, previsto por regras especificas e que já se encontra consagrado em termos de Direito Marítimo.

            Se é certo dizer, por expresso comando legal, que as seguradoras encontram-se arroladas pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor como sendo fornecedoras de serviços, não é menos certo afirmar que elas, enquanto legalmente sub-rogadas nos direitos e ações dos seus segurados, especialmente em sede de transporte marítimo de cargas inadimplido é, por equiparação, tida como CONSUMIDORA, em todos e para todos os efeitos legais, incluindo-se o aludido prazo prescricional quinquenal.

            Outras questões igualmente importantes merecerão comentários futuros.


Notas

            1. NUNES, Luiz Antonio Rizzatto, Comentários ao Códido de Proteção e Defesa do Consumidor, Direito Material, Saraiva, São Paulo: 2000, p. 3

            2. O serviço prestado pela ré é um serviço privado imantado de interesse público, tanto que se encontra subordinado à rigorosas regras de direito público, donde se fala em aplicação da teoria do munus público.

            3. Compendio de Direito Marítimo Brasileiro, São Paulo: editora Saraiva, 1938, p. 200

            4. Cláusula de Não Indenizar, Edição Forense: 1980, p. 112 e 128

            5. Tratado de Direito Privado, Tomo XLV, Ed. Borsoi: Rio de janeiro, 1972, § 4884, n.º 2, p. 143/4

            6. Em recente e infeliz decisão, o Pleno do STJ, reportando-se à liberdade do ato de contratar, houve por bem referendar a validade das cláusulas limitativas de responsabilidade, como se vê publicado no Diário da Justiça de segunda-feira, dia 30 de março de 1995, 6077, e Revista do STJ n.º 69, p. 353. Trata-se, a nosso ver, respeitosamente, de decisão absolutamente casuística, isolada e demasiadamente equivocada, seja pelos argumentos já expostos, seja pelo o que diz a melhor doutrina, mas, acima de tudo, pelo posicionamento do STF e pela legislação consumerista e seus princípios ideológicos e irresistíveis.

            7. STJ, 4T, DJ 05.03.2001, AG 354783 – S. Paulo (2000/0137759-0).

            8. O Novo Código Civil não ferirá a essência dos dispositivos ora elencados, sendo mantidas as regras ora dispostas.

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Sobre o autor
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CREMONEZE, Paulo Henrique. Do Código de Defesa do Consumidor:: aspectos relevantes ao direito marítimo e ao direito do seguro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3672. Acesso em: 27 abr. 2024.

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