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Tribunal do Júri:

vamos acabar com essa idéia!

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01/02/2003 às 00:00
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9. É possível suprimir o júri ?

Para que possamos alvitrar a supressão da instituição do júri uma vez que, acolhidos os argumentos expedidos, venhamos a concluir pela dissonância de seus resultados em relação as expectativas de justiça da sociedade e sua contrariedade aos princípios consagrados na processualística hodierna, mister se faz estabelecer, em premissa fundamental, qual sua natureza jurídica. Esta análise perpassa inexoravelmente por dois planos, um material, outro formal. Neste, se há de ver a natureza que da lei deflui. Naquele, se há de ver a substância do instituto, abstraídas influências exógenas.

Sob o ponto de vista formal, a topologia do instituto, inserto no art. 5º, não deixa dúvida acerca da atribuição ao Tribunal do Júri de natureza de direito subjetivo público, constitucional e, emende-se, indisponível. Já pela ótica material o mesmo não se pode dizer. Analisada a substância do inciso XXXVIII do art. 5º da CF um direito subjetivo não se pode ver sem forçar a lógica. Na caracterização de um direito subjetivo sobreleva-se sobretudo a circunstância de que, abstratamente considerado, o direito traz ao seu titular sempre uma vantagem correspondendo a outrem, sujeito individual, coletivo ou total, a correlata sujeição de respeito. Um exemplo esclarece. O estar vivo é um direito porque abstratamente o fato de estar vivo é uma vantagem. Pode ser que o estar vivo para alguém, concretamente considerada a existência, seja ao revés um martírio, tanto que temos suicidas. Atentando-se a esta indelével característica do direito subjetivo que é a de "in abstrato" sempre constituir a uma vantagem e, a contrario sensu, jamais um gravame, verificamos que o Tribunal do Júri até foi um direito quando representava a garantia de um julgamento em tese idôneo, eis que a alternativa era invariavelmente submeter-se a julgadores de duvidosa capacidade e incerta imparcialidade, que haveriam de aplicar um direito desumano através de um processo indiferente a garantias mínimas.

Hoje, no entanto, estruturado um processo que, bem ou mal, resguarda um mínimo de garantias, desde que permeado pelo princípio da ampla defesa e com decisões fundamentadas, sem o que não há ampla defesa, tão pouco ampla acusação que a isonomia requer, não se pode dizer que o júri seja direito subjetivo, posto que não mais se tem, considerado abstratamente o instituto, a certeza de uma vantagem. A norma do inciso XXXVIII é, materialmente, uma simples norma de competência e como tal devia figurar. Impende observar que, para fim de alteração constitucional, ao menos se levada a efeito pelo método ortodoxo previsto na própria Constituição, prevalecerá sempre a natureza formalmente atribuída.

As Constituições, quanto a sua modificabilidade, podem ser rígidas ou flexíveis. O poder constituinte, por seu turno, pode ser originário ou derivado. A modificação constitucional operada por poder derivado, que legitima-se por força do próprio texto constitucional, pode efetuar-se por revisão ou reforma pontual, através de emendas. Dada a importância do texto constitucional, o processo de emenda tem procedimento legislativo especial e possui limitações quanto ao conteúdo. Segundo o art. 60, § 4º, da CF/88 é defesa emenda que altere os direitos e garantias o que via de conseqüência inviabiliza a supressão da instituição do júri, direito (?) que é. Estaria, a priori, enquanto vigente o atual texto, inviabilizada a possibilidade de expungir-se o júri.

Por outro lado, a instituição do júri, por todos os motivos apontados, de guardiã passou a carrasca da liberdade e da justiça e não mais se justifica no processo moderno. Além disso, a natureza das normas constitucionais, que lhes garante um caráter de maior generalidade, amplitude e cogência, não lhes subtrai a hermenêutica, não lhes torna indenes a interpretação teleológica, conforme dizia o festejado Carlos Maximiliano. Também elas têm sua legitimação interrelacionada a sintonia às expectativas sociais e limitam-se por um senso finalístico.

Está gerado o impasse. Qual valor há de prevalecer: a imutabilidade constitucional no que diz respeito às "cláusulas pétreas", cuja ruptura representa uma brecha perigosa, ou o direito a uma "ordem jurídica justa", mediante um julgamento jungido a garantias mínimas, como a fundamentação decisória e um julgador preparado? Acreditamos que o Júri não mais se justifica; muito pelo contrário é contraproducente confrontando valores maiores que pertencem a um direito natural, como a ampla defesa, a liberdade e a justiça. O fato deve prevalecer sobre o aspecto formal, pois à norma cabe cumprir uma função efetiva sem o que ela não se justifica. O Júri não cumpre mais.

Feita a opção, admitindo-se a supressão do Júri, resta instrumentaliza-la juridicamente.


10. Instrumentalização jurídica da supressão do Júri.

Conforme se viu no tópico anterior, senão sob o agouro de uma grave violência ao texto constitucional, mais especificamente ao art. 60, § 4º, da CF/88, não se pode conceber uma alteração, mormente uma supressão, por poder derivado. Haveria alguma solução? Cremos que sim e vamos encontra-la no parágrafo único do art.1º da mesma CF. Vejamos.

A Constituição nada mais é, guardadas as devidas proporções e peculiaridades, que um Codex. Apresenta a marcante característica de ser, na visão Kelseniana, a "norma fundamental", o Estatuto primacial, gênese do ordenamento jurídico. Por conseguinte, ao contrário da legislação infraconstitucional, que encontra nela natural precedência ou recepção, mas de qualquer forma sujeição, não está a Constituição jungida a qualquer normatização jurídica anterior, que inexiste em relação a ela, ao menos na qualidade de condicionante obrigatória. No entanto, como conjunto de normas que é, a Constituição é um ente abstrato e carece de uma ordem fundante anterior, que só pode ser jurídica à luz de um direito natural, e que materializa em um "poder de fato" que a legitima.

Este "poder fundante" pode tomar as mais diversas formas e matizes. Outrora já foi a força ou a religião, ou ainda uma ideologia. Mas com a moderna concepção do Estado Democrático de Direito, herança do liberalismo, o poder fundante toma a forma da "soberania popular" que, a priori, não encontra limite obrigatório algum, tanto mais legal, que lhe anteceda e fundamente. Daí o postulado do parágrafo único do artigo 1º da CF/88, retrocitado.

Ora, se a soberania popular pode o mais, que é renegar uma ordem constitucional inteira substituindo-a, como se fez na CF/88, pode o menos, que é alterar um dispositivo sem que se lhe possa opor o art. 60 § 4º da CF. Um movimento dessa espécie opera espontaneamente no que diz respeito à iniciativa, que prescinde de qualquer previsão legal mesmo porque à Constituição fenece poder para comandar um poder que lhe é antecedente e superior.

Ordinariamente a manifestação da soberania popular como poder originário não toma uma forma pré-concebida legalmente, manifestando-se com a feição de uma pressão contínua e crescente. Nada obstaria, no entanto, que se valesse o povo de um plebiscito, por exemplo, acerca do Júri para que, dentro dos ditames da igualdade, emergisse a vontade da maioria e se fosse o caso se suprimisse ou alterasse o texto do inciso XXXVIII do art. 5º. Não se fere a Constituição pois o poder fundante dela tem plena disposição.


11. Conclusões.

Em um plano ôntico – ontológico, como dizem Zaffaroni e Pierangelli, o homem é um ser absolutamente livre para fazer suas escolhas, observadas certas condições, ao menos no que diz respeito a um sistema normativo penal. Não obstante, remanescem fatores de condicionamento como a razão, o instinto, a moral e a ética que nos conduzem a eleger valores e objetivos de forma mais ou menos delimitável. Pela racionalidade que nos é inerente, reforçada pelo instinto de sobrevivência, evoluímos naturalmente e por isso nossas escolhas e valores são dinâmicos. Por outro lado, a vida em sociedade, que é uma escolha que o instinto e a razão se nos impõem, implica escolhas e valores comuns.

Estes valores e escolhas, pelo seu caráter dinâmico alteram-se no tempo e no espaço e são assegurados pela superestrutura supra – individual do Estado através do Direito. No atual estágio de desenvolvimento de nossa sociedade, como sói acontecer em quase todo hemisfério ocidental a organização sócio – político – jurídica prestigia como um dos valores – fins máximos a segurança jurídica, reconhecendo-a como conditio sine qua nom da realização individual e atribuindo ao Estado e ao Direito, sem que se possa na prática separá-los absolutamente, a missão de velar para que as pautas de conduta individual se adstrinjam aos valores eleitos.

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O Direito Penal, mais do que qualquer outro ramo da ciência jurídica, dada a especial gravidade das conseqüências de sua aplicação e da sua importância enquanto mecanismo garantidor da vida em sociedade, necessita ter como característica a segurança, sem o que perde legitimidade e passa a ser mecanismo de opressão e mal maior do que o que visa combater.

Igualmente o processo penal, veículo para caracterização do Direito Penal deve marcar-se por procedimentos e princípios que assegurem, afinal, segurança jurídica. E na busca dessa segurança, que é relativa, mas é o que melhor se consegue, tanto o Direito Penal como o Processo Penal têm em sua estruturação dogmática uma série de princípios que, ao resguardar o indivíduo, contribuem para a segurança jurídica, como sejam o "nullum crimen sine previae lege", a ampla defesa, o devido processo legal, a prescrição, a limitação das penas etc... que devem transcender o plano meramente formal, para tornarem-se realidades palpáveis.

Neste contexto, o Júri, que outrora era de fato um direito e um verdadeiro tutor da justiça, na medida em que obstava julgamentos suspeitos e eivados e irregularidades, haja vista a carga política das decisões, hoje, diante da evolução da ciência processual e da consolidação dos direitos individuais no âmbito do processo, em especial no modelo convencional de julgamento togado, não mais se justifica, visto que passou a ensejar aquilo que combatia. Com efeito, na sociedade de comunicação de massa em que vivemos, com a complexidade do julgamento que a evolução jurídica nos descortinou, com a necessidade imperiosa de fundamentação das decisões para que haja ampla defesa já que o "nemo inauditus damnari potest" não se restringe ao campo formal, o júri tornou-se uma instituição falaciosa e ultrapassada, sementeira de nulidades e berço de injustiças.

Inserto que foi o Tribunal do Júri dentre os direitos e garantias individuais, posição topológica indevida para uma norma cujo caráter substancial é nítido de um preceito de competência, e onde deveria figurar o inciso IX do art. 93, insuscetível se torna suprimir-lhe pelos caminhos ordinários, ortodoxos da reforma constitucional. Mas a soberania popular, fonte do poder supremo, se pode o mais, que é constituir um poder constituinte originário capaz de dar vida a toda uma nova ordem constitucional, poderá o menos, mesmo porque a soberania popular é pré-constitucional e ilimitada em suas escolhas, ao menos no que diz respeito a limites legais.

Aqui entra o papel do jurista cuja perícia no Direito lhe permite ter elementos técnicos para enxergar que uma instituição como o júri é uma burla que dá a falsa sensação à sociedade de eqüidade e justiça, mas que mostra mais danos que benefícios em relação ao julgamento togado que não é imune a falhas e injustiças, mas ao menos é a eles menos suscetível. Na minha modesta condição de acadêmico, convido a todos a meditarem sobre ser o Júri modelo de justiça que queremos e a juntarmo-nos em uma "guerra santa" contra uma instituição que já cumpriu seu papel, mas que hoje deve ser proscrita para que inocentes não padeçam da suprema degradação da pena e para que criminosos não se furtem ilesos à "longa manus" da justiça, que deve sempre prevalecer concretamente.


12. Referências Bibliográficas.

- Amaral Santos, Moacyr, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 1997, Saraiva.

- Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional, Malheiros, 8º ed. 1996

- Dinamarco, Cândido Rangel, A Instrumentalidade do Processo, Malheiros, 6ª ed., 1998.

- Jesus, Damásio E., Direito Penal, Saraiva, 17 ed., 1995, V. 1.

- Mirabete, Julio Fabbrini, Manual de Direito Penal, Atlas, 11 ed., 1996.

- Processo Penal, Atlas, 1999.

- Silva, José Afonso, Curso de Direito Constitucional Positivo,18 ed. 2000.

- Tourinho Filho, Fernando da Costa, Processo Penal, Saraiva, 1994, V. 4.

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Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Tribunal do Júri:: vamos acabar com essa idéia!. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3690. Acesso em: 16 abr. 2024.

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