O caos: o estado de direito e a desobediência civil

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20/03/2015 às 20:57
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O presente artigo trata da consciência social despertada entre os diversos segmentos da população brasileira para reivindicação de seus direitos, mediante os atos de desobediência civil ocorridos em junho de 2013. Tais direitos foram conquistados através

RESUMO: O presente artigo trata da consciência social despertada entre os diversos segmentos da população brasileira para reivindicação de seus direitos, mediante os atos de desobediência civil ocorridos em junho de 2013. Tais direitos foram conquistados através dos séculos, em lutas travadas por várias pessoas, em atos de desagravo, devido a ações praticadas pelo Estado. O descontentamento popular foi veementemente exteriorizado por meio destas manifestações. Diante deste fato, constata-se que a desobediência civil, para sua maior eficácia, deve ser exercida em consonância a vários parâmetros, evitando desaguar em vandalismo ou atos criminosos. O cidadão tem o direito de se manifestar quando seus direitos fundamentais sejam subtraídos, implicando com isto a desobediência civil, mas sempre agindo em sintonia com o Estado de Direito.

PALAVRAS-CHAVES: Desobediência civil; Estado de Direito; direitos fundamentais; cidadão.

ABSTRACT: This article deals with the social consciousness raised among the various segments of the population to claim their rights, through acts of civil disobedience occurred in June 2013. These rights were won through the centuries, in struggles for several people, in acts of reparation due to actions taken by the State. Popular discontent was strongly externalized through these events. Given this fact, it appears that civil disobedience to its greater effectiveness, must be exercised in accordance to various parameters, avoiding pour in vandalism or criminal acts. People have the right to express themselves when their fundamental rights are taken away, teasing it civil disobedience, but always acting in line with the rule of law.

KEYWORDS: Civil Disobedience; Rule of law; fundamental rights; citizen.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Preâmbulo; 2 Estado de Direito; 3 Desobediência civil; 4  A resistência; 5 Características específicas da desobediência civil; 6 A desobediência civil e as suas justificativas; Considerações finais; Referências.


INTRODUÇÃO

O presente artigo relata as circunstâncias em que ocorre o caos institucional na sociedade brasileira contemporânea, se observando a cada dia na mídia uma reação social desproporcional por parte dos agentes do Estado que levam ao agravamento maior da crise. Esclareça-se que não é objeto deste trabalho avaliar se ação foi certa ou errada, ou se houve interpretação equivocada do agente público ou do próprio cidadão durante as manifestações. Entretanto, constata-se que não pode tal reação ser considerada plenamente como um ato de desobediência civil, caso haja atos de vandalismo ou atos impulsionados por marginais que desejam conturbar o ambiente social, colocando o cidadão em oposição ao Estado de Direito.

O primeiro aspecto a ser abordado refere-se à desobediência civil vivenciada a partir de junho de 2013, em função do aumento de passagens de ônibus. O tópico seguinte aborda o Estado de Direito, sua origem, formação e o legado trazido aos dias atuais. Adiante, abordamos a desobediência civil, sua origem e formação e os valores cultivados no ambiente social pelos vários filósofos que a interpretaram no decorrer do tempo.Já o quarto tópico trata da resistência como uma forma de desobediência civil e como ela deve fluir em sociedade.No quinto tópico são traçadas as características da desobediência civil, objetivando estabelecer um parâmetro para que o ato possa ser assim considerado. O último tópico aborda a desobediência civil dentro deste parâmetro e suas justificativas.

Durante as considerações finais, é comentado o direito do cidadão em se manifestar mediante a desobediência civil, desde que tal prática não extrapole determinados limites que a leve ao vandalismo, provocando sua intolerância pelo Estado e a repressão dentro da lei.


1 PREÂMBULO

O mês de junho de 2013 foi sacudido por uma série de protestos de iniciativa popular nas grandes cidades brasileiras, coma finalidade de reverter o aumento das passagens de ônibus. Na verdade, esta disposição inicial se transformou na gota d’água que se refletiu numa tempestade de indignação para grande parcela da sociedade insuflada por inúmeras questões socioeconômicas e políticas que a vinham instigando.

As manifestações populares são legítimas quando existe uma reivindicação justa por parte da população, mesmo que resultem em tumulto ou quebra-quebra? Esta indagação permeou o imaginário coletivo por algum tempo, em virtude de a desobediência civil começar a refletir ações mais lógicas. O desgoverno praticado em muitos estados tentou transferir para o povo o ônus da falta de competência administrativa dos governantes, mediante o aumento dos impostos, taxas e tributos, bem como o preço dos transportes, dando origem às referidas manifestações.

A partir destas manifestações, cuja origem seria supostamente o aumento do preço das passagens em vinte centavos, proliferaram várias outras em diversas cidades do País, com outras fundamentações, evidenciando a insatisfação popular. A desobediência civil instalou-se em várias partes do País, dando oportunidade a que grupos aleatórios se infiltrassem nas manifestações e praticassem ilícitos penais e civis, cujas consequências perduram até os dias de hoje. Com isso, ocorreu forte repressão policial, radicalizando a violência de ambas as partes.

As ações violentas praticadas por populares ou marginais infiltrados, protestando por práticas violentas por parte de agentes do Estado são válidas ou extrapolam o limite do legal? Após as manifestações de junho de 2013, foram contabilizados danos severos ao patrimônio público e privado, com a queima de ônibus e carros particulares, depredação de prédios públicos e estabelecimentos bancários. Tal reação foi devida a vários fatores: falta de luz em uma determinada região[2]; o fato de invasores de terreno alheio estarem prestes a serem desalojados[3]; morte de alguém por ação policial[4]. Estes procedimentos não podem ser considerados um ato de desobediência civil, mas sim de vandalismo, despertando a ação do Estado no sentido de reprimi-los.

Maria Helena Diniz define a desobediência civil como um “exercício de direito de resistência passiva por parte de certo grupo social resultante do descumprimento de lei ou de ato governamental contrário à ordem jurídica”[5].

Este posicionamento não vem servindo de motivação para as sociedades contemporâneas, pois desde as épocas remotas temos atos de desobediência civil registrados através dos tempos. Em 195 a.C., as mulheres de Roma invadiram o fórum, reivindicando que fosse derrogada a Lex Oppia[6], cuja aplicação lhes tolhia alguns direitos.Posteriormente, temos o manifesto de Tibério e Caio Graco, então tribunos da plebe, que implementaram a reforma agrária em Roma em favor dos pobres, resultando na morte de ambos. Também há, em 42 a.C., a atuação de Hortênsia contra a exigência de tributos a serem pagos pelas mulheres mais ricas para custear despesas militares[7].


2 ESTADO DE DIREITO

O Estado de Direito surgiu como expressão jurídica da democracia liberal. Como leciona José Afonso da Silva Carl Schimitt, a expressão “Estado de Direito” apresenta vários significados distintos, prevendo existir um Estado de Direito feudal, outro estamental, outro burguês, outro nacional, outro social etc. Esta variedade de significados provoca uma interpretação ambígua, em vez de outra bem mais qualificativa que lhe indique um conteúdo material. Em tal caso, a tendência é adotar-se uma concepção formal do Estado de Direito ou um Estado de Justiça, tomando a justiça como um conceito absoluto, abstrato, idealista, espiritualista, que, no fundo, encontra sua matriz no conceito hegeliano do Estado Ético, que fundamentou a concepção do Estado fascista, conforme ensina José Afonso da Silva:

[...] totalitário e ditatorial em que os direitos e liberdades humanas ficam praticamente anuladas e totalmente submetidas ao arbítrio de um poder político onipotente e incontrolado, no qual toda participação popular é sistematicamente negada em benefício da minoria que controla o poder político econômico[8].

Tal Estado de Justiça nada tem a ver com o Estado submetido ao Poder Judiciário, que é um elemento do Estado do Direito.Para Kelsen a concepção jurídica também contribuiu para deformar o conceito de Estado de Direito, pois para ele os conceitos de Estado e Direito são idênticos. Percebe-se que o autor confunde Estado e ordem jurídica; segundo ele, todo Estado há de ser Estado de Direito[9].

Salienta Ingo Wolfgang Sarlet que a contribuição francesa foi decisiva para o processo de constitucionalização e reconhecimento de direitos e liberdades fundamentais nas constituições do século XIX que, na lição de Martin Kriele, traduz a relevância das declarações de 1789 e dos direitos e liberdades, consagrados pelo constitucionalismo americano para os direitos fundamentais, quando a França legou ao mundo os direitos humanos[10].

Observe-se a circunstância de que a evolução no campo da positivação dos direitos fundamentais, culminando com a afirmação do Estado de Direito, na sua concepção liberal-burguesa e, por sua vez, determinante para a concepção clássica dos direitos fundamentais que caracteriza a assim denominada primeira dimensão destes direitos[11].

Os direitos fundamentais de primeira dimensão são apresentados como portadores de cunho “negativo”, uma vez que dirigidos à abstenção, e não a uma conduta positiva por parte dos poderes públicos, sendo, neste sentido, “direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”. São complementados posteriormente pelos direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei. Também devem-se incluir aí as denominadas liberdades de expressão coletiva (liberdade de expressão, de imprensa, de manifestação, de reunião, de associação, entre outras)e pelos direitos de participação política, quais sejam: direito de voto e a capacidade eleitoral passiva. Por tais motivos cuidam-se aqui dos direitos civis e políticos[12].


3 A DESOBEDIÊNCIA CIVIL

Para uma visualização do significado de desobediência civil, temos de entender preliminarmente o que é compulsório a cada pessoa no ordenamento jurídico da sociedade onde vive, pois este é o dever de obediência às leis, denominado, também, de obrigação política. Esta observância da obrigação política por todos leva a considerar que o poder constituído seja legítimo, pois é obedecido por todos, independente de seu conteúdo. Um poder que pretenda ser legítimo encoraja a obediência e desestimula a desobediência, pois a obediência às leis é uma obrigação, enquanto a desobediência conduz a um ato ilícito, sendo sujeita à repressão de várias maneiras.

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A desobediência civil enquadra-se em uma forma particular de desobediência, à medida que é promovida de forma a induzir publicamente a injustiça de uma lei predeterminada e com o fim mediato de ocorrera mudança da mesma por parte do legislador. Salientam Bobbio; Matteucci; Pasquino que:

Como tal é acompanhada por parte de quem a cumpre de justificativas com a pretensão de que seja considerada não apenas como lícita, mas como obrigatória e seja tolerada pelas autoridades públicas diferentemente de quaisquer outras transgressões. Enquanto a desobediência comum é um ato que desintegra o ordenamento e deve ser impedida ou eliminada, a fim de que o ordenamento seja reintegrado em seu estado original, a desobediência civil é um ato que tem em mira, em última instância, mudar o ordenamento, sendo, no final das contas, mais um ato inovador do que destruidor[13].

O idealizador do termo desobediência civil foi Henry David Thoreau, quando protestou contra as injustiças das leis e dos governos, referindo-se à guerra dos Estados Unidos contra o México, que tinha como objetivo a expansão territorial. O autor inicia seu ensaio com estas palavras: “Eu aceito de bom grado o mote: O melhor governo é o que de fato não governa”. Ele se recusou a pagar taxas ao governo de seu país, que as empregava numa guerra que Thoreau julgava ser injusta[14].Sabedor de que seu ato o levaria à prisão, Thoreau declarou incontinenti:“Diante de um governo que prende qualquer homem injustamente,o único lugar digno para um homem justo é a prisão”, materializando todo o seu pensamento no ensaio Civil disodedience de 1849[15].

Thoreau também se posicionava contra a escravidão e manifestou-se claramente sobre este tema, quando afirma que o indivíduo deve reprovar o caráter e as atitudes de um governo, retirando-lhe sua lealdade e apoio, tomando medidas concretas e imediatas para sua realização, conforme pode ser observado na seguinte afirmação:

Insisto em afirmar que todos os que se intitulam abolicionistas devem imediatamente e efetivamente retirar seu apoio ao governo do Estado de Massachusetts, e não ficar esperando até que consigam formar a mais compacta das maiorias para só então alcançar o sofrido direito de vencer por intermédio dela[16].           

Para Hannah Arendt, a desobediência civil não é um posicionamento individualista, como abordado por Thoreau, não repousando na consciência individual, pois estas são subjetivas e respondem a um auto interesse, e a ação política não se debruça no “eu”, mas fixa-se ao “mundo”, ou seja, liga-se no interesse público. Logo jamais poderá ser uma ação individual, mas grupal, direcionada pela opinião de todos, ainda que seja pela maioria. A consciência individual é o fio condutor que leva ao grupo, sendo essa união que proporciona credibilidade e é o nascedouro da desobediência civil[17].

Já para John Bordley Rawls, a desobediência civil deve pautar-se no pressuposto da análise do senso de justiça da sociedade, visualizando a violação do conceito dominante da justiça e partindo, em seguida, para observar o grau de razoabilidade da doutrina aceita e dos meios disponíveis para mudá-la, pois, conforme salientado por ele, “alguém pode conseguir viver com uma variedade de concepções institucionistas ecléticas, e com posições utilitaristas que não sejam interpretadas de modo excessivamente rigoroso” [18]. Para este autor, a teoria da desobediência civil reconhece como legítima a autoridade democrática, contudo, ela formula fundamentos com base nos quais se pode discordar da autoridade legítima, sem deixar de expressar fidelidade às leis e aos princípios políticos fundamentais de um regime democrático, a firmando que “a teoria da desobediência civil suplementa a concepção puramente legal da democracia constitucional”[19].

A desobediência civil tem um caráter demonstrativo e, por seu fim, inovador,cujo ato tende a ganhar o máximo de publicidade. Este caráter publicitário serve para distingui-la nitidamente da desobediência comum: enquanto o desobediente civil se expõe ao público e só com esta exposição pode esperar alcançar seus objetivos, o transgressor comum deve realizar sua ação no máximo segredo, se desejar alcançar suas metas[20].

Já para Jürgen Habermas a desobediência civil é a pedra de toque da democracia, o elo mais evidente dos indicadores da maturidade das políticas democráticas. Constata-se nos estudos de Habermas que:

Mesmo assumindo a perspectiva de que o ordenamento jurídico emana das diretrizes dos discursos públicos e da vontade democrática dos cidadãos, institucionalizadas juridicamente, observando a correição parcial, há sempre a possibilidade de que a normatividade seja injusta, abrindo-se assim para dois caminhos: o primeiro, a permanecer injusta, passa a se constituir arbítrio; o segundo, a se tornar arbítrio, surge a falibilidade e, com isso, a presunção de que seja revogada ou revista[21].

Pelo acima referenciado fica delineado que Habermas se posicionava a favor de sanar injustiça presente na sociedade e, ante ao aludido, torna-se possível afirmar que um instrumento para sanar essa injustiça é a desobediência civil, sendo este um instrumento legítimo para defender e sedimentar o Estado Democrático de Direito, visto que funciona como um meio de arguir, exercido pela sociedade, sobre os atos e decisões procedidas pelo poder público.

Salientam Bobbio; Matteucci; Pasquino que as circunstâncias defendidas pelos promotores da desobediência civil a favorecer mais a obrigação da desobediência do que as da obediência são substancialmente três: a) o caso da lei injusta; b) o caso da lei ilegítima (isto é, emanada de quem não tem o direito de legislar): c) o caso da lei inválida (ou inconstitucional) [22]. Complementam os autores que, segundo os promotores da desobediência civil, em todos estes casos não existe lei em seu sentido pleno: no primeiro caso não o é substancialmente; no segundo e no terceiro não é formalmente. Seu principal argumento reside em que o dever (moral) de obedecer às leis existe à medida que é respeitado pelo legislador o dever de produzir leis justas (conforme aos princípios de direito natural e racional, aos princípios de direito natural ou racional, aos princípios gerais de direito ou como se leis queiram chamar) e constitucionais (ou seja, conformes aos princípios básicos e às regras formais previstas pela Constituição). Entre cidadão e legislador haveria uma relação de reciprocidade: se é verdade que o legislador tem direito à obediência, também é verdade que o cidadão tem o direito a ser governado com sabedoria e com leis estabelecidas[23].

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Sobre o autor
David Augusto Fernandes

Mestre e Doutor em Direito. Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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