O caos: o estado de direito e a desobediência civil

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20/03/2015 às 20:57
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4 A RESISTÊNCIA

Constata-se que o direito de resistência, gênero da espécie desobediência civil se apresenta no decorrer dos séculos fomentando a comunicação entre pensamentos diversos. Verifica-se na Grécia antiga o posicionamento de Sócrates de que a obediência às leis era um dever de todos, devendo o bom cidadão obediência às leis do Estado sempre, e de todo o modo, como um dever, mesmo que essa lei fosse má. Afirmando que as leis são irresistíveis e, desta forma, não admitem o direito de resistência[24].Neste mesmo período é a semente do direito de resistência, com a formação do denominado tribunado do povo, que surgiu sob a ameaça de uma revolução procedida pela classe aristocrática grega.

Como já verificado, foram exemplos de resistência, no mundo romano, a derrogação da Lex Oppia; os irmãos Graco, na sua reforma agrária, e Hortênsia, em 42 a.C., contra a exigência de tributos a serem pagos pelas mulheres mais ricas para custear despesas militares.

Fato proeminente de resistência ocorreu em 11 de junho de 1215, com a edição da Carta Magna do Rei João Sem Terra, com a determinação do rompimento do vínculo de obediência e submissão dos vassalos em caso de abuso de poder, materializando-se, pela primeira vez, os direitos e garantias do homem. Tal formalização foi a semente do chamado princípio da anterioridade da lei penal e o da legalidade existentes em nossa Constituição e em vários ordenamentos jurídicos ao redor mundo que, porém, se corporificou somente no século XVIII.

O direito de resistência veio se consolidar no plano jurídico político somente na Idade Moderna, contribuindo para os estudos dos filósofos desse período, conforme salienta José Carlos Buzanello:

A perspectiva histórico-universal moderna do “direito de resistência”, como veremos, contribuiu para elucidar o conceito e as respectivas teorias da resistência. As primeiras expressões, como tiranicídio (o legítimo direito de matar o tirano) ou resistência à opressão, não formulam, na plenitude, um conceito histórico-universal do direito de resistência moderno porque, em parte, são exatas e, em parte, são limitadas quanto à ideia que pretendem transmitir acerca da realidade constitucional. Mas esses conceitos de resistência têm em comum a estratégia de confrontar a atitude injusta do tirano e também de limitar a extensão do Estado contra o indivíduo. As distintas teorias da resistência moderna permitem individualizar as respectivas modalidades e exercícios, diferentemente da concepção pré-moderna (antiga e medieval), que não era passível de ser agrupada por unidades teóricas devido à ausência da clarividência dos direitos individuais e dos direitos de Estado. O problema do direito de resistência reflete uma determinação de diferentes limites do direito do Estado e da sociedade. Da mesma forma, a resistência moderna transmuda-se de fato social para fato jurídico (teoria da gradação da positividade jurídica), como também desloca o problema, antes do social, para o âmbito jurídico[25].

No decorrer dos séculos seguintes constata-se que a questão da constitucionalidade somente foi desenvolvida de forma vigorosa na França, fruto da influência das teorias de Locke e Rousseau, filósofos contratualistas, os quais foram fonte de inspiração para os idealizadores da Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão, quando se constituiu de forma inédita o direito de resistência como garantia dos cidadãos.

No século XIX a expressão desobediência civil entrou no uso corrente através dos escritores políticos anglo-saxões, com Thoreau sendo seu pioneiro, através do ensaio mencionado anteriormente.

Em sentido próprio, a desobediência civil é apenas uma das situações em que a violação da lei é considerada como eticamente justificada por quem a cumpre ou dela faz propaganda. Trata-se de situações habitualmente compreendidas pela tradição dominante da filosofia política sob a categoria do direito à resistência. Alexandre Passerin d’Entrèves distinguiu oito modos diferentes de o cidadão se comportar diante da lei: 1) obediência de consentimento; 2) obséquio formal; 3) evasão oculta; 4) obediência passiva; 5) objeção de consciência; 6)desobediência civil; 7) resistência passiva; 8) resistência ativa. As formas tradicionais de resistência começaram na resistência passiva e terminam na resistência ativa.A desobediência civil, em seu significado restrito, é uma forma intermediária[26].

Bobbio; Matteucci; Pasquino continuam ensinando que, na esteira de Rawls, d’Entrèves define a desobediência civil como uma ação ilegal, coletiva, pública e não violenta, que se atém a princípios éticos superiores para obter uma mudança nas leis. Desta forma, podemos distinguir as situações que entram na categoria geral do direito de resistência, baseados em diversos critérios calcados no tipo de desobediência em ato:

a)      omissiva ou comissiva,consistindo em não fazer o que é mandado (o serviço militar, por exemplo) ou em fazer aquilo que é proibido (é o caso de negro que se senta num lugar público interditado a pessoas de cor, como ocorria em alguns estados do Sul dos Estados Unidos, no período da década de 1950)[27];

b)      individual ou coletiva, realizada por indivíduo isolado (é típico o caso do objetor de consciência, ou seja, pessoas que seguem princípios religiosos, morais ou éticos de sua consciência, princípios estes que são incompatíveis com o serviço militar ou com as Forças Armadas como uma organização combatente, que geralmente age só e em decorrência de um ditame da própria consciência individual) ou por um grupo cujos membros compartilham os mesmos ideais (as campanhas de Gandhi[28] pela liberdade da Índia do domínio britânico são exemplo típico disso)[29];

c)      clandestina ou pública, preparada e realizada em segredo, como acontece e não pode deixar de acontecer no atentado anárquico baseado na surpresa, ou então anunciada antes da execução, como acontece habitualmente com a ocupação das fábricas, de casas, de escolas, feita com a finalidade de obter a revogação de normas repressivas ou impeditivas consideradas discriminatórias[30];

d)     pacífica ou violenta, realizada por meios não violentos, como o sit-in e toda a forma de greve, de uma maneira geral (falamos tanto da greve ilegal quando da greve lícita, havendo sempre formas de greve consideradas ilícitas), ou com armas próprias ou impróprias, como acontece geralmente numa situação revolucionária (note-se que a passagem da ação não violenta para ação violenta coincide muitas vezes com a passagem da ação omissiva para a ação comissiva)[31];

e)      voltada para a mudança de uma norma ou de um grupo de normas ou até do ordenamento inteiro[32].

Para Bobbio; Matteucci; Pasquino, sua natureza não é de molde a questionar todo o ordenamento, como acontece com a objeção de consciência em relação à obrigação de prestar o serviço militar, muitas vezes em circunstâncias excepcionais, como é o caso de uma guerra considerada particularmente injusta (lembramos a guerra do Vietnã ou a guerra do Iraque de 2003), nem tende tampouco a derrubar um sistema por inteiro como acontece com a ação revolucionária[33].

De outra forma, a desobediência pode ser uma distinção que remonta às teorias políticas da Idade da Reforma, passiva ou ativa. É passiva aquela que visa à parte preceptiva da lei e não à parte punitiva. Em outras palavras, é aquela realizada com a vontade precisa de aceitar a pena que daí resultar e, enquanto tal, à medida que não reconhece ao Estado o direito de impor obrigações contra a consciência, reconhece-lhe o direito de punir toda a violação das próprias leis. Ativa é a que se dirige ao mesmo tempo para a parte preceptiva e para a parte punitiva da lei, de tal modo que quem a realiza não se limita a violar a norma, mas tenta subtrair-se à pena de todas as maneiras[34].

Combinando os diversos aspectos de cada critério com todos os outros, se obtém um número notável de situações que não é pertinente enumerar aqui. Apenas para dar um exemplo, a objeção de consciência ao serviço militar (nos países onde a lei não a reconhece) é omissiva, individual, pública, pacífica, parcial e realiza uma forma de desobediência passiva. Outro exemplo clássico é o do tiranicídio, que é comissivo, geralmente individual e clandestino (não declarado por antecipação), violento e total (tende, como o dos monarcômacos das guerras religiosas dos séculos XVI e XVII ou o dos anarquistas das lutas sociais do século XIX, para uma mudança radical do Estado em exercício) e realiza, também, uma forma de desobediência ativa.

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Conforme salientado por Rogério Moreira Orrutea, referindo-se à resistência:

Sensível a esta realidade que toca a condição humana, já no âmbito da Filosofia Geral, esta problemática não passou despercebida aos pensadores mais afinados com o problema. Com destaque são as ideias do filósofo inglês John Locke (1632-1704) que, com sua obra Segundo Tratado Sobre o Governo (1690), comparece como um autêntico filósofo paladino da teoria do Direito de Resistência. E isto é possível se reconhecer mediante um círculo perpétuo entre Direito Natural e Direito Positivo (Civil), onde a falência deste último pode sugerir um necessário retorno ao primeiro com vistas a evitar uma degeneração da sociedade civil, sendo que a consequencialidade disso redunda numa forma de justificar e fundamentar o Direito de Resistência. Este modelo jurídico na visão do filósofo inglês vai estar de conformidade com a observância a uma peculiar forma de Direito Natural, em que a motivação última é a preservação da vida, da liberdade e da propriedade das pessoas. Disto deve se originar o próprio poder político, e caso este não esteja de conformidade com a preservação dessas modalidades jurídicas referidas, justifica-se o Direito à Resistência, inclusive com a prática de rebelião contra os governantes. Isto é sintomático no seu pensamento quando declara que “todos os homens se acham naturalmente, sendo este um estado de perfeita liberdade para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e as pessoas conforme acharem conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem”.

Após um longo e fundamentado ensaio teórico acerca daquilo que possa legitimar o governo civil, e ainda com os olhos na preservação daqueles direitos acima referidos, Locke afirma que “quem quer que use força sem direito, como o faz todo aquele que deixa de lado a lei, coloca-se em estado de guerra com aqueles contra os quais assim a emprega; e nesse estado cancelam-se todos os vínculos, cessam todos os outros direitos, e qualquer um tem o direito de defender-se e de resistir ao agressor”. É flagrante na observação de Locke o fundamento ao Direito de Resistência com base no Direito Natural e na Lei[35].

Para José Carlos Buzanello, direito de resistência continua sendo a grande dificuldade social, ainda hoje, em face da não resolução de dois fundamentos do Estado Democrático de Direito, quais sejam: a ordem justa e a legitimidade do governante e do seu exercício[36].

Voltando à desobediência civil, tal como é concebida habitualmente na filosofia política contemporânea, que leva em consideração as grandes campanhas não violentas de Gandhi ou as campanhas para a abolição da discriminação racial nos Estados Unidos, ela é omissiva, coletiva, pública, pacífica, não necessariamente parcial (a ação de Gandhi foi certamente uma ação revolucionária) e não necessariamente passiva (as grandes campanhas contra a discriminação racial tendem a não reconhecer ao Estado o direito de punir os pretensos crimes de lesa-discriminação)[37].

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Sobre o autor
David Augusto Fernandes

Mestre e Doutor em Direito. Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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