O caos: o estado de direito e a desobediência civil

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20/03/2015 às 20:57
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5 CARACTERÍSTICAS ESPECÍFICAS DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL

obbio; Matteucci; Pasquino apresentam a distinção da desobediência civil em relação às outras situações que entram historicamente na vasta categoria do direito de resistência. As duas características mais relevantes entre as citadas acima são a ação de grupo e a não violência.

A primeira característica serve para distinguir a desobediência civil dos comportamentos de resistência individual sobre os quais se apoiam geralmente as doutrinas da resistência na história das lutas contra as várias formas de abuso de poder. Típico ato de resistência individual é a objeção de consciência (pelo menos na maior parte dos casos em que a recusa de servir às Forças Armadas não é feita em nome da militância em uma seita religiosa, como a dos mórmons ou das testemunhas de Jeová[38]) ou o caso hipotético aventado por Hobbes daquele que se rebela contra o soberano que o condena à morte e lhe impõe que se mate[39]. Os mesmos autores afirmam que “a desobediência é individual mesmo quando apela para a consciência de ouros cidadãos, como é o caso de Thoreau em não pagar as taxas. Individual também é o caso extremo de resistência à opressão - o tiranicídio”[40].

A segunda característica, a da não violência, serve para distinguir desobediência civil da maior parte das formas de resistência de grupo, que diretamente das individuais (geralmente não violenta) deram lugar a manifestações de violência onde quer que foram realizadas (desde o motim à rebelião, e desde a revolução à guerrilha)[41]. Conforme observado por Bobbio; Matteucci; Pasquino:

Se, portanto, tomarmos em consideração os dois critérios mais característicos dos vários fenômenos de resistência, o que distingue resistência individual de resistência coletiva e resistência violenta de resistência não violenta, a desobediência civil, enquanto fenômeno de resistência de grupo e não violento, ao mesmo tempo, ocupa um lugar preciso e bem delimitado entre os dois tipos extremos, historicamente mais frequentes e também mais estudados, da resistência individual não violenta e da resistência violenta de grupo. A desobediência civil tem o caráter de fenômeno de grupo próprio da resistência coletiva, pelo menos em certos casos de massa e, ao mesmo tempo, tem o caráter predominantemente da não violência próprio da resistência individual. Por outras palavras, é uma tentativa de repetir do grupo “sedicioso” as técnicas de luta que lhe são familiares (o recurso às armas, próprias ou impróprias) e levá-lo a adotar comportamentos que são característicos do objetor individual (a recusa de porte de arma, o não-pagamento de taxas, a abstenção da realização de um ato que repugna à própria consciência, como a adoração de deuses falsos e mentirosos etc.)[42].

A desobediência civil, enquanto uma das várias formas que pode assumir a resistência à lei, é também e sempre caracterizada por um comportamento que põe intencionalmente em ação uma conduta contrária a uma ou mais leis. Deve, portanto, distinguir-se de comportamentos que muitas vezes a acompanham e que, embora tenham o mesmo fim de contestar a autoridade fora dos canais normais da oposição legal e do protesto público, não consistem numa violação intencional da lei.

A primeira distinção a fazer é entre desobediência civil e o fenômeno recente e clamoroso da contestação, ainda que muitas vezes a contestação termine em episódios de desobediência civil. O melhor modo de fazer esta distinção é recorrer aos respectivos contrários: o contrário de desobediência é a obediência e o contrário da contestação é a aceitação. Quem aceita um sistema está obedecendo a ele; mas pode-se obedecer sem o aceitar (na verdade a maior parte dos cidadãos obedece por força de inércia, por hábito ou por imitação, ou ainda por um vago medo das consequências de uma eventual infração, sem, entretanto, ficar convencido de que o sistema a que obedece seja o melhor dos sistemas possíveis). Por consequência, a desobediência à medida que exclui a obediência constitui um ato de ruptura que põe em questão o ordenamento constituído ou uma parte dele, mas não o coloca efetivamente em crise. Enquanto a desobediência civil corresponde sempre a uma ação ainda que meramente demonstrativa (rasgar, por exemplo, o certificado de convocação para o serviço militar), a contestação é feita por meio de um discurso crítico, através de um protesto verbal ou da enunciação de um slogan (não por acaso, o lugar onde se desenvolve mais frequentemente um comportamento de contestação é a assembleia, pois lá não se age, mas se fala[43]).

Conforme observado por Bobbio; Matteucci; Pasquino,outro comportamento que convém distinguir da desobediência civil é o tipo de protesto sob a forma não de discurso, mas de ação exemplar, como jejum prolongado ou o suicídio público,mediante formas clamorosas de autodestruição (como o pegar o fogo no próprio corpo depois de derramar nele materiais inflamáveis). Antes de tudo, estas formas de protesto não são, como a desobediência, ilegais (se se pode discutir a legalidade do suicídio, não é certamente discutível a liceidade de jejuar, posto que não existe a obrigação jurídica de comer); em segundo lugar, elas pretendem atingir como meta modificar uma ação da autoridade pública considerada injusta, não de uma forma direta,isto é, fazendo o contrário daquilo que deveria ser feito, mas indiretamente, buscando despertar um sentimento de reprovação ou de execração contra a ação que se quer combater[44].

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6 A DESOBEDIÊNCIA CIVIL E AS SUAS JUSTIFICATIVAS

Conforme salientado por Bobbio; Matteucci; Pasquino, adesobediência civil é um ato de transgressão da lei que pretende ser justificado e nesta justificaçãoreside, portanto, a razão da própria diferenciação de todas as outras formas de transgressão, sendo suas fontes:

a) A fonte principal da justificação é a ideia originariamente religiosa e, posteriormente laicizada na doutrina do direito natural, de uma ideia moral, que obriga todo o homem enquanto homem e que como tal obriga independentemente de toda a coação, e por conseguinte em consciência, distinta da lei promulgada pela autoridade política, que obriga apena exteriormente e se alguma vez obriga em consciência é apenas na medida em que é conforme à lei moral. Ainda hoje, os grandes movimentos de desobediência civil, desde Gandhi até Luther King, registraram uma forte conotação religiosa. Gandhi disse certa vez a um tribunal que devia julgá-lo por um ato de desobediência civil: “Ouso fazer esta declaração não certamente para subtrair-me à pena que deveria ser-me aplicada, mas para mostrar que eu desobedeci à ordem que me havia sido dada não por falta de respeito à autoridade legítima, mas para obedecer à lei mais alto do vosso ser- a voz da consciência” (Autobiography, V Parte, cap. XV).

b) A outra fonte histórica de justificação é a doutrina de origem jusnaturalista, transmitida depois à filosofia utilitária do século XIX, que afirma que deriva a dupla afirmação de que o individuo têm alguns direitos originários e inalienáveis e que o Estado é uma associação criada pelos próprios indivíduos através do consenso comum (contrato social) para proteger seus direitos fundamentais e assegurar a sua livre e pacifica convivência. O grande teórico do direito de resistência, John Locke, é jusnaturalista, individualista e contratualista e considera o Estado como uma associação surgida do consenso comum dos cidadãos para a proteção de seus direitos naturais. Ele exprime seu pensamento deste modo: “O fim do governo é o bem dos homens; que coisa é melhor para a humanidade: que o povo se ache sempre exposto à ilimitada vontade da tirania ou que os governantes se achem por vezes expostos à oposição, quando se tornam excessivos no uso de seu poder e o usam na destruição e não na conservação das prerrogativas do povo?” (Segundo Tratado sobre o Governo, parágrafo 229).

c) Uma terceira fonte de justificação é, finalmente, a ideia libertária da perversidade essencial de toda a forma e poder sobre o homem, especialmente do máximo poder que é o Estado com o corolário de que todo o movimento que tende a impedir a prevaricação do Estado é uma premissa necessária para instaurar o reino da justiça, da liberdade e da paz. O ensaio de Thoreau começa com estas palavras: “Eu aceito de bom grado o mote: O melhor governo é o que de fato não governa. Manifesta é a inspiração libertária em alguns grupos de protesto e de mobilização de campanhas contra a guerra do Vietnã nos Estados Unidos nos anos 60, que teve no livro de Noam Chomsky, Os novos mandarins[45], 1968, uma das expressões culturais mais sábias[46].


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a formação da sociedade civil através dos séculos e o fortalecimento dos direitos fundamentais, o cidadão a cada dia fica mais ciente de seus direitos, exercitando-se na sua preservação, por vezes vilipendiados, apesar de assegurados constitucionalmente.

Verificamos um despertar social após as manifestações de junho de 2013, por meio do qual o cidadão comum exerce seus direitos fundamentais de primeira dimensão, pleiteando por fatos e situações que afetavam seus direitos e foram às ruas para que sua manifestação ficasse visível a todos e principalmente àqueles que estavam direcionados, ou seja, o poder público.

Estes cidadãos estão legitimados, diante de uma negação ou violação dos seus direitos fundamentais, após todas as outras possibilidades de solução terem-se desvanecido através dos meios próprios e convencionais. Esta forma de atuação, denominada desobediência civil, pode ser comparada, fazendo-se um paralelo com uma forma de excludente de ilicitude contida no Direito Penal, denominada exercício regular de um direito. No caso, a pessoa simplesmente vivenciando uma situação onde há violação de um direito, manifesta-se como cidadão.

A desobediência civil surge para que o Estado de Direito, corporificado nos direitos fundamentais de primeira dimensão, entre outros, que se encontram em desequilíbrio, retornem à normalidade, em função do cidadão ou o grupo social mobilizado para recuperar a normalidade institucional.

Contudo, constatamos que, de alguns anos para cá, “cidadãos” alegando estarem exercendo seus direitos provocam excessos sob esse fundamento, mas, como pode ser visualizado, ocorreram excessos que desfiguraram a desobediência civil, pois esta possui características que norteiam seu procedimento e, sem elas, serão somente atos de vandalismo ou de atuação fascista.

O incêndio de um carro da Telebrás, no estado de Rondônia; a destruição da Unidade de Pronto Atendimento do Alemão, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, são exemplos de excessos que se direcionam ao vandalismo, se distanciando da desobediência civil.

O Estado deve estar presente para inibir os excessos, mas também presente para analisar o que está sendo pleiteado, para o Poder Público corrigir a anomalia e atender ao pleito exercido pelo povo.

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Sobre o autor
David Augusto Fernandes

Mestre e Doutor em Direito. Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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